A ordem pelo medoFrequentemente nos deparamos com o batido argumento de que sem Deus não há moral. Geralmente os teístas formulam a questão alegando que sem Deus não há um parâmetro ético absoluto, ao que eu costumo responder mencionando que nossa moral se baseia no princípio de que todo ser humano têm um valor intrínseco que independe da existência ou não de Deus (Vejam os postas "Artigo preconceito na Folha de São Paulo" e "Artigo preconceituoso na Folha (II)").
Entretanto recentemente fui pego de surpresa por uma formulação diferente do argumento baseada não na ética exatamente, mas antes no medo:
"Não é por nada não, mas uma pessoa que acredita em Deus e mata, ou não acredita nele, e portanto acredita que não será julgado por isto, ou acredita, fazendo desdém da justiça divina, que basicamente é também uma forma de não se acreditar em Deus.
Qualquer religião condena o assassinato, então a pessoa para ser assassino deve primeiro ser ateu para cometer isto, o que não significa que todo ateu comete tais atos."
O autor aqui inverte o argumento tradicional: ele não diz que todo ateu é ou poderia ser assassino, ele diz é que todo assassino é ateu, em outras palavras, se todas as pessoas cressem sinceramente em Deus, não haveria assassinatos. Bom, sem contar os casos óbvios de pessoas que matam em nome da fé, que poderiam ser considerados fatos excepcionais, como argumentar contra isso? Dizer que a maioria da população carcerária ainda é de cristãos não faria muito efeito, ainda poderiam dizer que o cristão antes de cometer o assassinato vira ateu e depois dele, quando se arrepende, volta a ser cristão de novo. ("Provas? Evidências?" eu vou chegar nessa parte depois...)
Bom, eu não sou um assassino e nem pretendo ser. Tampouco sou psicólogo especializado em como funciona a cabeça de um assassino, ainda mais de um assassino que acredita que será punido após a morte pelo seu ato. Mesmo assim tenho duas hipóteses: a primeira é que ele simplesmente não pensa no assunto. A segunda é que ele ainda acredita que pode ser perdoado. Vamos discutir a segunda somente:
Todo cristão sabe que é pecador e que não pode viver uma vida imaculada, o único ser humano (?) perfeito foi Jesus. Sendo assim, a salvação só é possível porque Deus perdoa tudo, desde as pequenas faltas até os maiores pecados, contanto que você se arrependa sinceramente e tenha fé. De fato, muitas igrejas cristãs pregam que a fé é o único caminho para a salvaçãao, independente das boas obras. Outras dão valor às boas obras e à fé, e elas também reconhecem o perdão mesmo para os atos mais hediondos. Poucas são aquelas que admitem somente as boas obras como requisito para a salvação, portanto, é defensável que os cristãos que matam creiam que poderão compensar o assassinato através da fé e do arrependimento tardio, ou até que imaginem Deus possa entender os seus motivos (quem sabe Deus não seja um relativista?)
O argumento acima pode ser útil para discussões tête-à-tête, ao vivo, quando você não tem os infinitos recursos da internet à mão para resolver a discussão com algo mais eficiente do que argumentos: as evidências. De fato eu só perdi tempo comentando a questão do perdão para dar uma resposta mais amigável e satisfatória ao nosso interlocutor, pois para falar a verdade, nós não tínhamos nenhuma obrigação de responder o argumento de que 'para ser assassino é preciso ser ateu' para começo de conversa. Isso porque essa afirmação é verificável e, portanto, quem a invoca tem o ônus da prova. Teríamos todo o direito do mundo de em vez de responder calma e pacientemente simplesmente perguntar "Provas? Evidências? Estatísticas? Cadê?"
