FONTE: Scientific American Brasil, Ano 7, número 79, dezembro 2008, Capa: "Novas Estratégias para a vacina da AIDS". Paginas 24 e 25.
OBS: Se alguém não for comprar a revista, eu scaneio depois a reportagem e mando pra quem quiser, só deixar o e-mail depois do comentário ai.
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EVOLUÇÃO DO HOMEM CRISTÃO
Geneticista e também frade dominicano, Francisco J. Ayala não vê conflito entre darwinismo e fé, mas convencer o público americano disso continua um desafio.
por Sally Lehman (Sally Lehman ensina jornalismo de interesse público na Santa Clara University)
Francisco J. Ayala abre a gaveta de um armário preto e remexe descuidadamente em quase uma dúzia de pastas todas bem catalogadas por publicação e data de entrega. São ensaios sobre a evolução, que produziu nas últimas seis à oito semanas para livros e revistas populares. "Trabalhos de charlatão", ele os chama com um sorriso, gabando-se de que cada um deles não levou mais de um dia ou dois para ser concluído.
Após quase 40 anos pregando sobre a evolução para fiéis cristãos, o respeitado biólogo evolucionista da University of California, em Irvine, esmerilhou seus argumentos até ficarem bem afiados. Ele tem várias histórias e exemplos prontos, e algumas táticas de choque ao alcance das mãos. Uma entre cinco gravidezes acaba em aborto espontâneo, ele costuma lembrar nas palestras. Em seguida ele pergunta, de forma incisiva, como em uma entrevista para a revista U.S. Catholic, no ano passado: "Se Deus projetou o sistema reprodutivo humano, seria Deus o maior aborcionista de todos?". Com esses exemplos, ele explica, "eu quero combater os argumentos deles".
Ayala, 74 anos, está se preparando para um 2009 excepcionalmente cheio de compromissos. O ano marca o bicentenário do nascimento de Charles Darwin e o sesquicentenário da publicação da Origem das Espécies, e a batalha entre a evolução e o criacionismo certamente recrudescerá. Ayala diz que há uma grande necessidade de que os cientistas envolvam pessoas religiosas nas discussões. Para exemplificar, ele carrega com dificuldade o Atlas of creation, um calhamaço de 5,5kg e de dimensões de 28 x 43 cm, enviado pelo correio pelo criacionista muçulmano Adnan Oktar, da Turquia, para cientistas e museus por todos os Estados Unidos e França. O livro, ricamente ilustrado, associa a teoria de Darwin a horrores, incluindo o fascismo e o demônio.
Nos Estados Unidos, o Discovery Institute, em Seattle, que promove projetos de desenhos inteligentes, publicou livros de biologia questionando a evolução e promove o filme Expelled: no intelligente allowed (2008) para argumentar que cientistas anti-darwinistas são perseguidos. A candidata republicana à vice-presidência dos Estados Unidos, Sarah Palin, defende que o criacionismo deva ser ensinado ao lado da evolução, nas escolas. Segundo uma pesquisa da Pennsylvania State University, um entre oito professores de biologia já trata o criacionismo como alternativa válida.
Apesar dos esforços de engajamento por parte de cientistas e decisões constitucionais contra eles, os criacionistas e defensores da teoria do "projeto inteligente" não estão ficando mais fracos, adverte Ayala. "Eles estão se tornando, sim, mais visíveis."
Mas Ayala pensa que cientistas que atacam a religião e ridicularizam os fiéis - particulamente Richard Dawkins, da University of Oxford - estão cometendo um erro. Essa postura é destrutiva e fortalece os pregadores que encorajam os fiéis a escolher entre Darwin e Deus. Freqüentemente, alunos iniciantes do curso de biologia de Ayala dizem que responderão as perguntas das provas como ele deseja, mas na verdade eles rejeitam a evolução por causa de suas crenças cristãs. Anos mais tarde, depois de aprenderem mais sobre ciência, eles decidem abandonar a religião. Os estudantes parecem chegar à conclusão de que as duas abordagens são incompatíveis.
Isso o entristece, diz Ayala. Ele gostaria que os fiéis conciliassem sua fé com a ciência. Extraindo o que pode dos cinco anos preparatórios para ordenação como dominicano, Ayala usa a evolução para ajudar a responder um paradoxo central do cristianismo - como um Deus onisciente, amoroso, pode permitir o mal e o sofrimento?
