Uma pesquisa desenvolvida por Daniel Cerqueira está traçando um paralelo entre as profissões e as mortes no Brasil. Os dados preliminares, especificamente sobre o suicídio, são alarmantes.
"No Brasil, a gente concluiu o seguinte: que em 2016, enquanto na população civil no Brasil há uma taxa de suicídio de 5,5 por 100 mil — ou seja, para cada 100 mil habitantes, 5,5 pessoas, em média, se suicidam — no Brasil essa taxa em 100 mil para policiais é de 15,3. Ou seja, para cada 100 mil policiais, 15,3, em média, se suicidam", diz Cerqueira. O pesquisador acredita que se esse levantamento for colocado apenas para os policiais militares, a taxa deve ser ainda maior.
Para ele, o que determina essa situação, portanto, não é o trabalho de policial, mas, sim, o entorno e o contexto da atividade, seja no apoio ao policial, seja nos serviços prestados pelo Estado.
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"No Rio de Janeiro, se você for olhar qual é a taxa de homicídios no Rio de Janeiro, ela está um pouco menor do que 40 para cada 100 mil habitantes. Agora, se você olhar a taxa de homicídios de policiais no Rio de Janeiro, ela é de 277 por 100 mil habitantes. Então, qual é a situação que nós temos? Nós temos uma política e uma retórica irresponsável da guerra, que faz com que esses policiais tenham incentivo de entrar nessas comunidades atirando e matando, e, de fato, a polícia mata muito no Brasil — em relação aos Estados Unidos, ela mata seis vezes mais do que o policial americano", aponta.
Para exemplificar as consequências do que chama de "situação limite" para o policial, o pesquisador do IPEA apresenta números relacionados aos policiais do Espírito Santo, onde, em 2017, houve uma greve informal de policiais.
"O Espírito Santo, em 2015, teve um policial que se suicidou. Em 2016, nenhum. Em 2017, cinco policiais se suicidaram, que foi exatamente quando teve a crise, aquela greve da polícia. Para você ter uma ideia, em 2016, nove policiais lá no Espírito Santo tinham tentado suicídio, um ano depois, ou seja, em 2017, que foi o ano da greve, 32 policiais tentaram suicídio", aponta Cerqueira.
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A pesquisadora da UERJ, Dayse Miranda, acredita que o estado de São Paulo é um dos que avançou "em termos de programas e em termos de serviços que você não vê no Brasil inteiro" em relação à saúde mental dos policias.
Entretanto, ela mesma ressalta que o estado tem registrado um aumento nas taxas de suicídio e explica que tem dificuldades para pesquisar o problema no estado.
"[Para] fazer uma pesquisa sobre esse tema em São Paulo, nós pesquisadores encontramos muita resistência por conta de um tabu […]. Entender esse problema está associado às próprias engrenagens de um sistema que tem algo a desejar", aponta Miranda.
A pesquisadora não é a única a enxergar esse problema.
"É um tabu discutir suicídio. Quando um policial militar morre em serviço, vai o comandante do batalhão, os colegas, vai muita gente para prestigiar o policial morto. Há um mausoléu de policiais mortos aqui em São Paulo. Quando um policial comete suicídio não vai quase ninguém, porque ainda vê no ato uma fraqueza. Então não vai prestigiar a fraqueza", relata em entrevista à Sputnik Brasil, Benedito Mariano, ouvidor que lidera a Ouvidoria das Polícias do Estado de São Paulo.
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Mariano tem sido uma das vozes a pedir mudanças na política paulista de combate ao suicídio. Apesar da ciência em diversos setores sociais acerca do problema, poucas pesquisas conseguem gerar dados sobre a questão. Em 2019, a iniciativa de Mariano gerou um relatório da Ouvidoria paulista com números alarmantes sobre o suicídio de policiais no estado de São Paulo. Os dados foram apresentados para o general João Camilo Pires de Campos, atual secretário de Segurança Pública paulista, e medidas são aguardadas.
