Autor Tópico: 100 anos de Lévy-Strauss  (Lida 526 vezes)

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Offline Luiz Souto

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100 anos de Lévy-Strauss
« Online: 28 de Novembro de 2008, 20:47:24 »
Paixão pelo Brasil
         
Marcelo Fiorini
             
                 
Claude Lévi-Strauss nasceu em Bruxelas, em 28 de novembro de 1908. Estudou Filosofia e Direito em Paris, mas ganhou reconhecimento mundial com seus estudos etnológicos. É considerado o criador da Antropologia Estrutural e um dos maiores pensadores do século 20. Lévi-Strauss veio ao Brasil pela primeira vez em 1935, integrando a missão francesa que participou da criação da Universidade de São Paulo. Tinha 26 anos quando ocupou a cadeira de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Ciência e Letras da USP. Entre 1935 e 1939, viajou pelo país e desenvolveu pesquisas etnológicas com índios kadiwéus e nambikwara. A experiência brasileira foi descrita, anos mais tarde, em 1955, no livro Tristes trópicos, publicado no Brasil pela Companhia das Letras. Com a ocupação da França por tropas alemãs durante a Segunda Guerra, o etnólogo instalou-se nos Estados Unidos e deu aulas na New School for Social Research, em Nova York. Ao retornar à França, Lévi-Strauss assumiu a cadeira de Antropologia no Collège de France, em Paris. Entre suas obras: As estruturas elementares do parentesco, O pensamento selvagem, Antropologia estrutural e As mitológicas, obra dedicada ao estudo dos mitos de povos indígenas americanos, publicada no Brasil pela CosacNaify. Desde 1973, Lévi-Strauss é membro da Academia Francesa de Letras. Leia, a seguir, a entrevista concedida por Lévi-Strauss ao antropólogo brasileiro Marcelo Fiorini, em novembro de 2005, um dia depois de seu aniversário, em seu escritório no Collège de France. O objetivo central é chamar a atenção do público brasileiro e do mundo para a situação dos povos indígenas do Brasil e, em particular, dos nambikwara, grupo do qual Lévi-Strauss ainda guarda as melhores lembranças de sua carreira como etnólogo. Os nambikwara têm hoje várias de suas aldeias ameaçadas: no rio Sararé, por uma indústria de mineração que tenta impedir a demarcação de uma área pleiteada pelo grupo; no Vale do Guaporé, pela destruição contínua das florestas e pela indústria madeireira e, na aldeia Wakalitesu, onde Lévi-Strauss morou, pela penetração do plantio da soja nas áreas indígenas do Cerrado.
             
CULT - Que recordações o senhor guarda do Brasil?
Claude Lévi-Strauss - Eu guardo as melhores lembranças de minha estada em São Paulo e entre os índios. A cidade de São Paulo, onde eu vivi, porém, e mesmo a que revi em 1985, quando retornei ao Brasil pela única vez, para acompanhar o presidente francês que fazia uma visita oficial, não tinha mais nenhuma semelhança com aquela de 1935. Era um outro mundo.
       
CULT. - Como foram seus primeiros contatos com os índios?
C.L-S. - Eu fui morar com os bororo entre 1935-1936 e durante as férias de 1936. Eu voltei à França para trazer as coleções etnográficas que havia feito entre os bororo para o Musée de l'Homme e estas foram parte de uma exposição. Você sabe, em etnologia e antropologia fui um autodidata e, portanto, era necessário para mim passar em um teste, o que me permitiu suscitar o interesse dos mestres da época como Rivet, Mauss, Lévy-Bruhl e assim obter os meios de retornar entre os nambikwara, em 1938. Essa, contudo, foi uma outra viagem, uma missão completamente diferente da primeira.
         
