A Justiça brasileira e as classes sociaisNão me lembro de ter presenciado - no judiciário brasileiro - cena tão horrenda e patética quando a que protagonizaram ontem os ministros Joaquim Barbosa e Gilmar Mendes.
Independentemente do mérito da questão em pauta - uma pendenga a respeito de funcionários públicos no Paraná - o ministro Joaquim Barbosa expôs no plenário do Supremo a opinião de parte significativa da sociedade brasileira: o descolamento da justiça - ou de quase toda ela - com a sociedade, sobretudo com as classes mais pobres.
Joaquim Barbosa que carrega a honra de ser o primeiro negro a chegar ao Supremo sabe bem dos degraus que existem entre as classes sociais, cores de pele, etnias, graus de instrução, gêneros, no Brasil. Por outro lado, o ministro Gilmar Mendes tem exposto o Supremo Tribunal á chacota pública, ao desgosto, a incredulidade, ao desrespeito como nenhum ministro antes dele.
Curiosamente, Gilmar Mendes vem de uma região que conheço bem, que é o interior do Mato Grosso, mais específicamente de Diamantino (cidade que ostentou durante um bom tempo o título de maior município do mundo). Em poucos lugares o poder econômico e a violência sem punição são tão impactantes, ativos, explicitos e descarados quanto nessa região. O Mato Grosso se tornou nas últimas décadas o que era o sertão nordestino na época dos coronéis. É virtualmente uma terra sem lei, o que não deixa de ser um paradoxo quando o presidente do Superior Tribunal Federal é de lá, da família que controla o poder regional.
Como todo paradoxo ele somente é aparente. No fundo ele revela os nexos e os sentidos inegáveis, mas que a sociedade tende a se furtar de ver, ou que as classes dominantes tentam a todo custo esconder. Joaquim Barbosa está profundamente errado quando acusa Mendes de destruir a imagem do judiciário brasileiro. Em verdade, por mais inusitado que possa ser, o atual presidente do STF encarna e expõe a justiça brasileira tal como ela efetivamente é: indiferente, insensível, leniente com os poderosos, rigorosa com os pobres, suave com os delitos de colarinho branco (corrupções, desvios, improbidades), dura e implacável com os de subtração de bens pessoais (um furto, um assalto), desregulamentada e subjetiva. Uma mulher é capaz de passar meses presa por furtar um pote de margarina, mas um corrupto de bilhões transita livre como um passarinho.
Mas essa postura do judiciário brasileiro manifesta suas origens históricas e suas raízes sociais.
Até a Independência do Brasil toda formação dos homens da justiça se dava em Portugal, mais específicamente em Coimbra. Obviamente que para um jovem chegar até os bancos da Universidade, naquela época, era necessário ter posses, muitas posses. Em São Paulo mesmo, no começo do século XIX, havia apenas três homens que se gabavam de ter passado por Coimbra.
Com a Independência o governo do Império decidiu estabelecer dois cursos de direito no Brasil, um para atender ao norte outro para atender o centro-sul. Depois de longas discussões no parlamento decidiu-se pelas cidades de Olinda em Pernambuco e São Paulo. Em 1828 era inaugurado o curso de Direito do Largo de São Francisco.
Desde então os cursos se multiplicaram, mas um fato permanece. Os cursos mais conceituados, aqueles que formam homens e mulheres que irão ocupar os principais postos do poder judiciário no país, são compostos de oriundos das elites brasileiras.
Até ai, por si só, não há um demérito de origem. O problema são as implicações disso. Além da óbvia proteção classista, que julga com pesos diferentes aqueles que são do mesmo grupo social e os que não são (e não me digam que as leis são impessoais, pois são interpretativas, e as interpretações são socialmente marcadas), existe a própria “conformação” das leis. Leis que permitem que processados por corrupção respondam em liberdade, mas que elementos que furtaram supermercados não, são escritas a luz da proteção da classe social de onde provém os legisladores e membros do legislativo.
A impressão popular é precisa: qualquer cidadão comum ficaria preso se cometesse o mesmo crime, da mesma forma, que um Pimenta Neves. É mais fácil escapar de um processo por desvio de verbas públicas do que por atraso de pensão alimentícia.
Mas ainda há mais nisso. Os membros do judiciário brasileiro, pela formação elitista que recebem nos cursos de direito, se deslocam da realidade e travam discussões “hermeneuticas” que não atendem aos interesses da sociedade, como, por exemplo, a recente decisão de proibir a prisão de acusados até o julgamento da última instância do processo, excetuando-se casos de risco.
E isso é um traço de parte das elites brasileiras: a indiferença para com a realidade, a não ser que seus interesses sejam envolvidos. Nesses casos, bem como regularmente faz o ministro Gilmar Mendes, a lei é torcida e retorcida em favor de seus pares, sob a alegação de que são interpretações em prol da sociedade (leia-se: seus próximos).
A velha máxima ainda vale: Para os amigos tudo, para os inimigos a lei.
E assim é. Quando o ministro Joaquim Barbosa convidou seu parceiro de STF a andar nas ruas pediu algo que, históricamente, está muito além do que os membros do judiciário (sua grande maioria, é claro) podem e estão acostumados a fazer.
Quando alguns articulistas se dizem preocupados com a perda de legitimidade dos poderes diante da sociedade na realidade se equivocam parcialmente. Essa legitimidade sempre foi circunstancial, e no caso do unico poder que não é eletivo - o judiciario - a ausência de legitimidade sempre houve e sempre foi plena. Apenas, antes, estas coisas não chegavam aos ouvidos da população de forma tão escandalosa e em tempo real, era só de “ouvir falar”.
Por isso o que o judiciário precisa não é de uma “restauração”, pois não há o que se restaurar, ele esta onde sempre esteve. Melhor seria dizer uma “revolução”, que conseguisse eftivamente fazer do judiciário um poder que representasse todas as classes sociais brasileiras, assim como - bem ou mal - ocorre no executivo e no legislativo. Mas, talvez isso esteja ainda mais distante do que termos os outros dois poderes honestos e corretos na execução de suas obrigações.
No final das contas, devemos reconhecer, resta para o judiciário fazer o serviço sujo que é, de modos mirabolantes, evitar que toda e qualquer corrupção cometida pelos donos do poder seja punida. Nisso eles são profundamente zelosos. Então é justo que, por fim, os outros poderes protejam o judiciário, sobretudo os membros do STF, e que a maioria de seus ministros condene Joaquim Barbosa.
Exatamente por fugir ao roteiro histórico de proteção dos poderosos e descolamento da realidade da maioria da sociedade brasileira.
Apenas uma nota para encerrar: Fiquei realmente com medo quando vi a risada do excelentíssimo senhor presidente do Superior Tribunal Federal, Ministro Gilmar Mendes, ao escarnecer a fala de seu colega. Digna de figurar em filme de terror.
http://colunistas.ig.com.br/indianasilva/2009/04/24/a-justica-brasileira-e-as-classes-sociais/