Um guia para o Cético Boêmio
Temas como paranormalidade, experiências esotéricas e dádivas divinas sempre acabam surgindo em uma mesa de bar, após algumas cervejas e aperitivos. Parece inevitável.
Texto de Francisco ProsdocimiVez por outra isso acontece comigo, acho que não existem muitos céticos no Brasil. Digo Brasil porque isso já me aconteceu mais de uma vez e as ocasiões não ocorreram sempre na mesma cidade. Normalmente acontece assim: saio de casa pra descansar, divertir e tomar uma cerveja e, pode saber, a noite vai acabar em discussões acaloradas. Até aí tudo bem, que mal há em discutir? É até bom, a gente acaba conhecendo mais sobre as outras pessoas e pode aprender bastante se a discussão for boa. O problema é que, naquelas que eu estou acostumado a participar, é quase inevitável que eu seja um dos únicos, senão o único, representante de uma determinada posição, enquanto todo o resto da mesa toma partido do outro lado. Esse é um dos problemas de ser cético.
É claro que o assunto de que estou falando é religião, mas pode acrescentar também misticismo e paranormalidade. Em uma mesa de bar, depois de algumas cervejas, o cético é o inimigo ideal de qualquer pessoa, ainda mais se considerarmos que poucos sabem o que é um cético. Logo vem a primeira pergunta, sempre ela:
- Ei, quer dizer que você não acredita em Deus?
- Não, não acredito.
Você pode até emendar um "ele mente muito", pra quebrar o clima, pode ser interessante no início da discussão. Logo em seguida vêm aquelas perguntas inevitáveis quando se fala de Deus:
- Em que tipo de Deus, então, você acredita?
- Não acredito em deus, de nenhum tipo.
Novamente algo como "todos que conheço mentem muito" pode proporcionar uma descontração extra no ambiente. Nesse momento pode-se prever o que vai acontecer. Cada pessoa na discussão irá descrever o tipo de Deus em que acredita. Pessoal, não pessoal. Onipotente ou com poderes limitados. Ativo ou apenas observador. Uma força, uma energia, uma consciência coletiva ou outras coisas extravagantes. Não, devo dizer, não acredito em nada, nem em qualquer tipo de energia cósmica universal esquisita.
- Ei, pelo menos em espíritos você acredita, não é?
- Não, não acredito. - É minha resposta mais uma vez.
- Pô, nem em vida após a morte?
- Também não.
Nesse momento já liguei meu botão de "não acredito" e setei-o no grau máximo. É nessa hora que começa a enxurrada. As pessoas sempre querem achar alguma coisa em que você acredite: anjos, demônios, telecinese, bruxas, fantasmas, astrologia, influências lunares, Thomas Green Morton, alienígenas, homeopatia, Uri Geller, radiestesia, papai-noel e coisas do gênero. Depois de desacreditar todas essas coisas, é a vez de começarem a questionar até mesmo coisas idiotas, como uma pedra ou um copo de cerveja:
- Não venha me dizer agora que você acredita nessa cerveja?
Essa é a pior hora, quando começam a debochar. Já tentei várias opções quando chega esse momento. A primeira opção é apelar, xingar todo mundo e ir embora. Sem pagar a conta, claro. É uma ótima opção quando se está sem dinheiro, recomendo até para os crédulos no fim do mês. A segunda opção é debochar de volta:
- Ah, estive mentindo! Na verdade acredito, sim, num ser superior que manda em todo mundo aqui, que consegue ver tudo, estar em todos os lugares ao mesmo tempo, escutar todas as preces e olhar por cada pessoa individualmente. Superpoderoso! Além disso, julga a todos depois que morremos e decide, segundo um critério, que só-Deus-sabe, quem é que deve ir pro céu e quem deve ir pro inferno ou pro limbo, sei lá. Acredito também que a força cósmica de alguns astros específicos que formam constelações em forma de animais influenciam diretamente o comportamento de todos os seres humanos de uma maneira que só os astrólogos sabem qual. É, e acredito também que todo mundo está aqui para cumprir um carma pessoal e que tem o que merece por ter feito tanta asneira nas vidas passadas - e haja asneira pra ter tanta gente pobre e malfadada no mundo.