A natureza é mal projetada - com estranhezas como pontos cegos dentro do olho humano e um excesso de dentes espremidos dentro de nossas mandíbulas. Parasitas são sádicos e predadores cruéis. A seleção natural pode explicar a brutalidade da natureza, argumenta Ayala, e remove o "mal" - um ato intencional de livre-arbítrio - do mundo vivo. "Darwin resolveu o problema", conclui Ayala. Ele remete aos teólogos cristãos interessados em ciência que apresentam um Deus que está continuamente envolvido no processo criativo por meio da seleção natural indireta. Ao se dirigir às pessoas religiosas em sua linguagem própria, Ayala tenta oferecer uma resposta melhor que o projeto inteligente ou criacionismo.
Ayala supera o fosso entre ciência e religião ao falar ambas as línguas muito bem - e com sotaque espanhol. Apesar de sua atividade prolífica - e que toma tempo - na arena pública, ele mantém sua genética molecular na vanguarda. Como em seus debates teológicos, ele gosta de desafiar idéias científicas aceitas. O trabalho inicial de Ayala foi o primeiro a demonstrar a natureza extensa da variação genética e a ação da seleção natural no vível de proteínas. Suas medições levaram a importantes modificações na teoria do "relogio molecular", usado para determinar o tempo em que as espécies divergiram de um ancestral comum, com base nas diferenças na estrutura protéica ou no DNA. Ele não trabalha mais em laboratório, mas colabora ativamente.
Ayala se formou em física pela Universidade de Madri, depois trabalhou no laboratório de um geneticista enquanto estudava teologia na Pontifícia Faculdade do Colégio de San Esteban, em Salamanca, Espanha. Quando foi ordenado, em 1960, já havia decidido seguir o caminho da ciência em vez da vida religiosa. No convento o darwinismo nunca foi visto como um inimigo da fé cristã. Assim, um ano depois, quando Ayala se mudou para Nova York para fazer o doutorado em genética, a visão predominante nos Estados Unidos, de uma hostilidadenatural entre evolução e religião, foi um choque para ele.
Desde então, Ayala tenta tratar do ceticismo religioso em relação à teoria de Darwin. A princípio, ele lembra, seus colegas cientistas eram desconfiados e assumiam a posição que pesquisadores não deveriam entrar em discussões religiosas. Em 1981, quando o legislativo do estado de Arkansas votou por dar ao criacionismo um espaço igual nas escolas, o sentimento começou a mudar. A National Academy of Sciences preparou um dissiê amicus curiae (amigo da corte papal) para um caso na Suprema Corte, envolvendo a "Lei da Criação" do estado da Louisiana, e pediu a Ayala que liderasse a empreitada. O livreto se tornou o Science and creationism: a view from the Natonal Academy of Sciences, de 1984.
Para a segunda edição, em 1999, Ayala apresentou a idéia de incorporar as palavras de alguns teólogos, mas lembra: "Quase fui devorado vivo". Na terceira edição, publicada neste ano, uma seção apresenta declarações de quatro denominações religiosas e três cientistas sobre a compatibilidade da evolução com as crenças religiosas.
Ayala está novamente dando aos seus colegas o que pensar ao ingressar no conselho consultivo da John Templeton Fondation, que destinou US$ 70 milhões em verbas, apenas no ano passado, para pesquisas e programas educativos "envolvendo as maiores questões da vida". Alguns cientistas se queixam de que a principal missão da organização é injetar religião na ciência. Mas Ayala defende o interesse da Templeton ao relacionar ciência à vida religiosa. A fundação "começou a fazer coisas muito boas nos últimos anos", justifica.
Mesmo assim, alguns filósofos da ciência, como Philip Kitcher, da Columbia Universitym acreditam que a evolução e a crença em um criador não podem coexistir. Kitcher admira Ayala, mas se queixa de que "ele tem resquícios de tendências sobrenaturalistas". Para outros, a abordagem de Ayala, de debater questões teológicas e explicar claramente a ciência, não basta. Quando dois terços do público estão comprometidos com o criacionismo, argumenta a bióloga evolucionista da Stanford University, Joan E. Roughgarden, a situação é preocupante. Em 2006, Roughgarden escreveu o que chama de "livro religioso", onde detalha idéias e exemplos da evolução escritos na Bíblia. Filha de missionários episcopais, Roughgarden diz que se encontra com os fiéis na área deles - e até já fez sermões no púlpito sobre a evolução. O centro do debate não se encontra em conceitos teológicos como a explicação do mal, ela insiste, mas nos bancos das igrejas.
Às vezes Ayala parece pronto para ir até lá, como quando fala da visão de Deus como autor do universo. Mas ele não está disposto a afirmar ou negar uma crença pessoal em Deus, preferindo ater-se à filosofia. Estão dizendo para pessoas inteligentes que a fé é incompatível com a ciência. É sua meta, diz Ayala, ajudar os fiéis a ver a evolução como aliada.