Autor Tópico: Sartre, a transparência e o obstáculo  (Lida 582 vezes)

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Offline Renato T

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Sartre, a transparência e o obstáculo
« Online: 15 de Maio de 2009, 09:43:49 »
Belíssimo texto sobre Sartre.



Fonte:Revista Cult
Link: http://revistacult.uol.com.br/novo/dossie.asp?edtCode={E43C8ECE-D480-4981-A71E-ED525B574547}&nwsCode={40C32AB1-E64E-4DCC-87E4-74F141B0AED0}

   Sartre, a transparência e o obstáculo
               
O escritor e filósofo dominou a cena intelectual francesa do pós-guerra, cuja obra poliédrica marca o triunfo da literatura sobre os ataques sofridos pelo existencialismo
             
Manuel da Costa Pinto

Albert Camus escreveu no romance A peste que uma "uma forma cômoda de travar conhecimento com uma cidade é procurar saber como se trabalha, como se ama e como se morre". O mesmo é válido para os homens e, quando se celebra os vinte anos de morte de uma personalidade como Jean-Paul Sartre, o acento recai necessariamente sobre suas exéquias - pois elas revelam os extremos da reverência apaixonada e do ódio respeitoso. O enterro do autor de A náusea foi provavelmente o último grande cortejo público de um intelectual francês, reunindo uma multidão que incluía intelectuais, estudantes, políticos, operários, militantes e minorias de toda ordem. A dignidade reservada e familiar que, apenas quatro anos depois, marcou o sepultamento de Michel Foucault - sucessor natural de Sartre no posto de figura central da intelectualidade francesa - mostra a singularidade do escritor existencialista, seu status de estadista sem Estado que encarnava a consciência e as contradições de uma era: o século de Sartre.
                   
É esse aliás o título do mais importante livro publicado no âmbito das homenagens ao pensador da rive gauche: Le siècle de Sartre, do filósofo Bernard-Henri Lévy (editora Grasset). E a obra começa, justamente, pela cena cinematográfica (e impensável em qualquer outro país que não a França) de uma manhã de abril, luminosa e friorenta, com grupos que se formavam diante do prédio em que Sartre vivera, no boulevard Edgar Quinet, e seguiam para o cemitério de Montparnasse:
               
"Esses milhares de homens e mulheres, talvez dezenas de milhares, vindos de todas as regiões do mundo, tinham em poucos minutos invadido as aléias do cemitério. Esses viventes. Esses fantasmas. Esses insurgentes e esses pequenos burgueses misturados num zunzunzum contido. Esses esquerdistas. Essas crianças. (...) O grupo da NRF [Nouvelle Revue Française] e o da Associação dos Argelinos da França. Esses paparazzi à espreita. Essas mulheres em lágrimas. Esses cachos de jovens que provavelmente não o tinham lido, mas que estavam ali, pendurados nas árvores. Africanos. Asiáticos. Vietnamitas da tendência Île de Lumière e vietnamitas da tendência Ho Chi Minh - que gostariam de ter se evitado, mas que a massa, que não se mete nesse tipo de querela, lançava uns contra os outros. Rostos célebres. Anônimos. Casais que o arrastão havia separado e que se falavam à distância antes de se perderem de vista. Antigos adversários, o crânio luzente de um, o olhar melancólico do outro - com um ar tão emocionado que por pouco teríamos esquecido os sarcasmos e a ferocidade de ontem. E também, é claro, afogados na multidão, sacudidos, às vezes arrastados pela torrente, às vezes empurrados para fora do cortejo, o círculo dos íntimos, os apóstolos, cujos nomes eram murmurados com a consideração respeitosa que se dirige às testemunhas da verdadeira fé - e mais longe ainda, sentada sobre um banquinho portátil, diante da cova aberta, com o turbante em desordem, atropelada e quase brutalizada, apesar do fiel que tentava abrir aos socos um pouco de espaço em torno dela, uma mulher bela triste, perdida em seu luto.  Quem era o homem capaz de produzir semelhante prodígio? Que misterioso poder de sedução havia feito com que uma única vida fosse suficiente para reunir fervores tão disparatados? Como, por que uma voz, uma única voz, a voz seca e metálica de Sartre, tinha conseguido se fazer ouvir em tantas línguas e por tantos destinos singulares?".
               