Essa segunda saída também pode ser, algumas vezes, uma boa opção. Recomendo para aqueles que já perderam a paciência com o início da discussão ou para os que sabem que mais cedo ou mais tarde terão que pagar a conta e que a primeira opção não é viável.
Mas, afinal, devo confessar: a melhor opção é mesmo tentar explicar direitinho qual é a posição do cético, quais são as nossas filosofias e o que pensamos sobre a vida. É verdade, essa é a opção menos divertida das três e é necessário que o outro lado esteja disposto a te escutar. Não é tão fácil assim expor o pensamento cético, ainda mais depois de algumas cervejas.
Nesse momento as pessoas já começam a te escutar meio que contrariadas, achando que você é um radical, que tudo o que disser estará errado e que não há nada que você possa dizer para fazê-las mudar suas opiniões. Afinal você não acredita em Deus, nem em espíritos e nem em vida após a morte. Um absurdo! Alguns céticos preferem esconder seu ateísmo no início da discussão e podem até se dizer agnósticos, no fundo não faz muita diferença. A filosofia é a mesma e não se cria um clima ruim das pessoas para com o cético. Pessoalmente prefiro confessar logo meu ateísmo, mas é uma opção pessoal. E depois é preciso ter muita paciência pra conseguir explicar toda sua filosofia dentro da discussão.
"O ceticismo é uma conclusão lógica que pode ser alcançada a partir de vários pontos de partida diferentes."Vale lembrar que uma parcela de céticos acredita que o ceticismo não leva necessariamente ao ateísmo. Acredito que isso se deva, principalmente, a diferenças nos conceitos de ateísmo, teísmo e agnosticismo. Assim, o ateísmo a que me refiro nesse texto pode ser considerado como a crença na não-existência de um deus ou de vários deuses baseada na falta de evidências sobre sua(s) existência(s).
Voltando à discussão, percebo sempre que metade das pessoas que iniciarem a conversa irão se despedir e irão pra casa. Lembre-se que esse tipo de conversa normalmente começa apenas após algumas rodadas de chopp. Já será tarde, um bom conselho é dizer aos que vão embora para não se esquecerem de pagar suas respectivas contas. Bem, metade dos que permaneceram no bar irá se dispersar, entretendo-se em outros assuntos, polêmicos ou não. Cerca de 50% daqueles que continuaram no mesmo assunto, seu ceticismo, irá fingir que está te escutando, mas vai ficar ali meio aéreo, viajando, e vai sempre perguntar alguma coisa que você acabou de responder. (Sempre há um chato desses.) A única outra pessoa que estava participando da conversa é quem você vai conseguir conversar de verdade e explicar o ponto de vista cético, tim-tim por tim-tim. Na maioria das vezes essa pessoa já era uma quase-cética antes do assunto começar e é provável que você possa influenciá-la a pensar de acordo com o ponto de vista cético. Mas para isso é necessário que ela tenha chegado a várias conclusões sobre o ceticismo independentemente.
Por falar nisso, este argumento é um dos melhores para se convencer alguém sobre a legitimidade do pensamento cético: várias pessoas podem chegar, independentemente, a ter filosofias céticas semelhantes, sem nunca terem ouvido falar umas das outras ou sem terem lido os mesmos livros ou seguido os mesmos mestres. Isso mostra que o ceticismo é uma conclusão lógica que pode ser alcançada a partir de vários pontos de partida diferentes, ao contrário de outras formas de filosofia religiosas, onde é preciso ter lido a Bíblia, o Corão, os ensinamentos de Buda ou o "Livro dos espíritos". O ceticismo não tem qualquer tipo de líder espiritual e não é uma conclusão alcançada ou vislumbrada por apenas uma pessoa, como Jesus Cristo, os apóstolos, Maomé, Buda ou Kardec. O ceticismo é uma conclusão sobre o mundo baseada na lógica e na razão, que pode ser alcançado por qualquer indivíduo que se dê ao luxo de observar e investigar o mundo por si mesmo, procurando as verdades de forma completa e profunda, não aceitando dogmas e respostas simples e superficiais para explicar seus mais profundos questionamentos.