"Nos dois últimos anos, 2017 e 2018, 71 policiais em São Paulo cometeram suicídio — 20 policiais civis e 51 policiais militares", apresenta Mariano.
Para o ouvidor, o suicídio entre policiais é um problema antigo, porém, não vem sendo tratado de forma adequada. Ele aponta que entre 1990 e 2000, em média, 15 policiais militares cometeram suicídio por ano. Já na Polícia Civil, apesar de não haver dados históricos, Mariano detalha que a média de 10 suicídios por ano, de 2017 e 2018, pode ser a maior em 50 anos.
Dentro da Polícia Civil, a Ouvidoria já levanta a hipótese de que a diminuição do efetivo em cerca de 10 mil homens desde a década 1990, ao lado do aumento da demanda de trabalho, pode ter contribuído com o aumento dos suicídios.
O ouvidor também corrobora a tese de Dayse Miranda e a denúncia de Alexandre Félix e diz que há pouco acompanhamento da saúde mental de policiais civis. O objetivo da Ouvidoria agora é a criação de um diagnóstico detalhado dos suicídios com a intenção de se propor políticas adequadas. A expectativa do ouvidor é de que 30% das famílias dos policiais que se mataram no último biênio sejam entrevistadas a fim de gerar um diagnóstico detalhado da situação.
Para Mariano, a atual política de combate ao suicídio nas polícias em São Paulo é equivocada, pois dentro da Polícia Militar os acompanhamentos psicológicos são feitos por oficiais.
"É muito difícil um praça que está com problema de saúde mental ir para um médico major, tenente-coronel e capitão e falar do seu problema. Porque mistura as questões hierárquicas. Por isso que é importante ser feito por profissionais de fora da instituição", defende Mariano.
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Para mudar o rumo desses dados, a Ouvidoria da polícia paulista quer que haja uma alteração na abordagem realizada pelos comandos policiais para o tratamento dos seus agentes e recomendou para a Secretaria de Segurança Pública a criação de um grupo de trabalho de profissionais de fora das instituições policiais para diagnosticar principalmente esses últimos dois anos.
"E a partir desse diagnóstico, criar uma política de prevenção e que mantenha um grupo de profissionais de fora da polícia para acompanhar a saúde mental dos policiais civis e militares", aponta Mariano.
Para o ouvidor, o aumento do suicídio na Polícia Militar paulista é uma "prova inequívoca" de que mudanças são necessárias na política de tratamento da saúde mental de policiais.
"Então, isso demonstra que a saúde mental do policial não melhorou, ela foi piorando e piorou nos últimos dois anos", conclui Mariano.
Polícia baiana alega que número de suicídios tem diminuído
Em visita ao quartel da Polícia Militar da Bahia, em Salvador, a Sputnik Brasil foi recebida pelo coronel Marcos Nolasco, coordenador de Saúde da Polícia Militar da Bahia, e sua equipe.
Nolasco apresentou dados sobre o trabalho da Polícia Militar da Bahia, a maior fora da região Sudeste, dizendo que o número de afastamentos por problemas psiquiátricos na corporação não está entre as principais causas de desligamento temporário de policiais. Isso, segundo ele, ajudaria a explicar uma tendência de queda nos suicídios entre os PMs baianos.
"A gente conseguiu mapear, eu tenho aqui os dados e posso te passar, de 2006 para cá todos os suicídios de policiais militares. Mas não é tão grande. Estamos um pouquinho acima da média de 5,7 suicídios a cada 100 mil habitantes, que é a média brasileira, e a Bahia é uma das que têm menores. Se eu pegar de 2006 para cá, é 4,75 [por ano], sendo que se eu pegar de 2015, 2016, 2017 e 2018, dá quatro. Ou seja, eu posso falar para você que de 2015, 2016, 2017 e 2018 nós conseguimos, inclusive, diminuir o número de suicídios", explica o coronel.
