Logo em um dos primeiros capítulos (o 2, para ser mais preciso), Sagan proclamará a superioridade da ciência sobre a religião. A ciência, diz ele, tem peer review (embora alguns escândalos recentes tenham abalado a confiança nesse sistema) e admite seus erros. O físico tem laboratório; já o metafísico não tem. O problema desse argumento é que o conhecimento religioso não é da mesma natureza do conhecimento científico. As afirmações do conhecimento religioso não podem mesmo ser comprovadas cientificamente. Elas dependem, sim, de argumento de autoridade, mas sem desrespeitar a lógica.
Claro, para isso foram instituídos os dogmas. Para reforçar afirmações que respeitam completamente a lógica mais simples...
Em alguns pontos do livro, por exemplo, encontram-se expressões como "se você fica doente, você pode usar antibiótico, ou chamar o curandeiro". Isso é ou não é uma falsa dicotomia?
Não, não é. O texto de Sagan trata apenas de uma comparação entre a eficácia da ciência em relação aos métodos religiosos/místicos para solucionar o mesmo problema.
É a mesma coisa que perguntar "qual o método de produção mais eficiente, o industrial ou o artesanal?". O fato de comparar apenas os dois não significa que eu esteja propondo uma falsa dicotomia ou ignorando os métodos intermediários, como manufaturas, por exemplo.
O fato de haver quem rejeite a ciência numa hora dessas não significa que recorrer à ciência e ter uma crença religiosa sejam coisas incompatíveis.
E em nenhum momento Sagan fala isso no livro. Trata-se apenas de uma tentativa do autor do texto de induzir o leitor a uma conclusão errônea sobre o livro de Sagan.
Um outro truque retórico denunciado por Sagan é o da "evidência suprimida ou meia-verdade", que o autor comete quando se refere às curas observadas no santuário francês de Lourdes (p. 268-269). Sagan usa os números para demonstrar que, estatisticamente, é mais fácil ser curado espontaneamente de câncer ficando em casa do que indo a Lourdes. Bom, não se discute com números. Mas conheço relatos de tumores que somem subitamente. Os três casos comprovados de Lourdes tinham essa característica? Sagan não diz. E os outros casos de cura, envolvem que tipo de doença? Sagan não diz (a título de curiosidade, quem quiser pode ler uma entrevista com um médico que trabalha em Lourdes). Em vez disso, Sagan pergunta: "se a reza funciona, por que Deus não consegue curar o câncer ou repor um membro amputado?" Bom, sobre membros amputados, é fartamente documentado o caso de Calanda, uma cidade de Aragão, na Espanha. Em 1640, um tal Miguel Juan Pellicer teve restituída a perna direita, que havia sido amputada em 1637, com gangrena. Pellicer chegou a se encontrar com o rei Felipe IV. Existe um livro em português sobre o assunto.
O autor quer realmente que se leve a sério um relato da Idade Média como prova de que alguém teve um membro restituído por milagres? Só falta ele citar os dentes de ouro que aparecem nas bocas dos fiéis banguelas nos cultos evangélicos. Sem comentários.
E, por último, como um comentarista do blog já citou aqui em outra ocasião, temos o interessante capítulo 10 do livro, com a história do dragão na garagem. Mas ninguém reparou como a conclusão que Sagan tira da história bate de frente com o "ausência de evidência não é evidência de ausência" (p. 245 e 257), aliás também já citado aqui por outro comentarista do blog?
Será que bate mesmo? Vamos ver o que diz a conclusão de Sagan:
[...]Apesar de nenhum dos testes ter funcionado, imagine que você queira ser escrupulosamente liberal. Você não rejeita de imediato a noção de que há um dragão que cospe fogo na minha garagem. Apenas deixa a idéia cozinhando em banho-maria. As evidências presentes são fortemente contrárias a ela, mas, se surgirem novos dados você está pronto a examiná-los para ver se são convincentes.
[...]De novo, a única abordagem sensata é rejeitar em princípio a hipótese do dragão, manter-se receptivo a futuros dados físicos e perguntar-se qual poderia ser a razão para tantas pessoas aparentemente normais e sensatas partilharem a mesma delusão estranha.
A conclusão bateria de frente se no final Sagan tivesse concluído que não existe dragão na garagem por falta de evidências. Mas como pode ser visto na conclusão dele, ele rejeita a princípio a existência do dragão e a considera improvável, só que sempre receptivo a novos dados,
se surgirem. Ou seja, não só não bate de frente, como é
totalmente coerente com "ausência de evidência não é evidência de ausência".
Conclusão: o texto não passa de uma tentativa desonesta de distorcer citações do livro de Sagan, além de cair no ridículo de citar um "caso comprovado de restituição de membros por milagre".