Voltemos agora ao único resistente da discussão inicial, existe também a opção de que esse indivíduo não seja um quase-cético. Talvez ele seja simplesmente um interessado em religiões e, dessa forma, vai ficar um pouco mais difícil explicar-lhe o ceticismo, pois será necessário partir de todos os princípios básicos. E haja cerveja! Mas, de qualquer forma, acredito que essa última pessoa deva ser realmente alguém que esteja interessado em sua filosofia de vida e, dessa forma, deve ser capaz de entender boa parte de seus argumentos.
Pois bem, digamos que você, leitor, seja a última pessoa do bar. É, essa que ficou por último escutando o que o cético tem a dizer. Eu sou o cético, muito prazer. Saiba que já o considero um cético em potencial, só por já ter chegado até aqui. Vou até pedir mais uma cerveja para poder explicar-lhe porque sou cético. Desce uma Skol bem gelada!
É, meu amigo, penso que sou cético devido a alguns poucos motivos: primeiro porque conheço e entendo o método científico, segundo devido ao fato de que consigo e acho interessante aplicar o método científico a todas as questões que me são apresentadas e, por último, porque gosto de questionar as coisas e não aceito como verdade tudo o que me é dito. Agora é a vez de tentar fazê-lo entender cada um desses motivos, começando com o método científico.
O método científico é simplesmente um conjunto de passos que é necessário ser seguido para que consideremos uma determinada afirmação como verdadeira ou falsa. Muito já se estudou sobre o método científico e vou tentar mostrar aqui seus pontos básicos, mas é preciso dizer que o método consiste simplesmente em uma forma lógica de se testar hipóteses formuladas para explicar determinado evento. A toda hora aplicamos o método científico sem nos darmos conta disso.
Normalmente, a primeira etapa do método científico é observação de algum fenômeno natural, como a própria existência do universo. Após termos definido um determinado fenômeno que queiramos avaliar, devem ser criadas uma ou mais hipóteses que tentem explicar porquê acontece determinado evento escolhido. No caso da existência do universo poderíamos criar, por exemplo, duas hipóteses para explicar tal acontecimento: a hipótese H0 e a hipótese H1.
Hipótese H0: o universo criou-se sozinho a partir do nada.
Hipótese H1: o universo foi criado por um ser perfeito. Onipotente, onipresente e altamente complexo - Deus.
Nada nos impede de criar outras hipóteses. A hipótese H2 poderia se referir ao fato do mundo ter sido criado por vários deuses e a hipótese H3 poderia fazer alusão ao fato de que o mundo tivesse sido criado por uma alface rosa e falante. Qualquer hipótese é válida nesse momento. O próximo passo é que será o decisivo: o teste das hipóteses.
Neste passo deve-se criar experimentos para testar cada uma das hipóteses propostas. Através dos resultados dos experimentos poderemos descobrir quais das hipóteses são falsas ou qual delas é a mais plausível dentre aquelas que foram propostas. Esta será considerada como "verdade" até que surja alguma outra que se encaixe melhor aos resultados de nossos experimentos ou até que surja algum fato novo.
