Autor Tópico: Uma prece para Johann.  (Lida 966 vezes)

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Offline Dodo

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Uma prece para Johann.
« Online: 07 de Fevereiro de 2009, 10:31:00 »
Seu nome era Johann, mas todo mundo o chamava de José, ou melhor, “Seu Zé”, mas isso pouco importa, ele está morto.

Johann foi um soldado da Weimarth, com o final da guerra perambulou pela Europa até que, seguindo o caminho de outros familiares, veio morar no Brasil. Ele pouco falava da guerra, o estigma de ter sido um dos soldados do III Reich era o que o impedia, pelo menos assim pensávamos. Mesmo quando se embriagava evitava falar, sempre que era questionado respondia em alemão, uma língua incompreensível para todos que o cercavam.

Um dia, sóbrio e com um diagnóstico de câncer nas mãos, falou sobre a guerra. Foi a primeira e única vez que tal aconteceu. Foi só então que soubemos que ele havia desertado alguns meses antes do fim da guerra. Nas suas próprias palavras, não o fez por covardia, mas por consciência.

Ele estava cansado de tudo aquilo, e então aproveitou que seu pelotão estava próximo da fronteira suíça e fugiu para aquele país. Chegou ao Brasil na década de 60, e aqui ficou até morrer.

Ele estava arrependido, nunca ficou claro exatamente o que de tão terrível ele tinha feito, mas isso o perturbava muito. Um sujeito que presenciou uma de suas bebedeiras disse que ele falou em alemão algo sobre “crianças chorando” e “fantasmas”.

Deixemos o “Seu Zé” de lado por um instante.

O papel de um soldado na guerra é um só: matar. Entende-se, até certo ponto, que, sendo este o único objetivo conhecido, dele poderão derivar conseqüências muito piores. Os relatos de crueldades mostram que estas são comuns em todas as guerras e também em todos os exércitos. Algumas são punidas, outras incentivadas.

Um documentário da primeira guerra mundial mostra os corpos de mulheres e crianças sérvias pendurados em postes de madeira. Uma rápida pesquisa no Google nos mostra as valas onde repousam centenas de cadáveres, frutos dos conflitos étnicos entre Hutus e Tutsis. Estes são apenas dois, dentre os milhares de exemplos conhecidos.

Não sei o que se passa na cabeça daqueles que fizeram estas coisas, nem como eles lidam com elas depois de tudo terminado. Documentários e livros que trazem depoimentos de ex-combatentes nos dão uma pista. Tudo é uma questão de momento. Abre-se, durante o tempo em que durar a guerra, uma “licença” para que os sentimentos mais vis de cada ser humano venham à tona.

Quando tudo termina, alguns conseguem esquecer, outros não. Uma minoria, talvez, sinta saudades desse tempo; seriam eles psicopatas? Não sei. Até para os próprios soldados é difícil distinguir, alguns depoimentos fazem menção a homens cuja crueldade extrapolava a todas as medidas.

De uma maneira ou outra, a guerra marca a todos que dela participam como combatentes. Muitos homens são destruídos por ela. É a mais cara de todas as criações humanas, pois a única moeda que ela aceita é a vida humana.

“Seu Zé” não conseguiu esquecer. A guerra ainda estava viva nos seus pensamentos e alimentava seus pesadelos. Os fantasmas, oriundos de suas lembranças, ainda assombravam sua vida, e com certeza o acompanharam até o seu derradeiro momento. Lembro que, na última vez em que o vi, ele me vez prometer que rezaria uma prece pela sua alma.

Esta semana soube que ele morreu em 2001.

Este tópico é a prece que eu prometi a ele.

Adeus, Johann.
« Última modificação: 07 de Fevereiro de 2009, 10:33:49 por Dodo »
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Alfred E. Newman

Offline FZapp

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Re: Uma prece para Johann.
« Resposta #1 Online: 07 de Fevereiro de 2009, 10:54:00 »
Seu 'Paco'

Depois de sair da casa atrás do Palmeiras onde morei até me casar, fui morar num canto entre a Barra Funda e o começo de Higienópolis, perto do malfadado 'minhocão', a conexão da Radial Leste e 23 de Maio com a Zona Oeste.

