Textos retirados do blog República de Fiúme
Os registros mais antigos dão conta de larga utilização medicamentosa de maconha na China desde 5200-6200 anos a.c. A planta aparece numa compilação do século I ou II d.c., que relata os ensinamentos atribuídos ao imperador Shen-Nung (2700 a.c.), indicada para a debilidade, a apatia e o reumatismo. No Nei-Ching, tratado médico atribuído ao imperador Kwang-Ti (2698 - 2599 a.c.) é sugerido o uso das flores ma-p’o para cicatrização de feridas; as sementes e as resinas para o sistema nervoso, para as infecções e como tônico rejuvenescedor para os mais velhos. Outros tratados posteriores, como o Rh-Va, de 1500 a.c., reproduzem os usos acima mencionados.
Na Índia são abundantes as referências explícitas ao valor espiritual e mágico-religioso da maconha, especialmente na literatura sagrada dos Vedas. No Artava-Veda (compilado por volta de 1600-1400 a.c.) a palavra bhang é sinônimo de “iniciação”, do “caminho que conduz até Shiva”, divindade da iluminação espiritual hindu. O texto implora à planta sagrada que “nos livre da calamidade” e nos “proteja contra doenças e todos os demônios”. Por volta de 1300 a.c. o consumo da erva, tanto sagrado quanto profano, já era uma realidade comum na Índia. Igualmente no Zen-Avesta, narrativa sânscrita de 600 a.c., a planta aparece destacada por suas virtudes místicas.
As referências à religião da Cannabis na Índia são constantes nas escrituras sagradas e, mesmo nos dias atuais, a tradição se mantém em algumas variações do budismo e do hinduísmo. Há na Índia shivaísta a crença de que um guardião vive na folha do bhang, e que Shiva ensinara que se deveria, ao plantá-la, pronunciar, várias vezes, a palavra bhang, e, igualmente, no seu preparo, recomendava-se proferir a palavra sagrada. Em narrativa mitológica, Shiva, após brigar com sua família, se afasta indo até os campos ficar só. Oprimido por um sol inclemente, encontra abrigo sob uma planta alta de cânhamo e então esmigalha e come algumas de suas folhas. A merenda o revigora tanto que ele adota a planta como seu alimento preferido, tornando-se conhecido como “O Senhor do Bhang”.
No budismo mahayana acredita-se que o Buda vivera à base de uma semente de cânhamo por dia, durante os seis anos que antecederam a sua iluminação. No Himalaia Central o budismo tântrico admite o consumo ritual da Cannabis para elevação da consciência. A religião Tântrica desenvolvida no Tibet desde o século VII utiliza a planta para unir corpo, mente e espírito, além de considerar seu valor para a atividade sexual prolongada.
REGISTROS DE USOS SECULARES DA CANNABIS NO BRASIL
No Brasil, a cannabis sativa foi pango, nas referências mais antigas, e ainda fumo de Angola, liamba, riamba e diamba. Este último nome predominou sobre pango e fumo de Angola, no século XIX, e cedeu espaço, no século XX, para liamba, até ser definitivamente vencido por maconha. Foi ainda denominada erva-do-diabo, particularmente na imprensa diária, quando das campanhas de profilaxia após os anos 40.
Uma das mais antigas referências do uso ritualizado da maconha, anotado por Luiz Mott, dá conta de que, nas Minas Gerais de 1777, uma mulher de nome Brígida encontrava-se a dançar calundus, fazendo trejeitos e mudanças, dando a cheirar a todos os "circunstantes certo ingrediente (...) e que ficavam absortos e fora de si, e ensinava Brígida que as almas dos mortos se introduzem nos vivos. Dizia mais que o 'calundu' é o melhor modo de dar graças a deus, convidando todas as pessoas da fazenda a vir ao calundu, e se alguma escusava, lhe dava a cheirar e lhe chegava aos narizes uma erva com a qual ficavam absortos e fora de si e esquecidos das obrigações de católicos e entravam na mesma dança".
Muito tempo depois, em 1905, escreveria o Dr. Pires de Almeida, em seu A libertinagem no Rio de Janeiro, que "homens e mulheres de toda casta, completamente nus, afluiam aos candomblés e no meio de danças convulsionadas, e aos vapores de pango, faziam comemorações aos mortos".
O médico baiano Dr. Rodrigues Dória foi o primeiro autor nacional a escrever um texto unicamente dedicado ao tema do seu consumo popular em ascenção e difusão, em 1915, contando que "os índios amansados aprenderam a usar maconha, vício a que se entregam com paixão, tornando-se hábito inveterado. Fumam também os mestiços (...) entre nós a planta é usada, como fumo ou em infusão, e entra na composição de certas beberagens, empregadas pelos feiticeiros, em geral pretos africanos ou velhos caboclos. Nos candomblés - festas religiosas dos africanos, ou dos pretos crioulos, deles descendentes e que lhes herdaram os costumes e a fé, é empregada para produzir alucinações e excitar os movimentos nas danças selvagens dessas reuniões barulhentas. Em Pernambuco a erva é fumada nos catimbós - lugar onde se fazem os feitiços, e são freqüentados pelos que vão ali buscar a sorte e a felicidade. Em Alagoas, nos sambas e nos batuques, que são danças aprendidas dos pretos africanos, usam a planta, e também entre os que porfiam na colcheia, o que entre o povo rústico consiste em diálogo rimado e cantado em que cada réplica, quase sempre em quadras, começa pela deixa ou pelas palavras do contendor (...) É fumada em quartéis, nas prisões, em agrupamentos ocasionais ou em reuniões apropriadas e nos bordéis".