No caso da origem do universo, não há como testar as hipóteses. Não existe um experimento possível que possamos fazer para nos dizer qual das duas hipóteses é a correta. Entretanto tudo seria mais fácil se nossa observação fosse relativa, por exemplo, à quantidade de água que transbordaria de uma banheira cheia onde um determinado corpo fosse inserido. O que poderia acontecer se colocássemos um objeto qualquer em tal banheira repleta de água? Poderíamos propor, digamos, duas hipóteses sobre a quantidade de água transbordada: a primeira afirma que o volume de água transbordado seria idêntico ao volume do objeto imerso e segunda proporia que a massa de água transbordada seria idêntica à massa do objeto. Se fizéssemos, então, o experimento em uma banheira e imergíssemos nela corpos de diferentes volumes e massas, poderíamos, como fez Arquimedes, gritar "Eureka!" e dizer que descobrimos o resultado.
Outras pessoas que realizassem o mesmo experimento em diversas outras partes do planeta chegariam, também, às mesmas conclusões, concordando com nossa descoberta. O resultado deveria ser idêntico, mesmo se os outros cientistas utilizassem um tanque, um copo de cerveja, um balde ou qualquer recipiente ao invés de um banheira. O mesmo vale para os objetos a serem imersos. Ah, é claro, é importante que tais objetos caibam dentro do recipiente, como parece óbvio para a metodologia do trabalho.
O critério da reprodutibilidade, principalmente quando realizado por equipes diferentes em laboratórios diferentes ao redor do mundo, é importante para o método científico e reforça a credibilidade de determinada descoberta. Citando um exemplo recente, quando o primeiro mamífero, a ovelha Dolly, foi clonado em laboratório, toda a comunidade científica ficou estarrecida com os resultados desse experimento e criou-se um clima de ceticismo entre os cientistas. Um ceticismo saudável, considerando o pequeno número de animais clonados e a novidade da técnica. Tal ceticismo, relacionado à possibilidade de clonagem de mamíferos, logo foi dissolvido, principalmente quando outros laboratórios ao redor do mundo obtiveram sucesso ao clonar outros animais, principalmente em estado embrionário. Quanto à clonagem de indivíduos adultos, parece que o experimento ainda não foi repetido um número adequando de vezes e ainda há um certo grau de ceticismo na comunidade.
Entretanto, voltando ao nosso exemplo, não há como experimentar com a idade do universo. As hipóteses H0 e H1 chegam a ser quase absurdamente improváveis, mas é preciso definir qual é a mais improvável das duas. Parece bastante difícil de aceitar o fato do universo ter surgido do nada. Esse fato parece bastante improvável. Entretanto parece ser igualmente improvável que um ser altamente inteligente, poderoso e sábio tenha criado o universo. Afinal, de onde teria surgido tal entidade? E como poderia ter surgido, do nada, um ser tão complexo assim? Fica difícil escolher qual das hipóteses é a mais provável.
Entretanto o método científico já traz acoplado um sistema utilizado para resolver exatamente problemas como esse. Vejamos um outro exemplo. Digamos que saibamos que um determinado indivíduo tenha saído de um ponto A (representado pelo meu copo de cerveja) e esteja, em um determinado momento, em um ponto B (representado pelo seu copo de cerveja, pode ser?). Poderíamos, por exemplo, propor duas hipóteses nesse caso. A primeira hipótese seria a de que o indivíduo foi do ponto A até o ponto B em linha reta; e a segunda hipótese seria a de que o indivíduo não foi em linha reta de A até B e sim passou por um ponto C (representado pela garrafa de cerveja) antes de chegar até B.
![](http://www.clubecetico.org/forum/files/h10.gif)
É importante notar que não temos nenhum dado extra que nos permita saber o caminho que o indivíduo em questão percorreu. Se tivéssemos os valores precisos das distâncias entre os pontos, de sua velocidade média e o tempo gasto no percurso poderíamos, sem qualquer sombra de dúvida, apontar qual das hipóteses estaria correta. Mas suponhamos que essa informação não nos foi dada ou não seja possível de ser recuperada, de forma que tenhamos que nos virar assim mesmo.