E embaixo do minhocão havia uma pizzaria/churrascaria dirigida por 'seu' Paco. Seu Paco fazia uma 'costela no bafo' que comprei muitas vezes, e inclusive foi a encomenda que levei quando fiz o meu humilde casamento.

'Paco' é um apelido espanhol para Francisco, assim como 'Chico' em português e outras regiões de fala hispana. Quando o conheci teria mais de 70 anos, e atendia todo dia. O via quando saía perto das sete de manhã, e quando voltava pelas seis da tarde, ele estava ainda na porta da churrascaria.

Como descobrimos rapidamente com o meu pai que falava Espanhol, falamos com ele várias vezes. Era Espanhol, natural das ilhas Canárias, e tinha vivido em Madri. Mas tempo depois imaginei que podia seja sefaradí, ou seja, dos judeus espanhóis. Isso porque tinha no pulso esquerdo uma antiga tatuagem de um número e uma estrela de Davi.

Lembranças da guerra ? talvez. As vezes que o sondei mudou de assunto rispidamente. Não perguntei s era judeu, e não quis me responder se veio após a Guerra, e outra vez com o meu pai disse estar no Brasil há muito tempo e não lembrar de mais nada. Mas outra vez falamos e dava para sentir na voz a saudade que tinha de Espanha.

Ele se recusou também a contar o que aconteceu, embora eu saiba, e todos saibamos, que tatuagens assim ocorreram na Europa na Segunda Guerra por vários motivos, geralmente para ser identificado de um campo de concentração. Nunca soube o que aconteceu com o Paco, e agora a churrascaria é só pizzaria.


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Offline Dodo

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Re: Uma prece para Johann.
« Resposta #2 Online: 07 de Fevereiro de 2009, 11:20:17 »
 :'(

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Alfred E. Newman

Offline Luiz Souto

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Re: Uma prece para Johann.
« Resposta #3 Online: 07 de Fevereiro de 2009, 22:48:12 »
Aleksandra Ivanovna Lakeef foi a minha primeira professora de russo , quando eu tinha uns 16 anos. Ela era vizinha de uma colega de colégio que me apresentou quando soube que eu gostava de literatura russa. Durante dois anos eu tinha aula uma vez por semana com aquela simpática babuska de olhos azuis ( os olhos mais azuis que já vi!) onde aos poucos aprendi o básico do russo e muito da vida dela nas nossas conversas que tomavam quase o tempo todo da aula.
Dona Aleksandra tinha 78 anos quando a conheci , era formada em História e Geografia , fluente em alemão e inglês, e viveu na Sibéria por algum tempo junto com o irmão que estava em exílio interno , antes da 2ª Guerra. Autorizada a voltar para uma cidade maior estava na Ucrânia como professora quando houve a invasão alemã e foi feita prisioneira ; transportada para os campos de trabalho na Alemanha sempre se recordava das paradas do trem que carregava os prisioneiros por ameaça de bombardeios e de seu baú , cheio de livros , que confiscaram.
No campo de trabalho , ao saberem que conhecia o alemão , lhe deram como função traduzir para o russo as ordens escritas em alemão ; por esta tarefa tinha direito a duas batatas mofadas em vez de uma na água quente que chamavam de sopa... Ao final da guerra  , pelo tratado de Ialta , teria que ser repatriada para a URSS mas soube que a consideravam colaboracionista ( por ter trabalhado para os alemães) e o que a esperava era uma bala na nuca. No campo conhecera um outro prisioneiro russo que se acidentara e do qual ela tratara na enfermaria , junto com ele fugiu do campo de internamento e foram para uma cidade portuária ( não me lembro qual) para tentar um navio que saísse da Europa ; embora tivessem algum dinheiro a única hospedaria com vaga não os aceitaria por não serem casados : acharam um cartório , casaram , alugaram o quarto ( segundo D. Alexandra viveram um casamento feliz até a morte dele , no fim da dácada de 70).
O primeiro navio em que conseguiram embracar vinha para a América do Sul e desembarcaram no Brasil , no Rio de Janeiro ( e ela ,católica ortodoxa ,sempre recordava que fora emocionante ver um Cristo os recebendo de braços abertos...).
Conseguiu emprego como costureira na lavanderia de um hospital onde trabalhou até se aposentar , tendo se naturalizado brasileira  , e mesmo idosa não faltava às missas na igreja ortodoxa da Lapa onde cantava no coro.Na época de Gorbachov conseguiu permissão para visitar a URSS , andar de novo em Leningrado e Moscou , encontrou o seu último parente vivo ( um sobrinho ) e por ele a informação que seu pai morrera sob Stalin em um gulag.
Quando entrei para a faculdade tive que parar as aulas. A ultima vez que estive com ela  , pouco tempo depois ,foi em um quarto da Santa Casa onde fora internada por um AVC , comatosa e aguardando uma vaga em uma clínica de apoio , onde veio a falecer.