Esse trecho inicial dá bem o tom do livro de Lévy - um livro apaixonado, explicitamente simpático a seu herói, aparentemente hagiográfico, mas que na verdade é um panegírico da figura do intelectual total, do leitor onívoro e escritor polígrafo que autor de As palavras encarnou como ninguém nesse século que assim podemos considerar legitimamente o "século de Sartre". A cena do cemitério de Montparnasse concentra o desenvolvimento das mais de 600 páginas seguintes. Lévy retoma a vida conjugal ou as muitas vidas conjugais que Sartre manteve, a partir do epicentro Simone de Beauvoir, com inúmeras amantes; a obra literária materializada em romances como A náusea e Os caminhos da liberdade e em peças teatrais como As moscas e As mãos sujas; a filosofia de O ser e o nada e Crítica da razão dialética; os engajamentos sucessivos (suas ligações com a Resistência, com o Partido Comunista, com os rebeldes de maio de 68 e com os maoístas) - Lévy retoma essa incandescência criativa, essa voracidade intelectual, esse ativismo político e sexual para traçar não um retrato harmônico que seja a síntese dialética da tese-antítese ambulante que foi Sartre, mas um instantâneo, sempre provisório, das diferentes personas que o coabitam.
                 
Na verdade, essa figura poliédrica criada por Lévy obedece a uma preocupação legítima: formular um antídoto para duas variedades de veneno que começavam a se espalhar pela vida intelectual francesa logo após aquela manhã em que Paris enterrou seu último ídolo supremo. O primeiro veneno - no fundo inofensivo, é bem verdade - diz respeito à vida íntima do filósofo. Com a publicação de A cerimônia do adeus, por Simone de Beauvoir, e com a publicação da correspondência entre eles ( Cartas au Castor), o grande público teve acesso ao caráter das relações amorosas entre os dois: o caráter livresco, mais do que carnal, de sua cumplicidade conjugal; o caráter carnal, e partilhado em epístolas libertinas, dos relacionamentos extra-conjugais de ambos; o bissexualismo de Castor (apelido de Simone de Beauvoir) e seu êxtase nos braços de Nelson Algren (a editora Nova Fronteira acaba de lançar um volume com suas cartas ao poeta norteamericano) - enfim, toda uma minúcia de detalhes que fazem as delícias da imprensa marrom e dão munição à baixeza de críticos que querem reduzir uma obra a sublimações neurastênicas, a sintomas de uma pretensa patologia erótica. O segundo veneno - muito mais maligno - é aquele que quis vestir o cadáver de Sartre com o fardão do humanista profissional, esclerosado, nostálgico de totalizações e grandes sistemas filosóficos, cioso de sua autoridade de maître à penser.
             
Bernard-Henri Lévy consegue unificar essas duas formas de maledicência num alvo comum, respondendo com o único argumento que nos fez e nos faz ler Sartre: a literatura, e não apenas sua ficção teatral e seus romances ou contos, mas a escrita sartreana, essa prosa ensaística ímpar, nem exclusivamente conceitual, como nos filósofos tradicionais, nem aquela "transmutação estética do desespero" que Starobinski vê nos moralistas franceses e que podemos ver também em Camus (o amigo com o qual Sartre rompeu e que homenageou, comovido, após o acidente de carro que o matou em 1960: sempre
a morte a dar a última palavra sobre os homens), mas tudo isso reunido numa mesma "vertigem da letra", no "duplo romance da literatura e da vida".
           