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Segundo Nolasco, a diminuição seria, possivelmente, uma consequência de ações aplicadas pelo atual comando da corporação. Além de um programa especial no mês de setembro, em consonância com o movimento mundial de combate ao suicídio no mês, o Setembro Amarelo, há ações ao longo do ano que tentam identificar, através dos oficiais, riscos psiquiátricos entre os policiais. Todas as medidas são realizadas internamente, o que em São Paulo, por exemplo, já não surte efeito, segundo a Ouvidoria das Polícias do estado.
"É apenas uma hipótese, eu não posso garantir, do ponto de vista científico eu não posso. Mas de 2015, 2016, 2017 e 2018 nós só tivemos quatro suicídios por ano. O que ainda é muito, porque eu queria zero, eu queria zero, não tenho dúvida que a gente queria zero. Mas ela é menos do que a média histórica e talvez esteja relacionada com esses três fatores que estou te falando: uma é a diminuição do ingresso de pessoas drogadas, que é o exame preventivo feito lá na admissão; uma preocupação maior com o mês de setembro, Setembro Amarelo; com esses exames periódicos, o que é feito mesmo fora do Setembro Amarelo. Então esse conjunto de coisas pode ter influenciado para reduzir de 4,75 para quatro suicídios por ano", apresenta o coordenador de Saúde da PM baiana.
Ele, no entanto, se diz cuidadoso e acredita que o "ponto de vista estatístico" seja o ideal. O que, segundo ele, só será obtido com o acúmulo de dados dos anos seguintes, tendo em vista que há uma variação nos números de suicídios que vão de oito a dois por ano.
Apesar disso, ele diz acreditar que os casos de suicídio nem sempre estão relacionados ao trabalho na polícia, especificamente, e dá um exemplo de um caso de suicídio recente dentro da corporação.
"A grande maioria dos policiais que se suicidam são problemas particulares. Nós tivemos esse caso que foi dramático no ano passado dessa policial que brigou em casa com o marido, foi para o serviço, chegou ao vestiário e deu um tiro na cabeça. Mas assim, com problemas que qualquer pessoa pode ter. Infelizmente, ou felizmente, o policial anda armado", conta.
Nolasco também explicita uma percepção comum entre pesquisadores do tema, que aponta que a presença constante da arma de fogo pode ser um fator de risco em situação de estresse pessoal.
"O policial, ele está com a arma. Ele está com arma. Às vezes, se ele fosse outra pessoa que brigasse com a mulher, ou brigou por alguma outra coisa, e ele não estivesse com a arma no momento, ele poderia […] aquele momento de raiva, desespero, passar", diz Nolasco.
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As ocorrências de suicídio, explica o oficial da polícia baiana, são fatos conhecidos por toda a corporação e circulam em grupos de WhatsApp da PM baiana com velocidade, espalhando um sentimento de luto e "letargia" imediatamente.
"Os suicídios são coisas que chocam toda a nossa tropa, nós somos uma unidade fechada. Então, quando tem um suicídio todo mundo fica sabendo, todo mundo fica sabendo. Vai para todos os grupos […] Hoje, com o WhatsApp, pior ainda. Todo mundo fica sabendo. Leva uma letargia, uma sensação de tristeza para toda a tropa. Do comandante ao soldado, lá mais longínquo", relata Nolasco.
O Coronel também afirmou que a questão de hierarquia no momento do atendimento psicológico aos policiais não tem a influência que se imagina, apesar de reconhecer que pode criar receios. Ele explica que na corporação baiana muitos dos psicólogos seriam de baixa patente, e mesmo os de alta patente não colocariam a hierarquia sobre sua obrigação médica.
"O pessoal pensa que a tragédia para o policial militar é sempre a troca de tiros, né? Mas eu sempre falo que isso é quem nunca foi em um atendimento de policial militar. Porque a troca de tiros é momentânea, instantânea, você morre ou mata, mas está ali, passou. Mas o problema é você ver muitas misérias, de crianças, de pessoas abandonadas e de criancinha jogada no lixo. Isso choca muito mais do que uma troca de tiros para a maioria dos policiais", conclui.
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