Teríamos o direito de respoder assim, com outra pergunta, curto e grosso. Mas será que deveríamos? Eu, pessoalmente, acho que não. Existem, infelizmente, muitos preconceitos, muita desinformação sobre os ateus na sociedade. Cada conversa que temos sobre isso é uma oportunidade valiosa de fazer um pouquinho mais para tentar dissipar esse problema. Eu tento ser sempre tão paciente e simpático quanto possível com os teístas quando converso sobre ateísmo. Inclusive, já fiz muitos amigos assim, tanto que um dos meus melhores amigos é um católico carismático dos mais devotos. Claro que não consegui desconvertê-lo de sua religião, mas ao menos é uma pessoa a menos que vai achar que todo ateu é um monstro. Quem sabe um dia na igreja não comecem a falar mal dos ateus e ele diga "Olha, não é bem assim, eu tenho um amigo que é ateu e ele é um cara legal."
Por isso, acho saudável dar a eles o benefício da dúvida e, quando possível, aceitar até a inversão do ônus da prova. Como eu disse antes, com a internet à mão podemos desmontar essa teoria não com um reles argumento, mas com evidências. Encontrei recentemente no Atheist Nexus (comunidade virtual para ateus e agnósticos, apelidada carinhosamente de "o Orkut dos ateus," eu recomendo!) uma notícia de jornal que reproduzirei traduzida para o português logo abaixo. A notícia é de setembro de 2005, um pouquinho antiga, portanto, e diz que países mais religiosos tendem a ter índices maiores de assassinato, aborto, suicídio e promiscuidade sexual, todos ações condenadas pela maioria das religiões cristãs. Por mais que seja tentador jogar essas conclusões na cara dos teístas invertendo-se a acusação, porém, eu recomendo cautela! O artigo abaixo merece algumas críticas, que formularei mais adiante.
Do The Times:
27 de setembro, 2005
Sociedades pioram 'quando têm Deus de seu lado'
Por Ruth Gledhill
A crença religiosa pode causar danos à sociedade, contribuindo com altas taxas de homicídio, aborto, promiscuidade sexual e suicídio, de acordo com pesquisa publicada hoje.
De acordo com o estudo, crença e culto a Deus não apenas não são imprescindíveis para uma sociedade saudável, como também podem de fato contribuir com problemas sociais.
O estudo contraria o ponto de vista dos crentes de que a religião é necessária para prover fundamentos éticos e morais para uma sociedade saudável.
Ele compara a performance social de países relativamente seculares, como o Reino Unido, com os Estados Unidos, onde há mais crentes em um criador do que na teoria da evolução. Muitos conservadores evangélicos nos EUA consideram o darwinismo um mal à sociedade, pois creem que ele inspira o ateísmo e a amoralidade.
Muitos cristãos liberais e crentes de outras fés sustentam que a crença religiosa é socialmente benéfica, acreditando que ela ajuda a baixar as taxas de crime violento, assassinato, suicídio, promisscuidade sexual e aborto. O benefício da crença religiosa à sociedade já foi descrito como seu "capital espiritual". Mas o estudo alega que a devoção de muitos nos EUA pode na verdade contribuir com todas essas mazelas.
O artigo, publicado no Journal of Religion and Society, um periódico acadêmico dos EUA, reporta: "Muitos americanos concordam que sua nação carola é um caso excepcional, abençoado por Deus, uma cidade luminosa no alto de uma colina que se mantém como um exemplo impressionante para um mundo cada vez mais cético.
"Em geral, altas taxas de crença e culto a um criador estão correlacionadas com taxas mais altas de homicídio, mortalidade juvenil e de jovens adultos, taxas de infecção por DST, gravidez de adolescentes e aborto nas democracias desenvolvidas.
"Os Estados Unidos são quase sempre a mais disfuncional das democracias desenvolvidas, às vezes espetacularmente mais."
Gregory Paul, o autor do estudo e cientista social, usou dados do Social Survey Programme, Gallup e outros institutos de pesquisa para atingir suas conclusões.
Ele comparou indicadores sociais como taxas de homicídio, aborto, suicídio e gravidez na adolescência.
O estudo concluiu que os EUA são a a única democracia próspera do mundo onde as taxas de homicídio ainda são altas, e as nações menos devotas foram as menos disfuncionais. Paul ainda disse que as taxas de gonorreia em adolescentes nos EUA eram cerca de 300 vezes maiores do que nos países democráticos menos devotos. Os EUA ainda sofriam de uma alta taxa de infecções por sífilis em adolescentes e adultos única entre os países desenvolvidos, conforme o estudo sugeriu.