Pois bem, portanto os cientistas criaram uma forma de se escolher entre uma ou outra hipótese. E essa forma é chamada de princípio da parcimônia ou de "a navalha de Occam". Segundo esse princípio, quando duas hipóteses explicam de forma igualmente satisfatória um determinado evento, deve-se aceitar como verdadeira aquela que seja mais simples ou que apresente um menor número de passos para ser executada. Dessa forma, no caso acima, escolheríamos, como verdadeira, a primeira hipótese, que diz que o indivíduo teria ido diretamente de A para B. É interessante notar que ele poderia ainda ter passado por C ou por um outro caminho qualquer e poderia, até mesmo, ter dado toda uma volta completa ao redor do mundo a partir de A antes de chegar até B. Mas como não temos nenhum dado extra, nunca poderemos saber o que ele realmente fez e, assim, preferimos considerar que ele utilizou o caminho mais provável, ou seja, uma linha reta entre A e B. Esse princípio da parcimônia, embora seja questionável, tem sido aplicado em todos os ramos da ciência, desde a medicina até a engenharia e todo o conhecimento científico e tecnológico produzido pela humanidade foi gerado seguindo exatamente esse mesmo método científico. É claro, também, que o exemplo mostrado simplifica bastante determinados aspectos sobre o método científico e a navalha de Occam. Além disso, normalmente existem mais dados dentro do problema que nos permitem inferir com mais certeza a resposta correta.
Como já foi comentado, se soubéssemos a velocidade média de deslocamento do indivíduo, o tempo do percurso e a distância entre A e B poderíamos inferir com mais certeza o que teria acontecido. Da mesma forma, se tivéssemos filmado alguma parte do trajeto de nosso indivíduo, poderíamos levar a gravação em consideração ao propor nossa melhor explicação do evento acontecido.
É interessante aqui dar mais um exemplo cotidiano onde pode ser aplicado o princípio da navalha de Occam. Aconteceu lá em casa ontem. Deixei, pela manhã, um pouco de ração canina pro Bulldog, meu buldogue, em sua vasilha de comida. Então, quando cheguei em casa à noite, não havia mais ração em sua vasilha. Analisando tal fato cientificamente poderíamos propor uma série de hipóteses para tentar explicar o fantástico sumiço da comida canina. A primeira hipótese poderia ser a de que o Bulldog havia comido sua comida; a segunda hipótese poderia estar relacionada à minha irmã (folgada, que fica em casa o dia todo) ter comido a ração do buldogue; uma terceira hipótese faria alusão ao fato de um extraterrestre habitante de Europa, uma das luas de Júpiter, ter vindo de lá especialmente pra comer tal ração canina; e uma quarta hipótese poderia estar relacionada ao desaparecimento repentino da ração, sem qualquer motivo aparente. Como não tenho qualquer indício que me permita decidir sobre qual das hipóteses pareça a mais viável - não havia nenhuma nave espacial pousada no quintal -, devo utilizar a navalha de Occam para decidir qual das hipóteses considerar como verdadeira. Devo escolher, portanto, a mais simples delas. Acho que você já entendeu.
O exemplo acima mostra como utilizamos, sem nos dar conta, o método científico em nossa vida cotidiana. Na verdade tal método não é nenhum bicho de sete cabeças, consiste simplesmente de uma formalização do senso-comum. A rigidez metodológica que observamos em trabalhos científicos existe para garantir os bons resultados e para convencer a comunidade científica sobre a veracidade destes.
Voltemos mais uma vez ao nosso problema divino. Como saber qual das hipóteses estaria correta? Será que seria H0, que propunha que o universo havia sido criado sozinho, ou H1, onde um Deus superpoderoso teria criado o nosso universo? Já observamos que ambas as hipóteses parecem absurdas, mas temos que escolher qual delas seria a mais parcimoniosa, ou seja, aquela que seria adotada pelos cientistas para considerar o início de tudo. A resposta é que a hipótese considerada como verdadeira seria a primeira, H0, pelo simples fato de que exige um passo a menos, sendo, assim, a mais simples delas.
