Autor Tópico: Dênis Diderot - Suplemento à viagem de Bougainville - PARTE III  (Lida 1611 vezes)

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Dênis Diderot - Suplemento à viagem de Bougainville - PARTE III
« Online: 23 de Abril de 2009, 16:14:13 »
Texto longo, novamente, mas igualmente denso e interessante.

Diderot, pensador iluminista, empirista e materialista, escreve o "Suplemento da viagem de Bougainville" que trata questões principalmente éticas.

O livro começa com o diálogo entre dois personagens que discutem sobre um livro escrito por um viajante (Boungainville) que chega ao Taiti e relata suas viagens, ou seja, embora fictício, é como se fosse uma extensão das possíveis coisas encontradas na viagem de Boungainville (embora algumas sejam diferentes dos relatados).

A segunda parte trata, basicamente, trata do mal que foi trazido ao Taiti pela chegada dos exploradores.

E a terceira - que é a que posto aqui, além de ser a que considero mais relevante para nós -, trata-se do Diálogo entre o Capelão e o chefe da tribo do Taiti, Oru. Diderot toca em pontos importantes nessa parte. Por exemplo, a idéia do empirismo que é a base de todo o conhecimento, a necessidade de natureza como origem da moral, uma crítica ao absurdo que são a moral religiosa.

Não trabalhei ainda o final do texto, mas posto a terceira parte inteira na esperança de que seja tão bom quanto o início.

Aqueles que aguentarem ler, façam bom proveito. :)


III
Diálogo do Capelão e de Oru

B. — Na divisão que os taitianos fizeram da tripulação de Bougainville, o capelão 20 veio a ser o quinhão de Oru. O capelão e o taitiano eram quase da mesma idade, trinta e cinco a trinta e seis anos. Oru possuía então apenas a mulher e três filhas chamadas Asto, Palli e Thia. Elas o despiram, lavaram-lhe o rosto, as mãos e os pés, e serviram-lhe uma refeição sadia e frugal. Quan¬do estava a ponto de deitar-se, Oru, que se ausentara com a família, reapareceu, apresentou-lhe a mulher e as três filhas nuas,21 e disse-lhe:
— Ceaste, és jovem, tens saúde; se dormires só, dormirás mal; o homem precisa à noite de uma companheira a seu lado. Eis minha mulher, eis minhas filhas: escolhe a que te convém; mas se queres fazer-me um favor, darás preferência à mais jovem de minhas filhas, que não teve ainda filhos.
A mãe acrescentou: — Infelizmente! não devo me queixar disso; a pobre Thia! não é culpa dela.
O capelão respondeu que sua religião, sua condição, os bons costumes e a honestidade não lhe permitiam aceitar tais ofertas.
Oru replicou:
— Não sei o que é a coisa que chamas religião, mas só posso pensar mal dela, visto que te impede de apreciar um prazer inocente, ao qual a natureza, a soberana senhora, nos convida a todos; de dar existência a um de teus semelhantes; de prestar um serviço que o pai, a mãe e os fi¬lhos te pedem; de te desobrigar para com um hospedeiro que te dispensou boa acolhida, e de enriquecer uma nação, aumentando-a com um indivíduo a mais. Não sei o que é a coisa que chamas condição; mas teu primeiro dever é de ser homem e ser grato. Não te proponho de modo algum que transportes a teu país os costumes de Oru; mas Oru, teu hóspede e teu amigo, te suplica que te prestes aos costumes do Taiti. Os costumes do Taiti são melhores ou piores do que os vossos? É uma questão fácil de decidir. A terra onde nasceste tem mais homens do que pode nutrir? Neste caso. teus costumes não são nem piores, nem melhores que os nossos. Pode ela nutrir mais do que tem? Então nossos costumes são melhores do que os teus. Quanto à honestidade que me objetas, eu te compreendo; confesso que estou errado; e te peço por isso perdão. Não exijo que prejudiques tua saúde; se estás fatigado, cumpre que descanses; mas espero que não continuarás a nos contristar. Eis a inquietação que espalhaste em todos esses rostos: temem que hajas notado neles quaisquer defeitos que atraiam teu desdém. Mas ainda que assim fosse, o prazer de honrar uma de minhas filhas, entre suas companheiras e suas irmãs, e de praticar uma boa ação, não te bastaria? Sê generoso!