Segundo Paul, "O estudo mostra que a Inglaterra, apesar de todos os seus problemas sociais, está se saindo bem melhor do que os EUA na maioria dos indicadores, mesmo sendo uma nação bem menos religiosa do que a América."
Ele disse que a disparidade era ainda maior quando os EUA eram comparados com outros países, incluindo França, Japão e os paíeses escandinavos. Estas nações foram as mais bem sucedidas em reduzir as taxas de homicídio, mortalidade precoce, doenças sexualmente transmissíveis e aborto, ele acrescentou.
Paul atrasou o lançamento do estudo até agora devido ao Furacão Katrina. Ele disse que a evidência acumulada por uma grande quantidade de estudos sugere que a religião de fato pode contribuir com mazelas sociais. "Eu suspeito que os europeus repudiam cada vez mais a fraca performance social dos estados cristãos", ele acrescentou.
Ele disse que a maioria das nações ocidentais se tornaria mais religiosa somente se a teoria da evolução pudesse ser derrubada e a existência de Deus provada cientificamente. Da mesma forma, a teoria da evolução não encontraria apoio majoritário nos EUA a não ser que houvesse um marcante declínio na crença religiosa, disse Paul.
"As democracias não-religiosos, pró-evolução, contradizem a máxima que uma sociedade não pode gozar de boas condições a menos que a maioria dos cidadãos creiam ardentemente em um criador moral.
"O medo generalizado de que sociedade sem Deus devem enfrentar um desastre social está, portanto, refutado."
A maior crítica que faço à notícia é quanto ao seu título, que dá a entender que maior crença religiosa implica em sociedades mais disfuncionais. Se a metodologia do estudo se limitou a comparar os EUA com outros países desenvolvidos do mundo, então não se pode chegar a essa conclusão. Os EUA são um país excepcional em muitos sentidos, de forma que não se pode estabelecer se a relação entre a religiosidade e seus indicadores sociais é de causação ou se é uma mera correlação aleatória. Por exemplo, os Estados Unidos são a única democracia desenvolvida a adotar um sistema presidencialista, em vez de parlamentarista, e nem por isso seria sensato culpar o presidencialismo pelas altas taxas de homicídio. Por que não foi feita uma comparação entre países mais religiosos da própria Europa, como Itália, Espanha e Portugal, com outros menos religiosos, como Suécia, França e Alemanha? Como diz o ditado, uma só amostra é má estatística, e não se pode concluir que a religião contribui com mazelas sociais com base somente no caso americano.
Se a notícia não permite concluir que a religião é socialmente ruim, ao menos ela permite uma conclusão que ainda é interessante para nós: altas taxas de religiosidade não impedem comportamentos socialmente nocivos, como o homicídio. Nem mesmo o ad hoc de afirmar que as pessoas deixam de acreditar em Deus ou na punição divina quando vão cometer um ato contraditório com as suas crenças se sustenta mais agora, pois como explicar que em um país altamente religioso como os EUA haja mais "ateus temporários" agindo contra os mandamentos de suas igrejas do que nos países desenvolvidos da Europa e no Japão, onde há muito mais ateus em tempo integral?
Se é que é possível tirar alguma conclusão, eu diria que o medo inspirado pela perspectiva da punição eterna não contribui para o bem estar pessoal e social tanto quanto a educação e o entendimento. O ateísmo tira de nós Deus como referência para os valores morais e como Grande Irmão cósmico, nos vigiando constantemente e nos punindo por nossas faltas. Porém, se engana quem pensa que no lugar fica só um grande vazio. Assim como a natureza, segundo Aristóteles, tem horror ao vácuo, o ser humano geralmente não se contenta com o niilismo. Assumimos então a responsabilidade de buscar referências não através da fé e do medo, mas da razão e do entendimento. E elas são muito mais fortes e sólidas.