Deixe-me explicar melhor: a hipótese H0 considera que o universo, algo extremamente complexo, surgiu do nada e ponto. Já a hipótese H1 considera que Deus, um ser altamente complexo teria surgido do nada (ou teria sempre existido). Até aí se pode discutir qual das duas hipóteses seja a mais simples de ter acontecido e, nesse ponto, acredito que não se possa descartar, ainda, a hipótese H1. A ciência aceita, nos dias de hoje, a hipótese H0, simplesmente pelo fato de que a hipótese H1 necessita de mais um passo, ela necessita de um "e". O fato de Deus ter sido criado do nada explica o surgimento do próprio Deus e não o surgimento do universo. Nossa hipótese H1 necessita de que Deus tenha sido criado do nada "e" tenha, posteriormente, criado o universo. Essa última hipótese apresenta dois passos, enquanto a primeira hipótese apresenta apenas um, o que a faz ser descartada quando utilizamos a navalha de Occam. Além disso, novas teorias em física, relacionadas à mecânica quântica, já podem propor, de forma ainda bastante especulativa, como o universo poderia ter sido gerado a partir de um nada. Mas, mesmo sem considerar essas novas teorias, podemos dizer que Deus não existe na ciência.
"se algum dia houver evidências consistentes da existência de alguns desses seres, é evidente que os céticos acreditarão em sua existência."Com relação a outras entidades como espíritos, alienígenas, anjos, demônios e coisas do gênero, não existe evidência empírica. Ninguém nunca pôde provar a existência de algum deles. E, a menos que sejamos loucos o suficiente para acreditar que existe uma conspiração entre os governos e determinadas pessoas para esconder a existência de tais seres, não há porque acreditar que existam. Entretanto, se algum dia houver evidências consistentes da existência de alguns desses seres, é evidente que os céticos acreditarão em sua existência. É um absurdo acreditar na existência de qualquer ser com o qual ninguém tenha conseguido provar já ter tido contato.
Foi nesse ponto, em que a conversa começou a ficar mais séria, que boa parte das pessoas foi embora do bar ou se entreteve em outros assuntos. Entretanto, se alguém conseguiu acompanhá-lo até aqui, isso pode significar que seu ouvinte está bastante interessado no assunto (ou que é educado o suficiente para não ir embora enquanto você desenvolve uma cadeia de raciocínios). No primeiro caso, ficará fácil terminar suas explicações sobre os outros pontos que determinam a filosofia de vida cética. No segundo caso agradeça a pessoa pela atenção e despeça-se dela. Acredite que você já realizou um bom serviço e que isso poderá fazer com que ela pense um pouco melhor em hipóteses, experimentos e em como se constrói um conhecimento fidedigno. É claro que isso pode não acontecer e seu ouvinte pode simplesmente esquecer tudo ao sair do bar, mas é melhor não considerar essa hipótese.
Espero, prezado leitor, que você seja um daqueles que se enquadram no primeiro caso e, portanto, vou continuar. Mas antes é preciso pedirmos outra cerveja.
- Desce mais uma, garçom!
Bem, até agora estive falando que um dos principais alicerces do pensamento cético é o método científico. Se um indivíduo conhece e entende bem esse método já se enquadra na posição de, digamos, um pré-cético. Dessa forma podemos concluir que todos os cientistas do mundo sejam pré-céticos, afinal acreditamos que todos eles conheçam o método científico, que é a base de seu próprio trabalho. Mas por que os cientistas seriam apenas pré-céticos e não céticos por completo?