"Duplo romance da literatura e da vida". Não se trata de um jogo de palavras de Lévy. Se é verdade quetodo romancista nos passa, cifrada no texto, a chave da gênese pessoal de sua obra (uma obsessão, um rancor, um amor, uma nostalgia) e se podemos, não obstante, aproveitar a obra sem utilizar a senha de acesso a seu segredo (os estruturalistas e, antes deles, os formalistas russos nos ensinaram que a obra é tudo e a vida, quase nada), em Sartre tudo se passa como se vida e obra existissem para arrancar a si mesmas de sua gratuidade.
             
Vida vivida como obra: eis o sentido das cartas trocadas entre Sartre e Beauvoir. "Como não se surpreender, no coração do século XX, mas no mais puro estilo do século XVIII, com esta relação, ao mesmo tempo feliz e perigosa, límpida e misteriosa, que tem tanto de 'casamento de almas' quanto de libertinagem? (...) Não compreenderemos nada da relação entre Sartre-Beauvoir se, para o mal e para o bem - os livros que eles escreveram a partir disso... -, não tivermos em mente o modelo precedente de Laclos... 'Adeus, minha encantadora Castor. Ela acaba de chegar e termino essa carta sob seu olhar. Você conhece meus sentimentos, mas não ouso escrevê-los, pois poderiam ser lidos às avessas': é uma cena das Relações amorosas ou da vida de Casanova", escreve Lévy sobre o paralelismo entre Valmont/Sartre e Marquesa de Meurteuil/Simone de
Beauvoir. Mas o que importa nesse paralelismo é o "programa de verdade", a "transparência sem desejo de pureza", a elisão entre público e privado, o conúbio "amor e liberdade" que perpassa essa história que encontra na escrita a sua necessidade.
               
O imoralismo, o desejo de transparência e a promiscuidade paradoxalmente fiel de Sartre em relação a Beauvoir e vice-versa pertencem a uma intuição primeira que governa sua vida e sua filosofia - que governa sua vida porque governa sua filosofia (e facilmente poderíamos aplicar a Sartre o raciocínio de Merleau-Ponty sobre Cézanne: não devemos buscar as razões dessa obra na sua biografia, mas devemos ver, nos acontecimentos dessa vida, a biografia que essa obra exigiu).
               
Em O ser e o nada, Sartre havia postulado a existência de uma contraposição fenomenológica entre, de um lado, a opacidade das coisas, dos entes ou objetos do mundo, do ser-em-si, com sua viscosidade resistente ao sentido; e, de outro, a consciência individual, esse nada, essa pura vacuidade para-si que se abre para a experiência do objeto e o "nadifica", transformando sua opacidade em idéia, sentimento - incluindo-se aí (e isso será decisivo) até mesmo uma outra consciência (um outro sujeito), que será percebida também ela como objeto opaco e será "nadificada". No encontro entre dois Nadas, entre duas consciências, portanto, uma resistirá à tentativa da outra de transformá-la em objeto, em Ser do mundo, em contingência, postulando assim uma necessidade (a determinação de uma consciência por outra) que, por brotar ao mesmo tempo desse encontro intersubjetivo e da exigência de que a consciência resista a se tornar "puro objeto para o outro", implica também o reconhecimento de que "estamos condenados à liberdade".
               
A partir daí, os domínios do amor, da política e da arte adquirem em Sartre transformam-se em exercício da pura liberdade, que procura constantemente escapar do desarrazoado da contingência por meio de cristalizações, instâncias do mundo que criam sua própria necessidade - mas que podem freqüentemente afogar a consciência na espessura do acontecimento, reduzindo-a um objeto ("o importante não é o que fazem aos homens, mas o que estes fazem com que quiseram fazer deles"), ou simplesmente derivar para a má-fé (que em Sartre nada tem a ver com o sentido ético-moral do linguajar corriqueiro, referindo-se antes à atribuição, aos fatos, de uma causalidade que nos desvia de nossa responsabilidade sobre eles), dando início a uma nova cadeia de cristalizações que realizem e constituam, no plano dos seres, o desígnios desse espírito que se lança no turbilhão que ele mesmo cria.
               