CULT - O senhor retornou aos bororo ou aos nambikwara quando regressou ao Brasil em 1985?
C.L-S. - Deixei o Brasil no início de 1939. Logo veio a Guerra e eu emigrei para os Estados Unidos. Em 1985, retornei ao Brasil apenas por alguns dias, mas quando estávamos em Brasília, o jornal O Estado de S.Paulo me propôs um retorno de avião até os bororo e partimos em uma pequena aeronave que tinha capacidade para apenas três passageiros, minha esposa, eu e minha cara colega e amiga Manuela Carneiro da Cunha. Pousamos em algumas horas em Rondonópolis e decolamos novamente em direção ao rio São Lourenço, onde eu tinha amigos na época que trabalhavam com os bororo. Nós sobrevoamos várias aldeias, mas não pudemos pousar. Segundo o piloto, era possível aterrissar, mas não decolar. Então, retornamos a Brasília sem que eu pudesse rever os índios, a não ser de muito alto.
CULT - Quais são as melhores lembranças que o senhor guarda de seu trabalho de campo entre os nambikwara?
C.L-S. - Nos poucos anos em que eu morei no Brasil, tive contatos com diferentes populações indígenas: um pouco com os kaingang, no Estado do Paraná; com os kadiwéu, no sul de Mato Grosso, na região do Pantanal; com os bororo, por um período um pouco mais longo, no rio São Lourenço. Em 1938, encontrei outros, mas principalmente os nambikwara, com quem eu passei alguns meses. Eles tinham, na época, uma péssima reputação por causa de diversos incidentes pelos quais haviam passado, inclusive a morte de um homem que trabalhava para a Linha Telegráfica de Rondon, ou o que restava dela. Eu fui avisado e prevenido sobre eles. Disseram-me em Cuiabá que minha vida seria ameaçada, que eles eram pessoas difíceis e perigosas, mas devo dizer que, muito ao contrário, nenhum outro povo indígena que conheci me seduziu da forma como os nambikwara o fizeram.
         
CULT - Como viviam os nambikwara naquela época?
C.L-S. - Eles viviam de uma forma bastante deplorável. Isso porque a região que habitavam era um cerrado, quase desértico, feito de areia e sem recursos. Eu creio que eles conseguiam a muito custo retirar dele o mínimo para sua subsistência. Eles formavam pequenos bandos de 20, 30, 40 pessoas que, durante uma parte do ano, se tornavam nômades e, em outra, principalmente durante o inverno, se fixavam em aldeias permanentes. Eram, no entanto, de uma franqueza, de uma gentileza e de um desejo de colaborar com o etnólogo que me surpreendeu.
         
CULT - Como o senhor se comunicava com os nambikwara?
C.L-S. - Eles não falavam o português, salvo alguns deles que sabiam uma dezena de palavras. Eu mesmo não sabia falar nambikwara, com certeza, e, portanto, nós construímos juntos um tipo de jargão comum formado metade por palavras em português, metade por palavras em nambikwara, o que nos permitia um mínimo de comunicação. Evidentemente, isso não ia muito longe.
           
CULT - E, no entanto, as passagens que o senhor dedicou aos nambikwara estão entre as mais belas do livro Tristes trópicos e mostram uma profunda empatia e a compreensão da alma dessa etnia.
C.L-S. - Talvez, mas o fato é que, quando eu soube depois de todas as tragédias que se abateram sobre esses homens e mulheres, essas crianças de quem eu tanto gostei - de um lado, epidemias extremamente graves, de outro, a perseguição das grandes indústrias agroalimentares que queriam explorar industrialmente seu território -, devo dizer que eu me senti ferido, angustiado, e, de uma certa forma, meu coração ficou sempre entre eles. É claro, eu era jovem quando os encontrei e essa é uma das razões que pode explicar isso.
         
CULT - Pode-se dizer que os índios ainda vivem hoje sob a força destruidora do processo de colonialismo, que continua avançando sobre as regiões ainda preservadas do país. O que o senhor espera hoje para os nambikwara e para os outros índios do Brasil?
C.L-S. - Eu desejo ardentemente que as autoridades brasileiras se interessem por eles e que dêem meios para que cada grupo indígena possa prosseguir vivendo de forma independente. Evidentemente que não será da forma tradicional que eles viviam antes e que eu presenciei, mas, em todo caso, é preciso permitir-lhes escolher livremente entre o que eles querem conservar de suas tradições e de suas formas de vida e o que eles querem emprestar da cultura ocidental.
CULT - O que o senhor pensa sobre a situação do mundo atualmente?
C.L-S. - A questão que domina verdadeiramente meu pensamento há muito tempo - e ainda mais nos dias de hoje - é que quando eu nasci havia 1,5 bilhão de habitantes sobre a Terra. Quando entrei para a vida ativa profissional e fui morar com os bororo e os nambikwara, dois bilhões, e agora há seis bilhões. Em poucos anos, serão oito ou nove. Aos meus olhos, esse é o problema fundamental do futuro da humanidade e, pessoalmente - embora isso não tenha importância porque eu não estarei mais aqui -, eu não vejo muito esperança para um mundo assim tão cheio.
         
