O ceticismo ou:
Da necessidade de reinventar o mundo
Por Alvaro R. Velloso de Carvalho
Os comentário sobre o assunto - o ceticismo - me foram motivados por um e-mail que recebi, e cujo remetente é melhor deixar no anonimato. No meio de um monte de insultos que atribuo a alguns chiliques do remetente, o e-mail terminava com a seguinte auto-descrição:
(Um liberal tão idiota, ingênuo e dogmático na crença de que nada sabemos, só podemos cojecturar [sic])
Pois bem: em português ou em inglês, eu entendo muito bem esse senhor, por mais que ele pareça um ser paradoxal (afinal, cético e dogmático!).
O paradoxo começa a se esclarecer quando notamos que, por exemplo, as pessoas que afetam o maior desprezo pela moral são justamente aquelas que menos hesitam em apontar os erros morais dos outros. Todo o movimento politicamente correto é feito desse tipo de ser das trevas. Aliás, ser das trevas em sentido estrito, porque o diabo, tradicionalmente, tem os dois papéis complementares de mentiroso e acusador - convence-nos de que não há certo e errado e logo depois assume a posição de juiz implacável (para maiores detalhes, remeto aos primeiros capítulos do precioso livro de Denis de Rougemont, La part du diable).
Pois bem, uma das crenças preferidas dos "liberais" brasileiros é a de que não há verdade nenhuma - como diz esse senhor, "nada sabemos, só podemos conjeturar". Claro que ele não esclarece se disso ele sabe, ou se isso é apenas mais uma conjetura, mas lógica nunca foi o forte dos céticos. O fato é: esse senhor, e nisso ele não tem nada de original, faz uma profissão de fé cética, mas não admite que alguém não seja tão cético quanto ele. É um cético dogmático - e, portanto, uma contradição viva. Mas ele não é uma exceção.
O ceticismo não é uma posição intelectual séria. Não é uma opção filosófica respeitável, porque não é uma posição filosófica. Alain dizia que as objeções céticas ao conhecimento são o mobral da filosofia - são aquelas dificuldades bobas que, para ingressar nos estudos filosóficos, o estudante precisa vencer em si. A filosofia, afinal, se já no nome inclui o amor ao conhecimento, inclui necessariamente a possibilidade real de conhecimento, uma vez que não se pode exigir de alguém amor a algo impossível. Ora, o cético é o sujeito que ficou na infância, ficou na porta de entrada da filosofia - por medo de entrar.
O cético produz uma quantidade infindável de pretensas objeções ao conhecimento, todas em torno de meia dúzia de desconfianças. O cético nega a indução, sob o fundamento de que na maioria dos casos ela falha (o que é, cáspite!, uma indução). Nega que os sentidos nos forneçam alguma verdade, sob o fundamento de que vários objetos aparecem de formas diferentes a vários animais (como se o fato de conhecermos essas diferenças não se baseasse no conhecimento sensível que temos dos animais). Negam os sentidos também sob o fundamento de que eles podem nos enganar (como se não fôssemos capazes de distinguir entre o que é ilusão e o que não é, e como se para fazer essa distinção não usássemos, novamente, os sentidos). E assim por diante, numa espiral crescente de idiotice cômica. Existem, claro, exposições mais refinadas e inteligentes desses argumentos, mas com um pouco de atenção nota-se que tudo acaba se reduzindo a uma meia dúzia de bobagens.
Claro que, posta a questão nesses termos, o ceticismo aparece apenas como uma confissão de impotência, e fazer propaganda do próprio ceticismo aparece como uma repetição da história daquele personagem de um filme antigo com o Walter Matthau que, tendo ficado impotente, acabou milionário com o livro autobiográfico As Delícias da Impotência. Mas vai ser rara essa honestidade toda em céticos.
A dúvida cética, afinal, não surge de uma sincera busca do conhecimento, mas de um simples movimento frenético da mente para criar objeções àquilo que não quer reconhecer. O ceticismo é produto do medo, do temor da verdade, porque a verdade, quando reconhecida, tem uma força imperativa para quem a conhece, e o cético, tal como uma criança assustada perante o mundo adulto, quer fugir dessa responsabilidade pessoal.
Uma crença que se funda de tal forma no engano só poderia mesmo ser pródiga em criar, para si mesma, justificativas falsas, exemplares perfeitos da ação da falsa consciência, como um Dorian Gray que esquecesse seu retrato e acreditasse unicamente na imagem que vê no espelho.
Uma dessas justificativas é de tipo político. Segundo os céticos, todo totalitarismo vem do dogmatismo - um deles chega a dizer que todos os males do mundo vêm de alguém imaginar que sabe alguma coisa. Por isso, a adoção do ceticismo seria uma conditio sine qua non para a vida democrática.
Esquecendo por um instante o fato de que os fundadores da nação que inventou a idéia de democracia achariam essa noção no mínimo muito esquisita, vejamos se, do ponto de vista lógico, essa idéia faz algum sentido.
O que é essencial ao totalitarismo? Eu não hesitaria em dizer que é a resolução por via política do que não é, originalmente, político; ou seja, é a assimilação pelo Estado daquilo que deveria ser autônomo. Um regime político que, por exemplo, deixa ao Estado a decisão sobre que livros serão publicados e quais não serão, se não é totalitário, pelo menos está no caminho do totalitarismo.