CAPELÃO. — Não é isso: elas são todas as quatro igualmente belas; mas minha religião! minha condição!
ORU. — Elas me pertencem e eu tas ofereço: elas se pertencem, e elas se entregam a ti. Qual¬quer que seja a pureza de consciência que a coisa religião22 e a coisa condição te prescrevam, podes aceitá-las sem escrúpulos. Não abuso absolutamente de minha autoridade; e estejas seguro que conheço e que respeito os direitos das pessoas.
Aqui, o sincero capelão concorda que a Providência nunca o expusera a tentação tão pre¬mente. Era jovem; debatia-se, atormentava-se; desviava os olhares das amáveis suplicantes; volvia-os sobre elas; alçava as mãos e os olhos ao céu. Thia, a mais jovem, abraçava-lhe os joelhos e dizia-lhe: — Estrangeiro, não aflijas meu pai, não aflijas minha mãe, não me aflijas! Honra-me na cabana e entre os meus; eleva-me ao grau de minhas irmãs, que zombam de mim. Asto, a mais velha, já tem três filhos; Palli, a segunda, tem dois, e Thia não tem nenhum! Estrangeiro, honesto estrangeiro, não me repilas! Torna-me mãe, faze-me um filho que um dia eu possa passear pela mão, ao meu lado, no Taiti; que se veja dentro de nove meses preso ao meu seio; do qual eu me sinta orgulhosa, e que faça parte de meu dote, quando eu passar da cabana de meu pai a outra. Serei talvez mais afortunada contigo do que com os nossos jovens taitianos. Se me concederes esse favor, nunca mais te esquecerei; eu te abençoarei por toda minha vida; escreverei teu nome em meu braço e no de teu filho; pronunciá-lo-emos incessantemente com alegria; e, quando deixares esta plaga, meus votos te acompanharão sobre os mares até que tenhas chegado a teu país.
O ingênuo capelão diz que ela lhe apertava as mãos, que fixava em seus olhos miradas tão expressivas e tão tocantes; que chorava; que o pai, a mãe e as irmãs se distanciaram; que ficou só com ela, e que dizendo, “Mas a minha religião, mas a minha condição”, viu-se no dia seguinte dei¬tado ao lado daquela jovem, que o cumulava de carícias, e que convidara o pai, a mãe e as irmãs, quando se aproximaram do leito pela manhã, a juntar seu reconhecimento ao dela.
Asto e Palli, que se haviam afastado, voltaram com os pratos do país, com bebidas e frutas: abraçavam a irmã e faziam votos por ela. Desjejuaram, todos juntos; em seguida Oru ficou só com o capelão e lhe disse:
— Vejo que minha filha está contente contigo; e eu te agradeço. Mas poderias informar-me o que vem a ser a palavra religião, que repetiste tantas vezes, e com tanta dor?
O capelão, depois de devanear por um momento, respondeu:
— Quem fez tua cabana e os utensílios que a mobiliam?
ORU. — Fui eu.
CAPELÃO. — Pois bem! nós cremos que este mundo e o que ele encerra foi obra de um obreiro.
ORU. — Ele tem portanto pés, mãos e cabeça?
CAPELÃO. — Não.
ORU. — Onde é que ele tem sua morada?
CAPELÃO. — Em toda parte.
ORU. — Aqui mesmo!
CAPELÃO. — Aqui.
ORU. — Nós nunca o vimos.
CAPELÃO. — Ele não é visto.
ORU. — Ai está um pai bastante indiferente! Deve ser velho; pois conta ao menos a idade de sua obra.
CAPELÃO. — Nunca envelhece; ele falou a nossos antepassados; deu-lhes leis; prescreveu-lhes a maneira segundo a qual queria ser honrado; ordenou-lhes certas ações, como boas; vedou-lhes outras, como más.
ORU. — Entendo; e uma dessas ações que ele lhes vedou como má é a de dormir com uma mulher e uma moça? Por que então criou dois sexos?
CAPELÃO. — Para se unirem; mas com certas condições requeridas, após certas cerimônias prévias, em conseqüência das quais um homem pertence a uma mulher, e só pertence a ela; uma mulher pertence a um homem, e só pertence a ele.
ORU. — Para toda a vida?
CAPELÃO. — Para toda a vida.