Nesse ponto é que acredito que podemos dividir os cientistas em duas classes distintas: aqueles que são cientistas por profissão e os que são cientistas por filosofia de vida. A diferença entre eles é, simplesmente, a porta do laboratório. Imagina-se que ambos sejam completamente rigorosos em seus trabalhos científicos, o que os torna indistinguíveis no meio científico. Não é possível identificá-los em congressos e reuniões profissionais. Entretanto aqui, na mesa do bar, é fácil identificá-los.
Os cientistas por profissão são aqueles que utilizam o método científico somente quando estão em seus laboratórios. Muitos deles saem de seu ambiente de trabalho e vão praticar seções de cromoterapia, levam seus filhos e parentes a médicos homeopatas e dão Florais de Bach para seus animais de estimação. Podem ainda freqüentar centros espíritas, igrejas das mais diversas ordens ou realizar consultas periódicas a videntes e astrólogos. Apesar disso, dentro de seus laboratórios não há reza brava que resolva algum problema. Na metodologia de seus artigos nunca estão os rituais ou preces realizadas para que seus experimentos funcionassem e, profissionalmente falando, são céticos. Entretanto não querem, não gostam ou não se importam em utilizar o método científico fora de seu ambiente de trabalho e podem muito bem acreditar em coisas um tanto inusitadas.
A segunda classe, os cientistas por filosofia de vida, acreditam que o método científico pode e deve ser utilizado para resolver qualquer tipo de problema, dúvida ou questionamento. Mesmo do lado de fora do laboratório. E, é importante notar, os cientistas por filosofia de vida podem não ser cientistas por profissão. A maioria deles não é, a bem da verdade. Conheço alguns que são advogados, médicos, dentistas, administradores, engenheiros, publicitários e até mesmo psicólogos. Esses são os indivíduos que buscam sempre conclusões mais sólidas e confiáveis para as questões que os afligem, dentro ou fora do ambiente de trabalho. É verdade, nessa busca incansável pela verdade mais adequada em todos os casos, tais pessoas podem se tornar bastante chatas e questionadoras, um efeito colateral inevitável. É bom que você tenha bons argumentos e provas pra convencer um sujeito desses de qualquer coisa que lhe tenha acontecido, mesmo em uma conversa informal aqui na mesa do bar.
Um indivíduo, portanto, que conhece o método científico e aplica-o tanto em problemas profissionais quanto em problemas da vida cotidiana, que chamei aqui de cientista por filosofia de vida, já é quase um cético completo. Acredito que só lhe falte mais um ingrediente importante, o que exige mais outra explicação e, portanto, mais uma cerveja. Garçom!
Agora você já pode ter certeza. Quem esteve escutando sua explicação até agora não vai mais embora. Está curioso para saber onde termina essa estória. A pessoa que tenha entendido perfeitamente tudo o que já foi explicado até aqui, já não tem mais aquele preconceito que tinha quando você, no início da conversa, disse que era ateu. Ela já te entende. Pode até não concordar com você, mas entende seu ponto de vista e pode até achar interessante. Talvez essa pessoa nunca se torne cética ou jamais concorde com alguns pressupostos do método científico, mas é provável que nunca mais tenha rancor, ódio ou raiva dos céticos, ateus e similares. Ponto pra você. A cerveja chegou, vamos ao último quesito que acredito caracterizar um cético.
Pois bem, a única coisa que acredito faltar a um "cientista por filosofia de vida" para que vire um cético completo é a dúvida sobre todo o conhecimento que recebe. É preciso questionar os fatos para saber o que, de fato, aconteceu, quando se considera determinado evento. Digamos que um indivíduo diga que conhece alguém que possui um sabre de luz, que é capaz de praticar telecinese e pode induzir o comportamento de outras pessoas. Mesmo utilizando o método científico, se o que nosso amigo diz for verdade, poderíamos concluir que existe realmente tal Jedi. A questão a ser colocada, no caso, é que devemos questionar as premissas, de preferência conferindo-as através de nossos próprios olhos e utilizando equipamentos adequados. Afinal, quem disse que o sabre de luz é verdadeiro? Será que essa pessoa testou a sofisticada espada Jedi e tentou perfurar algum tipo de metal com ela? Quem disse que o suposto Jedi realmente pratica telecinese? Será que nosso amigo o viu praticando algum efeito? E se viu, será que nosso "Jedi" não poderia ser alguém que quisesse enganar nosso amigo e tenha utilizado algum truque? Será que as pessoas cujo comportamento foi induzido pelo suposto Jedi, se é que isso aconteceu, não eram amigos ou comparsas do Jedi em seu truque?