Até hoje , toda vez que leio algo russo ( como a biografia de Bulgákov que trouxe para ler neste plantão) converso mentalmente com ela. Só morre quem é esquecido.
Se não queres que riam de teus argumentos , porque usas argumentos risíveis ?

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Offline Moro

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Re: Uma prece para Johann.
« Resposta #4 Online: 07 de Fevereiro de 2009, 23:10:52 »
triste a guerra.  Nada mais triste que isso.

Quando eu penso em alguma coisa eu meio que sinto a sensação, não sei se isso é comum ou não. E quando penso na guerra, alguém me separando de minha familia, meus filhos... é um pensamento horrível, imaginem quanto isso deve ser doloroso na vida real.

Não sei como um sem número de generais, reis e outros veneravam a guerra. Será que nunca pensaram no que é a dor de uma mãe, um pai, um filho? Ou mais perto de nós, como alguém pode manter outra pessoa sequestrada, matar... isso tudo parece non sense para mim, eu acho realmente incrível que isso possa existir

E quando alguém me justifica um idiota como Che ou qualquer outro assassino de direita/esquerda com qualquer argumento, eu entendo que as pessoas não conseguem se ver na pele das outras
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Offline Arcanjo Lúcifer

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Re: Uma prece para Johann.
« Resposta #5 Online: 07 de Fevereiro de 2009, 23:13:54 »
Muito tempo atrás eu conheci um velho (Já falecido há anos) que era amigo de meu avô tb desde o tempo da guerra.

Sei a história por cima e sem muitos detalhes, mas foi assim:

Era um cara italiano que aos vinte e poucos anos veio para o Brasil sozinho com apenas uma mala de roupas logo que saiu de um campo de prisioneiros e parou na porta casa dos meus avós para pedir ajuda. Sendo italianos e sabendo da situação , forneceram estadia por alguns dias até que ele arrumasse um emprego e se mudasse.

Ele era um tripulante de submarino que estava em um comboio de uns quatro submarinos e deram de cara com uma frota de navios que começaram a lançar bombas de profundidade, então o capitão mandou descerem até o fundo do mar e ficarem em silêncio com as luzes apagadas para economizar baterias e ar, ficaram lá deitados  no chão com a escuridão total, o quanto tempo foi possível com as bombas balançando o submarino a cada estouro até que o capitão deu ordem de subirem e se renderem.

Foi o único a não ser afundado e ele ficou com tanto trauma de água e escuridão que só dormia com a porta do quarto aberta e com luzes acesas até o fim da vida.

O filho dele (Que se casou com uma brasileira) já em idade adulta comprou uma casa com piscina, ele mandou aterrar com a desculpa de fazer uma horta de fundo de quintal.