ORU. — De modo que, se acontecesse a uma mulher dormir com outro além do marido, ou a um marido de dormir com outra além da mulher... mas isso nunca acontece, pois, uma vez que está presente, e que isso lhe desapraz, sabe como impedi-los.
CAPELÃO. — Não; ele os deixa fazer; e eles pecam contra a lei de Deus (pois é assim que chamamos o grande obreiro), contra a lei do país; e cometem um crime.
ORU. — Eu ficaria desolado em te ofender com meus discursos; mas se mo permitisses, eu te diria minha opinião.
CAPELÃO. — Fala.
ORU. — Esses preceitos singulares, eu os acho opostos à natureza e contrários à razão; fei¬tos para multiplicar os crimes, para irritar a todo momento o velho obreiro, que fez tudo sem mãos, sem cabeça e sem instrumentos; que está em toda parte, e que não está à vista em parte alguma; que dura hoje e amanhã, e que não tem um dia a mais; que comanda e que não é obedeci¬do; que pode impedir, e que não impede. Contrários à natureza, porque supõem que um ser pen¬sante, sensível e livre, pode ser propriedade de um ser semelhante a ele. Em que estaria fundado tal direito? Não vês que confundiram, em teu país, a coisa que não tem sensibilidade, nem pensa¬mento, nem desejo, nem vontade; que se larga, que se toma, que se guarda, que se troca sem que ela sofra e sem que ela se queixe, com a coisa que não se troca, que não se adquire de modo algum; que tem liberdade, vontade, desejo; que pode dar-se ou recusar-se por um momento; dar-se ou recusar-se para sempre; que se queixa e que sofre; e que não poderia tornar-se um bem de troca, sem que seja esquecido o seu caráter e que se faça violência à natureza? Contrários à lei geral dos seres. Nada, com efeito, te parece mais insensato do que um preceito que proscreve a mudança que está em nós; que ordena uma constância que não pode existir em nós, e viola a liber¬dade do macho e da fêmea, encadeando-os para sempre um ao outro; do que uma fidelidade, que limita o mais caprichoso dos gozos ao mesmo indivíduo; que um juramento de imutabilidade de dois seres de carne, à face de um céu que não é um só instante o mesmo, sob antros que ameaçam ruir; embaixo de uma rocha que despenca em pó; ao pé de uma árvore que se racha; sobre uma pedra que se abala? Creia-me, vós tornastes a condição do homem pior que a do animal. Não sei o que seja o teu grande obreiro: mas rejubilo-me por ele não ter falado a nossos pais, e não desejo que fale tampouco a nossos filhos; pois poderia por acaso dizer-lhes as mesmas tolices, e eles cometeriam talvez a de crer nele. Ontem, ao cear, conversaste conosco sobre magistrados e sacer¬dotes; não sei quais sejam as personagens que chamastes magistrados e sacerdotes, cuja autori¬dade regula vossa conduta; mas, dize-me, são eles senhores do bem e do mal? Podem eles fazer com que o que é justo seja injusto, e o que é injusto seja justo? Depende deles atribuir o bem a ações nocivas, e o mal a ações inocentes ou úteis? Tu não poderias pensá-lo, pois, desse modo, não haveria nem verdadeiro nem falso, nem bom nem mau, nem belo nem feio; a não ser aquilo que aprouvesse a teu grande obreiro, a teus magistrados, a teus sacerdotes, declarar como tal; e, de um momento a outro, serias obrigado a mudar de idéias e de conduta. Um dia, dir-te-iam, de parte de um de teus três senhores: “mata”, e serias obrigado, em consciência, a matar; um outro dia: “rouba”, e serias forçado a roubar; ou: “não comas deste fruto”, e não ousarias comê-lo; “proíbo-te este legume ou este animal”, e evitarias tocá-los. Não há bondade que não se possa te interditar; não há malvadeza que não se possa te ordenar, e ao que ficarias reduzido, se teus três senhores, pouco de acordo entre si, resolvessem permitir-te, ordenar-te e proibir-te a mesma coisa, como penso que acontece amiúde? Então, para agradar ao sacerdote, terás de indispor-te com o magistrado; para satisfazer o magistrado, terás de descontentar o grande obreiro; e para tornar-te agradável ao grande obreiro, terás de renunciar