É preciso questionar os fatos e utilizar, também aqui, a navalha de Occam. Lembro-me de uma vez em que um amigo, tentando me provar a existência de espíritos, disse-me que, em uma certa república onde morava sua namorada e onde havia morrido um rapaz enforcado certa vez, as janelas sempre batiam muito e, vez por outra, alguma coisa sumia de seu lugar e determinada porta abria sozinha. Será que não é normal perder alguns objetos de vez em quando? Será que a porta não poderia estar com a fechadura estragada? Será que o vento não poderia ser o responsável por bater as janelas? O que é mais simples: todos esses fatos corriqueiros acontecerem ou existir um mundo dos espíritos onde um determinado rapaz que se suicidou devido à sua vida atormentada fica voltando pra amedrontar casais de namorados indefesos? É preciso questionar as informações que se obtêm. Determinados fatos podem e devem ser explicados de forma simples e não através da existência de monstros, assombrações ou espíritos.
Durante essa última parte da conversa é possível que a pessoa com quem você está conversando apresente algum relato extraordinário que tenha acontecido consigo e é preciso ter um bom jogo de cintura e saber questionar os fatos em questão, de forma a mostrar-lhe como a base de sua argumentação é falha. Deve-se criar um modelo hipotético alternativo para explicar, da forma satisfatória, o fato acontecido. E, se a pessoa tem uma história que ela pensa ter sido causada por algum fenômeno paranormal, é bem possível que qualquer explicação racional será mais simples do que a suposição inicial levantada. E somente isso já é capaz de fazer com que a opção alternativa seja mais provável.
Chegamos, finalmente, ao final de nossa conversa. Com esses pré-requisitos acredito que qualquer pessoa possa vir a tornar-se um cético. Espero que você tenha entendido o ponto de vista exposto e perceba, agora, por que não acredito em Deus, espíritos, gnomos, vampiros e coisas do gênero. Desafio e convido você a tentar também, agora que entendeu os pressupostos, adotar uma posição de cético durante, digamos, uma semana. Que tal? Prometo que não irá se arrepender, o mundo se tornará mais simples, mecânico e real, menos fantástico e menos místico mas ainda sim lindo, perfeito e inexplicável. Espero que você possa passar nossa? lusco? a de vida adiante, pois acredito que seria melhor viver em um mundo menos fantasioso e com pessoas mais questionadoras e com mais senso crítico, que não aceitem tudo que lhes é dito como verdades absolutas e imutáveis. Acredito que nossa sociedade seria melhor assim.
Obrigado pela atenção e até um próximo bar, algum outro dia. Eu pago a conta.
- Garçom!
Sobre o autorFrancisco Prosdocimi é especialista em bioinformática pelo LNCC e mestrando em genética pela UFMG. Atualmente trabalha em bioinformática, estudando os genes transcritos de Schistosoma mansoni no laboratório de Genética-Bioquímica do Instituto de Ciências Biológicas da UFMG.
franc@icb.ufmg.br
http://www.icb.ufmg.br/~franc/cool/index.htmExtraído de: Revista Terra Redonda Número 1 - Dezembro 2002http://www.str.com.br/Revistahttp://www.icb.ufmg.br/~lgb/chico/RTR.pdfEste texto sofreu pequenas alterações gramaticais e ortográficas, sendo mantido seu sentido original.