Seu nome era Johann, mas todo mundo o chamava de José, ou melhor, “Seu Zé”, mas isso pouco importa, ele está morto.
Johann foi um soldado da Weimarth, com o final da guerra perambulou pela Europa até que, seguindo o caminho de outros familiares, veio morar no Brasil. Ele pouco falava da guerra, o estigma de ter sido um dos soldados do III Reich era o que o impedia, pelo menos assim pensávamos. Mesmo quando se embriagava evitava falar, sempre que era questionado respondia em alemão, uma língua incompreensível para todos que o cercavam.
Um dia, sóbrio e com um diagnóstico de câncer nas mãos, falou sobre a guerra. Foi a primeira e única vez que tal aconteceu. Foi só então que soubemos que ele havia desertado alguns meses antes do fim da guerra. Nas suas próprias palavras, não o fez por covardia, mas por consciência.
Ele estava cansado de tudo aquilo, e então aproveitou que seu pelotão estava próximo da fronteira suíça e fugiu para aquele país. Chegou ao Brasil na década de 60, e aqui ficou até morrer.
Ele estava arrependido, nunca ficou claro exatamente o que de tão terrível ele tinha feito, mas isso o perturbava muito. Um sujeito que presenciou uma de suas bebedeiras disse que ele falou em alemão algo sobre “crianças chorando” e “fantasmas”.
Deixemos o “Seu Zé” de lado por um instante.
O papel de um soldado na guerra é um só: matar. Entende-se, até certo ponto, que, sendo este o único objetivo conhecido, dele poderão derivar conseqüências muito piores. Os relatos de crueldades mostram que estas são comuns em todas as guerras e também em todos os exércitos. Algumas são punidas, outras incentivadas.
Um documentário da primeira guerra mundial mostra os corpos de mulheres e crianças sérvias pendurados em postes de madeira. Uma rápida pesquisa no Google nos mostra as valas onde repousam centenas de cadáveres, frutos dos conflitos étnicos entre Hutus e Tutsis. Estes são apenas dois, dentre os milhares de exemplos conhecidos.
Não sei o que se passa na cabeça daqueles que fizeram estas coisas, nem como eles lidam com elas depois de tudo terminado. Documentários e livros que trazem depoimentos de ex-combatentes nos dão uma pista. Tudo é uma questão de momento. Abre-se, durante o tempo em que durar a guerra, uma “licença” para que os sentimentos mais vis de cada ser humano venham à tona.
Quando tudo termina, alguns conseguem esquecer, outros não. Uma minoria, talvez, sinta saudades desse tempo; seriam eles psicopatas? Não sei. Até para os próprios soldados é difícil distinguir, alguns depoimentos fazem menção a homens cuja crueldade extrapolava a todas as medidas.
De uma maneira ou outra, a guerra marca a todos que dela participam como combatentes. Muitos homens são destruídos por ela. É a mais cara de todas as criações humanas, pois a única moeda que ela aceita é a vida humana.
“Seu Zé” não conseguiu esquecer. A guerra ainda estava viva nos seus pensamentos e alimentava seus pesadelos. Os fantasmas, oriundos de suas lembranças, ainda assombravam sua vida, e com certeza o acompanharam até o seu derradeiro momento. Lembro que, na última vez em que o vi, ele me vez prometer que rezaria uma prece pela sua alma.
Esta semana soube que ele morreu em 2001.
Este tópico é a prece que eu prometi a ele.
Adeus, Johann.