O valor histórico de Tintim “No País dos Sovietes”Quando morei em Roma, entre 1991 e 1992, houve uma polêmica interessante a respeito da restauração do teto da Capela Sistina, no Vaticano. Como se sabe, antes mesmo da conclusão do trabalho, algumas das cenas pintadas por Michelangelo chocaram a Igreja, que encomendou a outro artista pintar véus e ramos de árvores sobre o sexo de figuras retratadas. A questão que surgiu durante os trabalhos de restauro é se os “tapa-sexos” acrescentados à obra-prima deveriam ser mantidos ou removidos.
Venceu a idéia de que a restauração deveria recuperar a imagem da obra tal como fora concebida. Mas me chamou a atenção, na ocasião, a tese de alguns historiadores da arte, defensores da proposta que manter os “tapa-sexos” seria importante como forma de lembrar um episódio clássico de censura.
Lembro disso a propósito do lançamento de “No País dos Sovietes”, primeira aventura que o cartunista belga Hergé (1907-1983) escreveu com o repórter Tintim e seu cãozinho Milu como protagonistas. Como é notório, o personagem nasceu, em 1929, por encomenda do abade Norbert Wallez, diretor do “Século XX”, um jornal de inspiração católica e de direita, e sofreu críticas por reproduzir uma visão de mundo colonialista e, em alguns casos, racista.
Várias das histórias escritas para o “Petit Vingtième”, o suplemento infantil do jornal, foram posteriormente adaptadas por Hergé – ganharam novas formas, cores e tons. A única aventura jamais reformulada foi justamente a primeira, “No País dos Sovietes”, que permaneceu na versão original, em preto-e-branco, e deixou de circular na década de 30. Em 1973, Hergé autorizou a reedição de “No País dos Sovietes”, tal como a concebeu em 1929. É esta a história que ganha a sua primeira edição no Brasil (Companhia das Letras, 144 págs., R$ 42).
Lendo, entende-se o constrangimento que deve ter causado a Hergé, explica-se o fato de o cartunista ter tirado a história de circulação por mais de 40 anos e jamais ter dado nova forma a elas. As aventuras de Tintim “No País dos Sovietes” expõem um preconceito primário contra o regime comunista, que vigorava na então União Soviética. Tintim é chamado de “pequeno burguês nojento” pelo policial encarregado de matá-lo. O repórter é caçado ao longo de toda a história no esforço que não revele “a verdade” sobre os “bolcheviques” para o mundo ocidental (
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Mesmo para os fãs, “No País dos Sovietes” não deve entusiasmar. Mas a publicação da história, dentro das obras completas de Tintim, acrescenta algo importante à compreensão do trabalho de Hergé. É um retrato interessante não apenas da época em que ele vivia, mas também da sua trajetória como criador. É uma peça histórica, que tem muito mais interesse sendo contemplada e apreciada do que escondida num arquivo.
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