à natureza. E sabes o que resultará? Desprezarás todos os três, e não serás nem homem, nem cidadão, nem devoto; não serás nada; estarás mal com toda sorte de autoridade; mal contigo próprio; malvado, atormentado por teu coração, perseguido por teus senhores insensatos; e infeliz, como te vi ontem à noite, quando eu te apresentava minhas filhas e minha mulher e quando tu exclamavas: “Mas minha religião! Mas minha condição!” Queres saber, em todos os tempos e em todos os lugares, o que é bom e mau? Apega-te à natureza das coisas e das ações; a tuas relações com teu semelhante; à influência de tua conduta sobre tua utilidade particular e o bem geral. Estás delirando, se crês que haja algo, seja no alto, seja embai¬xo, no universo, que possa acrescentar ou subtrair às leis da natureza. Sua vontade eterna é que o bem seja preferido ao mal, e o bem geral ao bem particular. Ordenarás o contrário; mas não serás obedecido. Multiplicarás os malfeitores e os infelizes pelo temor, pelos castigos e pelos remorsos; depravarás as consciências; corromperás os espíritos; eles não saberão mais o que devem fazer ou evitar. Perturbados no estado de inocência, tranqüilos na perversidade, terão perdido a estrela polar no seu caminho. Responde-me sinceramente: a despeito das ordens expres¬sas de teus três legisladores, um jovem, em teu país, não se deitará jamais, sem a permissão deles, com uma jovem?
CAPELÃO. — Eu mentiria se o assegurasse.
ORU. — A mulher, que jurou pertencer apenas a seu marido, não se entrega nunca a outrem?
CAPELÃO. — Nada é mais comum.
ORU. — Teus legisladores exercem rigor ou não o exercem: caso o exerçam, são feras que ferem a natureza; se não o exercem, são imbecis que expuseram ao menosprezo sua autoridade por uma proibição inútil.
CAPELÃO. — Os culpados, que escapam à severidade das leis, são castigados pela censura geral.
ORU. — Isso quer dizer que a justiça se exerce pela falta de senso comum de toda a nação; e que a loucura da opinião suplementa as leis.
CAPELÃO. — A filha desonrada não encontra mais marido.
ORU. — Desonrada! e por quê?
CAPELÃO. — A mulher infiel é mais ou menos desprezada.
ORU. — Desprezada! e por quê?
CAPELÃO. — O jovem é chamado covarde sedutor.
ORU. — Covarde! sedutor! e por quê?
CAPELÃO. — O pai, a mãe e a criança ficam desolados. O esposo volúvel é um libertino: o esposo traído partilha da vergonha de sua mulher.
ORU. — Que monstruoso tecido de extravagâncias me expões aí! E ainda não dizes tudo: pois tão logo nos permitimos dispor à vontade das idéias de justiça e de propriedade; de tirar ou dar um caráter arbitrário às coisas; de unir às ações ou separar delas o bem e o mal, sem consul¬tar mais do que o capricho, a gente se censura, se acusa, se suspeita, se tiraniza, é invejoso, é ciu¬mento, se engana, se aflige, se esconde, se dissimula, se espia, se surpreende, briga, mente; as fi¬lhas iludem os pais; os maridos, as mulheres; as mulheres, os maridos; as moças, sim, não duvido, as moças sufocarão seus filhos; os pais desconfiados desdenharão e descuidarão dos seus; as mães separar-se-ão deles e abandoná-los-ão à mercê da sorte; e o crime e o deboche mostrar-se-ão sob todas as formas. Eu sei de tudo isso, como se tivesse vivido entre vós. Isso é assim, porque deve ser; e tua sociedade, cuja bela ordem vosso chefe vos gaba, não passará de uma corja de hipócritas, que calcam secretamente aos pés as leis; ou de infortunados, que são sozinhos os instrumentos dos próprios suplícios, em se lhes submetendo; ou de imbecis, em quem o precon¬ceito asfixiou inteiramente a voz da natureza; ou de seres mal organizados, em que a natureza não reclama seus direitos.
CAPELÃO. — Assim parece. Mas vós não vos casais então?
ORU. — Nós nos casamos.
CAPELÃO. — O que é vosso casamento?
ORU. — O consentimento de habitar uma e mesma cabana e dormir no mesmo leito, enquanto nos sentimos bem com isso.
CAPELÃO. — E quando vos sentis mal?
ORU. — Nós nos separamos.
CAPELÃO. — O que sucede a vossos filhos?
