DA NECESSIDADE DO CETICISMOGustavo BernardoFonte:
Dubito Ergo SumA crítica ao ceticismo encontra boa síntese na sentença de Affonso Romano de Sant’Anna: “Os céticos não fazem história: contemplam-na à distância, comodamente, instalados na sabedoria do não correr riscos” (O Globo, 15/04/1999). De fato, é corrente a noção de que os céticos não acreditam em nada e nada fazem para mudar o estado das coisas que criticam. Assim é fácil, diz o vulgo. Suponho, no entanto, que não seja tão fácil. Eu, por exemplo, gostaria de ser cético quando crescesse, mas sei que, perto dos 50 anos, ainda me falta muito. A necessidade de crença e de ilusão é muito forte: me engana que eu gosto, como se diz. É essa necessidade que produz utopias, civilizações e religiões: aposta-se no incerto, decretando-o “certo”.
Como os céticos desconfiam de utopias em geral, o cronista afirma com razão que os céticos não fazem história. A história, no entanto, precisa dos céticos. As utopias políticas e religiosas degringolam facilmente em sistemas totalitários e excludentes, terminando por negar o fundamento generoso que as animara. O cético é como se fosse um grilo falante, criquilando ao pé do ouvido do rei ou do bispo: tem certeza disso? A guerra é necessária? Vossa Excelência precisa mandar vossos jovens à morte ou ao assassinato? O que vos move é a pátria ou o lucro do poder? A perseguição é necessária? Vossa Eminência precisa desvalorizar a crença ou descrença alheia? O que vos move é a fé ou o balido do rebanho?
Mas esse grilo é muito chato, ele faz perguntas demais. Assim o templo não fica pronto, o presidente não se reelege, nossa verdade não se torna a verdade de todos. Alguém pode por favor esmagar o grilo na parede? Argh, que nojo, também não precisava esmagar com tanta força. E havia como esmagar delicadamente?, continua a perguntar, mesmo agonizante, o nosso cri-cri.
Não sou o grilo. Como disse, gostaria de ser cético quando crescer, o que significa que não cresci ainda. Mas lembro a frase completa do grande dogmático francês: dubito ergo sum, vel quod item est, cogito ergo sum. Na sua língua: je doute donc j’existe, ou ce qui est la même chose: je pense donc j’existe. Na nossa língua: “duvido, logo existo, ou, o que é o mesmo, penso, logo existo”. A formulação ampliada, da qual costumamos repetir apenas o finalzinho, consta da última obra de René Descartes, o diálogo La recherche de la vérité – “A procura da verdade”. Embora ele mesmo tenha recorrido à dúvida metódica para ao final acabar com todas as dúvidas, acabou por admitir que duvidar é igual a pensar. Em outras palavras: quem não duvida, não pensa.
Entretanto, em pleno século XXI, já não estaríamos próximos da verdade final, dada pela junção iminente da mecânica quântica com a cosmologia? Ainda há necessidade da dúvida? Sim, e talvez mais do que antes. Segundo o físico brasileiro Marcelo Gleiser, o nível do conhecimento científico vem diminuindo a olhos vistos, apesar da influência crescente da ciência na vida do cidadão (Folha de São Paulo, 09/01/2005). Há fascínio com as aplicações tecnológicas, mas a base científica dessas aplicações fica esquecida em meio à vontade do “quero ter um DVD”. A separação entre tecnologia e consumidor leva ao esquecimento do conhecimento. Não será coincidência que o abismo entre complexidade da ciência e compreensão do público ocorra ao lado do aumento de uma religiosidade tão intolerante quanto mais se elogie a ignorância. A imposição política de valores religiosos restringe a liberdade de pensamento. O criacionismo, que nega a teoria da evolução para explicar tudo por Adão e Eva, ganha força no Brasil e nos Estados Unidos.
Um bom cético põe em dúvida até a teoria da evolução: primeiro, por subentender o progresso linear na natureza; segundo, por ser uma teoria, ou seja, uma aproximação da verdade que não deve ser tomada como verdade em si. Mas aceita essa aproximação como o que de melhor temos para pensar a natureza, enquanto que a obrigação do ensino do criacionismo nas escolas implica grave retrocesso. Uma bela metáfora, a do Genesis, é transformada, com o perdão da palavra, em estupidez.
Conta-se que, quando o general romano voltava da vitória, desfilava numa biga ao lado de um grilo falante que lembrava, ao pé do ouvido, suas derrotas e fraquezas, portanto, sua humanidade. Como os generais, os cientistas também correm o risco de se deixarem tomar pela arrogância ao descobrirem alguma coisa importante, esmagando as dúvidas que foram essenciais até então. O astrônomo Carl Sagan lembrava que há duas atitudes centrais para o método científico: o ceticismo e a admiração. Sem admiração, isto é, sem a capacidade de se espantar, não se pode fazer ciência. Sem ceticismo, isto é, sem o grilo falante interior, também não se pode fazer ciência.
O ceticismo funciona como uma salvaguarda política e científica. Os antigos diziam que o ceticismo é uma espécie de terapia, curando a razão ensandecida dos perigos da auto-referência. Não à toa Sextus Empiricus, seu principal divulgador no princípio da Era Cristã, era um médico. Ora, salvaguardas semelhantes existem em todas as religiões. Na Bíblia, lemos em Êxodo 20, 6: “não pronunciarás o nome do Senhor teu Deus em vão, porque o Senhor não deixará impune quem pronunciar seu nome em vão”.
Trata-se do mais sábio mandamento de Deus. Do meu lugar agnóstico, suponho que possa ser interpretado como: “não digas que Eu farei o que tu é que queres fazer, como por exemplo exterminar os teus inimigos”. Da mesma maneira, rezar a Deus (ou a um santo, seu preposto) para passar em determinado concurso, ou fazer com que determinada moça se apaixone por mim, implica desrespeito flagrante ao mandamento. Se o Todo Poderoso me atender, prejudicará quem merece passar no concurso ou tornará infeliz a moça: imagine obrigá-la a se apaixonar por um panaca que não liga para os verdadeiros sentimentos da mulher a quem diz amar.
Quem não quiser ser analfabeto científico no mundo em que a ciência é onipresente, precisa continuar perguntando como funciona o DVD. Quem não quiser mais se apoiar em Deus para justificar sua ignorância, precisa voltar a fazer a pergunta teológica de sempre: se Ele é onipotente e benevolente ao mesmo tempo, por que o Mal? A tsunami? A morte de uma criança?
A dúvida precisa ser tão estimulada quanto protegida. Continuo em dúvida sobre o funcionamento do DVD e sobre os desígnios de Deus, mas me mantenho vivo e livre se não paro de fazer perguntas.