CULT - Critica-se muito os Estados Unidos, hoje, pela forma com que o seu governo tem optado por conduzir o processo de colonialismo no Oriente Médio, seja ele econômico, seja de guerra. Também os problemas que vive a França estão ligados ao lastro do passado de seu próprio colonialismo. O que o senhor pensa a respeito da situação política do mundo atualmente?
C.L-S. - Esses não são problemas sobre os quais eu me preocupe diretamente. Além do mais, se tivesse desejado estudar minha própria sociedade, teria me tornado um especialista em ciência política ou em sociologia. Se eu me tornei um etnólogo, é porque outras sociedades me interessavam muito mais do que a minha. Eu tenho, antes de mais nada, um grande reconhecimento pelos Estados Unidos, que foi o país que me acolheu e salvou minha vida durante a guerra na França e o armistício. O que eu diria ainda é que, apesar das circunstâncias trágicas que vivi na época quando fui forçado a me afastar de meu país, perdendo contato com meus familiares - não tinha mais notícias de meus pais e não sabia até mesmo se estavam vivos -, esse foi, provavelmente, o período mais fecundo de toda a minha carreira. Foi nos Estados Unidos que eu aprendi, por assim dizer, a etnologia, lendo e passando os meus dias na Biblioteca Pública de Nova York, mantendo contato com meus colegas americanos. Foi lá que escrevi o meu primeiro livro de fôlego, As estruturas elementares do parentesco, e isso não teria acontecido se tivesse vivido em outro lugar. Meus sentimentos quanto aos Estados Unidos são, portanto, de reconhecimento e fidelidade.
         
CULT - Quais trabalhos influenciaram sua obra ou que o senhor aprecia?
C.L-S. - Eu diria quase tudo o que li. A obra de Franz Boas foi muito importante para mim porque me interessei em pesquisar a costa noroeste do Pacífico, anos mais tarde, depois do Brasil. Os grandes antropólogos americanos, que eu conheci muito bem, como Robert Lowie ou Alfred Kroeber, escreveram obras significativas, das quais tirei grande proveito. Eu diria que o que há de mais importante para mim, no momento atual, é o trabalho feito por antropólogos brasileiros. Eu acho que, se a grande etnografia, no sentido tradicional do termo, subsiste em algum lugar do mundo, é no Brasil. Isso acontece porque, evidentemente, vocês têm a chance de encontrar os povos que são objeto de estudo dentro do próprio país. É a fecundidade da jovem pesquisa brasileira que hoje me impressiona imensamente.
         
CULT - O que o senhor lê atualmente?
C.L-S. - Vou lhe responder com as palavras de um velho escritor francês: "Na minha idade, eu não leio mais, eu releio".
       
CULT - A visão ou perspectiva que o senhor tinha ou tem sobre a antropologia mudou através dos anos de sua carreira?
C.L-S. - Não foi tanto meu pensamento que mudou, mas o que constitui o objeto de nosso estudo. Claro, aqueles a quem chamamos outrora de povos primitivos ou de povos sem escrita não estão mais nas condições que pareciam estar quando eu iniciei minha carreira. Portanto, a antropologia que eu aprendi, essa que eu pratiquei desde o princípio, certamente não poderá ser a mesma em pouco tempo. Vocês podem, talvez ainda, e principalmente no Brasil, conduzir a antropologia em um espírito mais tradicional, contudo, vocês sabem melhor do que ninguém que os seus dias estão contados.
           
CULT - Em 2005, comemorou-se o ano do Brasil na França e em 2008 será o ano da França no Brasil. O que o senhor pensa sobre o estreitamento das relações culturais entre os dois países?
C.L-S. - Você sabe de uma coisa, eu fico muito contente que estejamos celebrando os laços entre a França e o Brasil. Não sei se já se pensou nisso, mas é uma relação que tem mais de 500 anos. Os franceses desembarcaram no Brasil três ou quatro anos apenas depois de Cabral e o Chevalier de Gonneville trouxe o filho de um chefe indígena para a França, a quem deu em casamento uma de suas próprias filhas. Durante o século 16, os laços entre os dois países eram muito estreitos, como se pode ver pelos trabalhos destes que foram, talvez, os primeiros etnólogos do Brasil: André Thévet e Jean de Léry. Quando vivi no Brasil, entre 1935 e 1939, o Brasil estava verdadeiramente repleto de cultura francesa. A melhor prova é que os professores franceses da Universidade de São Paulo lecionavam seus cursos em francês e todos os alunos compreendiam. Obviamente, as coisas não são mais assim hoje. Quando eu me lembro, porém, da intimidade que existiu entre a França e o Brasil, fico muito satisfeito em saber que ela ainda persiste.
       

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Entrevista publicada originalmente na CULT edição 110.
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