ORU. — Oh! estrangeiro! Tua última pergunta acaba de me desvendar a profunda miséria de teu país. Sabe, meu amigo, que aqui o nascimento de uma criança é sempre uma felicidade, e sua morte um motivo de pesar e de lágrimas. Uma criança é um bem precioso, porque deve tor¬nar-se um homem; por isso, dedicamos-lhe um desvelo inteiramente diverso ao das nossas plantas e dos nossos animais. Uma criança que nasce ocasiona alegria doméstica e pública: é um acrés¬cimo de fortuna para a cabana e de força para a nação; são braços e mãos a mais no Taiti; vemos nela um agricultor, um pescador, um caçador, um soldado, um esposo e um pai. Retornando da cabana do marido à dos pais, a mulher leva consigo os filhos que trouxera como dote: partilham-se os nascidos durante a coabitação; e compensam-se tanto quanto possível, os machos pelas fê¬meas, de modo que resta a cada um número quase igual de moças e rapazes.
CAPELÃO. — Mas as crianças ficam muito tempo sob encargo antes de prestar serviço.
ORU. — Destinamos à sua manutenção e à subsistência dos velhos uma sexta parte de todos os frutos do país; esse tributo os segue em toda parte. Assim vês que, quanto mais numerosa a família do taitiano, mais rica ela é.
CAPELÃO. — Uma sexta parte!
ORU. — Sim; é um meio seguro de encorajar a população, e interessar no respeito à velhice e à conservação dos filhos.
CAPELÃO. — Vossos esposos não se censuram às vezes?
ORU. — Muito freqüentemente; entretanto a duração mais curta de um casamento é de uma lua a outra.
CAPELÃO. — A menos que a mulher esteja grávida; então a coabitação é ao menos de nove meses?
ORU. — Estás enganado; a paternidade, como o tributo, segue a criança por toda parte.
CAPELÃO. — Tu me falaste de crianças que a mulher traz como dote ao marido.
ORU. — Certamente. Eis minha filha mais velha que é mãe de três filhos; eles se desenvol¬vem; são sadios; são belos; prometem ser fortes: quando lhe der na fantasia de casar-se, ela os levará consigo; são dela: seu marido os receberá com alegria, e a mulher lhe seria apenas mais agradável, se estivesse grávida de um quarto filho.
CAPELÃO. — Filho dele?
ORU. — Dele, ou de outro. Quanto mais crianças nossas filhas têm, mais procuradas são; quanto mais vigorosos e fortes são os nossos rapazes, mais ricos são: por isso, assim como ficamos atentos para preservar as moças das aproximações do homem e os rapazes do comércio da mulher, antes da idade da fecundidade, do mesmo modo os exortamos a produzir, quando os rapazes são púberes e as filhas núbeis. Não podes acreditar na importância do serviço que terás prestado à minha filha Thia, se lhe engendraste uma criança. Sua mãe não mais lhe dirá a cada lua: “Mas Thia, o que estás pensando? não ficas grávida; tens dezenove anos; já deverias ter dois filhos e não tens nenhum. Quem se encarregará de ti? Se perdes assim teus jovens anos, que farás na velhice? Thia, deves ter algum defeito que afasta de ti os homens. Corrige-te, minha filha: em tua idade, eu já era três vezes mãe”.
CAPELÃO. — Que precauções tomais para conservar vossas filhas e vossos rapazes adolescentes?