A volubilidade amorosa de Sartre é, assim, o contraponto de seus múltiplos engajamentos políticos, aparentemente contraditórios - seu anticomunismo inicial, depois sua adesão ao PC e finalmente sua condenação do regime soviético e a simultânea defesa do marxismo, que encontra no maoísmo uma última possibilidade, uma última cristalização. Na política
como no amor haverá, porém, um centro fixo, haverá Castor e essa intuição fenomenológico-existencial aos quais sempre retornam suas representações, seus textos, ensaios filosóficos, romances ou meras correspondências - afastando assim de Sartre a sombra do humanista entronizado num sistema filosófico e contrapondo a esse clichê a imagem de um Rousseau do século XX, furioso, engagé e enragé, utopista da transparência que não se detém diante dos maiores obstáculos, mas se lança neles sem medo de sujar as mãos na história e assumindo a responsabilidade por seus atos e sobretudo por seus erros.
                 
No livro de Lévy, a obra de Sartre ganha estatuto literário, criando seu próprio mundo e  as representações que o habitam. A tal ponto que, ao comentar a literatura sartreana, Lévy estabelece um paralelo surpreendente entre procedimentos estilísticos presentes em Dos Passos, Joyce e Céline, mas - o que é ainda surpreendentemente! - atribui as ousadias formais de livros como A náusea e Os caminhos da liberdade à essência de sua filosofia (e não à emulação desses vanguardistas):
                 
"Só existem ali mônadas que interferem umas sobre as outras, sem que qualquer uma delas possa pretender ter um privilégio ontológico", escreve Lévy sobre a ausência de ponto de vista dominante em Os caminhos da liberdade. "E é esse ponto de sua doutrina filosófica que é fonte de originalidade técnica e literária; é essa aposta metafísica que torna possível não somente a passagem de um narrador a outro, mas também a ausência de hierarquia na sucessão de narrativas; é porque Sartre é filósofo que Com a morte na alma pode abrir páginas em que vemos se entrelaçarem seis perspectivas sobre a mesma situação (...); é porque ele é esse filósofo, porque ele produz, filosoficamente, esse conceito de um mundo estilhaçado numa infinidade de consciências que são, cada uma delas, um universo absoluto; porque ele é, numa palavra, esse leibniziano sem Deus ou esse pascaliano sem fé imaginando o universo como uma totalidade quebrada cujo centro está em toda parte e a circunferência em nenhuma - é por tudo isso que ele é capaz de reinventar, na esteira dos americanos, e depois de Proust e Céline, o romance polifônico à francesa."
             
Conferindo valor literário, demiúrgico, à filosofia sartreana, Lévy põe um valor positivo nessa ficção filosófica (usualmente tida como didática, mera ilustradora de meditações metafísicas). Com isso, finalmente, a própria concepção do literário em Sartre ganha outras cores - e Lévy restitui a seu devido e merecido lugar um livro tão erroneamente lido quanto Que é a literatura? (usualmente tido como um panfleto conclamando os escritores ao engajamento partidário):
                 
"O conceito de engajamento não é um conceito político que insiste sobre os deveres sociais do escritor; é um um conceito filosófico que assinala os poderes metafísicos da linguagem. Falar de engajamento não significa 'requisitar' os homens da pena, mas significa lembrá-los daquilo que sabem ou deveriam saber: que cada ato de nominação 'se integra no espírito objetivo'; que, fazendo isso, ele confere à palavra e à coisa uma 'nova dimensão'; que cada palavra pronunciada contribui para 'desvelar' o mundo e que desvelar é e será sempre 'mudar' esse mundo".

 

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