Ora, para que uma resolução se faça por critérios estritamente políticos, ela precisa ser fundamentada nos juízos próprios da política. E, segundo Carl Schmidt (O Conceito de Política, há uma tradução da Vozes), o binômio essencial da política é o par amigo-inimigo. Uma questão é politizada quando não é resolvida por critérios de certo e errado, ou verdadeiro e falso, ou belo e feio, mas quando a decisão é imposta pelos vencedores aos vencidos pelo simples fato de que os primeiros estão no poder e os outros não.
Basta expor isto para que qualquer um perceba que o ceticismo não só não é necessário para a democracia, mas lhe é inteiramente incompatível. Porque o ceticismo simplesmente extermina todas as distinções por critérios racionais; logo, se há uma divergência, a única maneira de resolvê-la é pelos critérios políticos, isto é, com os amigos impondo a solução aos inimigos. O mínimo que se exige, para que haja democracia, é que haja esferas que não serão decididas politicamente, mas segundo critérios próprios.
Se esses critérios são abolidos, se são considerados meras pretensões ingênuas dos dogmáticos, o único recurso que resta é a politização de tudo; resta tentar impor uma visão sobre as outras por via política - resta, enfim, o totalitarismo.
Eis a que fica reduzida a tão democrática visão cética apregoada por tantos falsos "liberais" (e, vale dizer, o neoliberalismo é um falso liberalismo) quando examinada de perto.
Passemos a uma outra auto-justificativa preferida dos céticos, esta de ordem moral (e não falarei da "ética do egoísmo" da russa radicada nos EUA Ayn Rand, porque aí já estamos no perigoso terreno da demência). Como essas criaturas gostam de pintar a si mesmas como muito lindas e maravilhosas, elas costumam achar que são muito humildes, e se orgulham de não querer "impor" sua visão de mundo sobre os outros.
Isso aí é produto daquilo que Chesterton chamava de "virtudes cristãs enlouquecidas". Uma virtude cristã (assim como uma doutrina) só faz sentido no quadro maior da Revelação, onde tudo se encaixa cuidadosamente, como num mosaico. Uma virtude fora do quadro no qual ela foi concebida torna-se acéfala e, realmente, louca. Os melhores exemplos disso são a caridade e a humildade tais como entendidas por certos de nossos contemporâneos. Da primeira, falo em outra ocasião. É a segunda que nos interessa propriamente aqui.
A humildade nada mais é do que o reconhecimento da própria insignificância perante Deus. Ser humilde é admitir que a realidade é mais importante do que os próprios pensamentos, que servir a Deus é mais importante do que satisfazer as próprias paixões, que ser fiel ao sentido da vida é mais importante do que a própria vida. Enfim, a humildade é indissociável da fé. É a fé que dá sentido à humildade e que revela seu verdadeiro significado.
É, portanto, um absurdo inominável dizer que um cético é humilde. Não pode ser humilde quem não reconhece sequer a possibilidade da verdade. Pilatos teve a Verdade encarnada diante de si, e pôs a Ela uma objeção cética, cheia de afetações. Não há humildade na atitude de Pilatos. Há, pelo contrário, uma arrogância do tamanho do mundo.
Só uma arrogância enorme pode levar alguém a legislar sobre a capacidade intelectiva de toda a humanidade. Só alguém extraordinariamente arrogante pode querer erigir o próprio medo em lei universal da mente humana. Só um delírio de raiva onipotente à verdade pode fazer uma coisa dessas passar por humildade.
E encerro lembrando as considerações de Léon Bloy, quando se pôs a analisar um dos lugares-comuns preferidos de sua época e que ainda não saiu de moda, aquele que diz que "nada é absoluto". Bloy mostra a que conseqüências leva o ceticismo, se levado a sério:
"(...)A maior parte dos homens da minha geração ouviu isso a infância inteira. Cada vez que, bêbados de desgosto, procurávamos um trampolim para fugirmos saltando e vomitando, o Burguês nos aparecia, armado com esse raio.
"Necessariamente, então, precisávamos reintegrar o lucrativo Relativo e a sábia torpeza.
"Quase todos, é verdade, se aclimatavam a isso, tornando-se, por sua vez, deuses do Olimpo.
"Sabem eles, no entanto, esses bebedores de um néctar imundo, que não há nada tão audacioso quanto revogar o Irrevogável, e que isso implica a obrigação de o próprio revogador se tornar alguma coisa como o Criador de uma nova terra e de novos céus?
"Evidentemente, se alguém empenha a palavra de honra em que 'nada é absoluto', a aritmética, no mesmo ato, se torna exorável e a incerteza plana sobre os axiomas mais incontestados da geometria retilínea. Nessas circunstâncias, torna-se duvidoso saber se é melhor degolar ou não degolar o próprio pai, ter vinte e cinco centavos ou setenta e quatro milhões, receber pontapés no traseiro ou fundar uma dinastia.
"Enfim, todas as identidades sucumbem. Não é 'absoluto' que este relojoeiro, que nasceu em 1859, para orgulho de sua família, tenha hoje quarenta e três anos e que ele não seja avô do decano de nossos empacotadores que veio à luz durante os Cem Dias, - da mesma forma que seria temerário sustentar que um percevejo é exclusivamente um percevejo, e que ele não deve pretender tornar-se uma insígnia militar.
"Em tais circunstâncias, convenhamos, o dever de criar o mundo se impõe". (Exégèse des lieux communs, série 1, lugar-comum II, 1913)