ORU. — Este é o principal objeto da educação doméstica e o ponto mais importante dos cos¬tumes públicos. Nossos rapazes, até a idade de vinte e dois anos, dois ou três além da puberdade, permanecem cobertos de uma longa túnica, e com os rins cingidos por uma pequena cadeia. Antes de se tornarem núbeis, nossas filhas não ousariam sair sem um véu branco. Tirar a cadeia, levan¬tar o véu, são faltas que raramente cometem, porque lhes ensinamos desde cedo as suas deplorá¬veis conseqüências. Mas, no momento em que o macho adquiriu toda sua força, em que os sinto¬mas viris apresentam continuidade e em que a efusão freqüente e a qualidade do liquido seminal nos traqüilizam; no momento em que a jovem murcha, se entedia, sendo de maturidade apta a conceber desejos, a inspirá-los e a satisfazê-los com utilidade, o pai desprende a cadeia do filho e corta-lhe a unha do dedo médio da mão direita. A mãe levanta o véu da filha. Um pode solicitar uma mulher e ser por ela solicitado; outra, passear publicamente com o rosto descoberto e o colo nu, aceitar ou recusar as carícias de um homem. Indicam-se apenas, de antemão, ao rapaz as moças, e à moça, os rapazes, que devem preferir. E uma grande festa o dia da emancipação de uma moça ou de um rapaz. Se é moça, na véspera, os rapazes se reúnem em torno da cabana, e o ar ressoa a noite toda com o canto das vozes e com o som dos instrumentos. De dia, ela é con¬duzida pelo pai e pela mãe a um recinto, onde se dança e onde se faz exercício de salto, de luta e de corrida. Exibe-se o homem nu diante dela sob todas as faces e em todas as atitudes. Se se trata de rapaz, são as moças que fazem em sua presença as honras da festa e expõem a seus olha¬res a mulher nua, sem reserva e sem segredo. O resto da cerimônia termina num leito de folhas, como viste à tua descida entre nós. Ao cair do dia, a moça regressa à cabana dos pais, ou passa à cabana de quem escolheu e lá permanece tanto quanto lhe apraz.
CAPELÃO. — Assim, essa festa é ou não é um dia de casamento?
ORU. — Tu o disseste...
A. — O que vejo ali, à margem?
B. — É uma nota, onde o bom capelão diz que os preceitos dos pais sobre a escolha dos rapazes e das moças eram cheios de bom senso e de observações muito finas e muito úteis; mas que suprimiu tal catecismo; que se afiguraria, a pessoas tão corrompidas e tão superficiais como nós, de uma licença imperdoável; acrescentando todavia que não foi sem pesar que cortara por¬menores em que se poderia ver, primeiramente, até onde uma nação, que se ocupa incessante¬mente de um objeto importante, pode ser conduzida em suas pesquisas, sem os préstimos da física e da anatomia; em segundo lugar, a diferença das idéias sobre a beleza em uma região onde as for¬mas são referidas ao prazer de um momento, e em um povo onde são apreciadas segundo uma uti¬lidade mais constante. Lá, para ser bela, exige-se uma tez brilhante, uma grande fronte, grandes olhos, traços finos e delicados, um talhe ligeiro, boca pequena, mãos pequenas, pé pequeno... Aqui, quase nenhum desses elementos entra no cálculo. A mulher sobre a qual os olhares se fixam e que o desejo persegue é a que promete muitos filhos (a mulher do Cardeal de Ossat,23) e que os promete ativos, inteligentes, corajosos, sadios e robustos. Não há quase nada em comum entre a Vênus de Atenas e a do Taiti; uma é Vênus galante e outra é Vênus fecunda. Uma taitiana dizia um dia com desprezo a outra mulher do país: “Tu és bela, mas geras crianças feias; eu sou feia mas gero belas crianças, e é a mim que os homens preferem”.
Após essa nota do capelão, Oru continua.24
A. — Antes que ele retome seu discurso, tenho um pedido a fazer-vos, é o de me lembrar uma aventura ocorrida na Nova Inglaterra.