Offline Spitfire

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Re: Uma prece para Johann.
« Resposta #6 Online: 09 de Fevereiro de 2009, 19:19:38 »
Os primos da minha avó eram poloneses de nascimento, migraram para o Brasil ainda crianças no início do sec. XX, eram 5 irmãos... quando eclodiu a WWII eles entraram para uma tropa de voluntários canadenses que arregimentava pessoas cujo o país de origem tivesse sido invadido por Hitler... foram como tropa de retaguarda para remoção de feridos e mortos mas chegaram a entrar em combate. Foram 5 irmãos e voltaram os 5 vivos para o Brasil. Cheguei a conhecê-los e ouvi inúmeras histórias do campo de batalha. Destes 5 somente 1 ainda é vivo (os outros morreram da idade mesmo, tiveram uma longa vida).

Também conheci o pai de um amigo meu que foi soldado do exército regular alemão (eles não gostavam muito de Hitler) e estava sitiado na Grécia quando acabou a guerra... voltou a pé para a Alemanha, feito que lhe custou a amputação de um dos pés... migrou para o Brasil no pós guerra e vive até hoje. Contou-me histórias incríveis de negros que serviram no exército alemão ( UIA! Embora Hitler considerasse negros como inferiores, reconhecia sua pureza étnica).

Também conheci 2 praçinhas da FEB...  1 capitão e o outro tenente (na época). Tem uma história recente muito engraçada envolvendo o tenente, o filho dele foi militar de carreira e chegou ao posto de general... em uma festa de milicos estava o velho tenente com somente 1 "penduricalho" na farda enquanto um bando de alto oficiais desfilavam seus "penduricalhos" de cada curso bobo que tinham feito... um outro general, gozador, chegou para o tenente e tirou sarro da cara do velhinho perguntando o que significava aquela medalhinha... o velhinho só olhou para ele e disse: Mérito em combate (o sonho de qualquer militar)... sumiu o general no mar de gargalhadas de seus amigos.  :histeria:
« Última modificação: 09 de Fevereiro de 2009, 19:27:25 por Spitfire »

Offline FZapp

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Re: Uma prece para Johann.
« Resposta #7 Online: 09 de Fevereiro de 2009, 23:05:59 »
Me fez lembrar de uma anedota que se diz do Borges. Ele escrevia numa coluna literária e uma vez disse sobre generais argentinos que 'jamais tinham sequer ouvido o zunido de uma bala em combate'. Aí um cara do exército escreveu indignado que quem era ele para escrever isso, e deu uma reprimenda e tal. Pelo qual Borges escreveu sobre ter recebido essa resposta, e se arrependeu: "Eu estava enganado. Um general argentino, uma vez, ouviu o zunido de uma bala em combate'.

:)
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Offline Wolfischer

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Re: Uma prece para Johann.
« Resposta #8 Online: 09 de Fevereiro de 2009, 23:42:33 »
No "Policarpo Quaresma" de Lima Barreto há um militar que toda hora cita batalhas da guerra do Paraguai, e quando perguntado se tinha participado daquela batalha respondia "quase, tive que voltar (por um motivo ou outro) dias antes, mas o capitão Fulano me disse que foi assim e assim..."

Offline Moro

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Re: Uma prece para Johann.
« Resposta #9 Online: 12 de Fevereiro de 2009, 23:23:43 »
Tenho um amigo que ficou alguns anos no exército. Ele me contou que em um treinamento, apareceu um grinco com um distintivo e, ao ser perguntado o que aquele distintivo significava, respondeu algo como "Vinte Saltos de paraquedas". Ao dizer isso, foi ironizado por um brasileiro que falou que tinha algo como duzentos saltos.

Reposta: Você tem duzentos saltos em combate?? Silêncio...

E na verdade, ainda bem que nosso amigo brazuca só tem saltos de treino mesmo
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