B. — Ei-la. Uma jovem, Miss Polly Baker, engravidou pela quinta vez e foi trazida perante o tribunal de justiça de Connecticut, perto de Boston. A lei condena todas as pessoas do sexo, que devam o título de mãe apenas à libertinagem, a uma multa, ou uma punição corporal quando não podem pagar a multa. Miss Polly, entrando na sala onde os juizes estavam reunidos, dirigiu-lhes o seguinte discurso: “Permiti, senhores, que eu vos dirija algumas palavras. Sou uma desgraçada e pobre moça, não tenho meios de pagar advogados para que tomem minha defesa, e eu não vos reterei por muito tempo. Não pretendo que, na sentença que ides pronunciar, vós vos afasteis da lei; o que ouso esperar é que vos digneis a implorar para mim as bondades do governo e obter que me dispense da multa. É a quinta vez que compareço perante vós por causa da mesma questão; duas vezes paguei multas onerosas e duas vezes sofri punição pública e vergonhosa porque não me encontrava em condição de pagar. Isso pode estar conforme à lei, não o contesto absoluta¬mente; mas há, às vezes, leis injustas, e elas são ab-rogadas; há também outras demasiado seve¬ras, e o poder legislador pode dispensar de sua execução. Ouso dizer que aquela que me condena é ao mesmo tempo injusta em si mesma e demasiado severa para comigo. Nunca ofendi ninguém no lugar onde vivo, e desafio meu inimigos, se é que tenho alguns, a provar que fiz o menor mal a um homem, a uma mulher, a uma criança. Permiti que eu esqueça por um momento que a lei existe e neste caso não concebo qual possa ser meu crime; pus cinco belas crianças no mundo, com o perigo de minha vida, eu as nutri com meu leite, eu as sustentei com meu trabalho; e teria feito mais por elas, se não tivesse pago multas que me tiraram os meios de fazê-lo. Constitui um crime aumentar os súditos de Sua Majestade em um país novo que carece de habitantes? Não rou¬bei nenhum marido à mulher, nem desviei nenhum moço; jamais fui acusada desses procedi¬mentos culpáveis, e se alguém se queixa de mim, é talvez apenas o ministro a quem não paguei direitos de casamento. Mas é minha culpa? Eu invoco vosso testemunho, senhores; vós me supondes certamente com bastante bom senso para estardes persuadidos de que preferiria a hon¬rada condição de esposa à vergonhosa condição em que vivi até agora. Sempre desejei e desejo ainda me casar, e não temo de modo algum dizer que eu teria a boa conduta, a indústria e a eco¬nomia convenientes a uma esposa, assim como tenho a sua fecundidade. Desafio quem quer que seja a dizer que me recusei a aceitar essa condição. Dei meu consentimento à primeira e única proposição que me foi feita; eu era virgem ainda; tive a simplicidade de confiar minha honra a um homem que não tinha honra alguma; ele me fez meu primeiro filho e me abandonou. Esse homem, todos vós o conheceis: é atualmente magistrado como vós e senta-se ao vosso lado; eu esperava que aparecesse hoje no tribunal e interessasse vossa piedade em meu favor, em favor de uma infe¬liz que só o é por causa dele; então eu seria incapaz de expô-lo ao rubor da vergonha, lembrando o que se passou entre nós. Estou errada em me queixar hoje da injustiça das leis? A primeira causa de meus extravios, meu sedutor, foi elevado ao poder e às honras pelo mesmo governo que puniu minhas desgraças com o açoite e com a infâmia. Responder-me-ão que transgredi os precei¬tos da religião; se minha ofensa é contra Deus, deixai-lhe o cuidado de me punir; vós já me excluístes da comunhão da Igreja, isso não basta? Por que, ao suplício do inferno, que acreditais me esperar no outro mundo, juntais o das multas e do açoite? Perdoai, senhores, tais reflexões; não sou teóloga, mas custa a crer que seja um grande crime meu o fato de ter dado à luz belas crianças que Deus dotou de almas imortais e que o adoram. Se fazeis leis que mudam a natureza das ações e as tornam crimes, fazei-as contra os celibatários cujo número aumenta todos os dias, que levam a sedução e o opróbrio às famílias, que enganam as donzelas como eu o fui, e que as forçam a viver no estado vergonhoso em que eu vivo, no meio de uma sociedade que as repele e as despreza. São eles que perturbam a tranqüilidade pública; eis crimes que merecem, mais do que o meu, a animadversão das leis”.
Esse singular discurso produziu o efeito que Miss Baker esperava; seus juizes remiram-lhe a multa e a pena que a substituía. Seu sedutor, instruído do que se passara, sentiu remorsos de sua primeira conduta; quis repará-la, dois dias depois desposou Miss Baker, convertendo em mulher honesta aquela que cinco anos antes convertera em rapariga pública.
A. — E não se trata de um conto de nossa invenção?
B. — Não.
A. — Estou satisfeito.
B. — Não sei se o Abade Raynal25 narra o fato e o discurso em sua História do Comércio das Duas Índias.
A. — Obra excelente e com um tom de tal modo diferente das anteriores que se suspeitou o abade de ter empregado nela mãos alheias.
B. — É uma injustiça.
A. — Ou uma maldade. Desmancham o louro que cingiu a cabeça de um grande homem e o desmancham tão bem que não lhe resta senão uma folha.
B. — Mas o tempo reúne as folhas esparsas e refaz a coroa.
A. — Mas o homem está morto; e sofreu com a injúria que recebeu de seus contemporâneos; e é insensível à reparação que obtém da posteridade.

 

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