Trecho de A Ilha de Darwin, de Steven Jones
1 O ORANGOTANGO DA RAINHA
Em 1842, a rainha Vitória foi ao zoológico de Londres. Ela ficou bastante incomodada: "O orangotango é maravilhoso… é assustadora, dolorosa e desagradavelmente humano." O animal não era um macho, mas uma fêmea chamada Jenny, cuja mãe Charles Darwin havia visitado alguns anos antes. Ele também notou a semelhança entre os primatas dos dois lados da grade. O jovem biólogo anotou em seu caderno: "O homem, em sua arrogância, considera-se uma grande obra. Seria mais humilde e verdadeiro, creio eu, considerá-lo criado a partir dos animais." Dezessete anos após a visita da rainha, em 1859, ele publicou a teoria que provou que a rainha Vitória, assim como ele próprio, tinha parentesco com Jenny, com todos os seus companheiros do jardim zoológico e com todos os habitantes do planeta.
A origem das espécies causou alvoroço entre os súditos da imperatriz da Índia. Seu chanceler, Benjamin Disraeli, formulou a famosa pergunta: "O homem é um macaco ou um anjo? Meu Senhor, estou do lado dos anjos. Repudio com indignação e aversão essas novas teorias mirabolantes", e muitos de seus concidadãos concordaram. Ainda assim, a ideia imediatamente se tornou de interesse público (e a revista britânica Punch dedicou sua edição natalina de 1861 a humanos semelhantes a gorilas e seus opositores). Finalmente, e com certa relutância, a noção de que todo britânico, rico ou pobre, compartilhava sua descendência com o resto do mundo foi aceita. Vinte e cinco anos depois, W. S. Gilbert escreveu a frase célebre: "O homem darwiniano, ainda que bem-comportado, na melhor das hipóteses não passa de um macaco sem pelos", e a ideia do Homo sapiens como um primata depilado tornou-se parte da cultura popular, à qual pertence. A própria Vitória parabenizou uma de suas filhas, a coroada princesa da Prússia, por voltar-se a A origem: "Quantos livros interessantes e difíceis lês. Agradaria, e agradará, o amado Papa."
Como a rainha havia notado, a semelhança física entre homens e macacos é clara. Em 1859, Charles Darwin explicou o porquê. Um certo cuidado foi necessário para promover a ideia de que o que havia criado os animais também havia produzido os homens e as mulheres, e ele esperou vinte anos antes de se prolongar no assunto. A descendência do homem descreve como - e por que - o Homo sapiens compartilha sua natureza com outros primatas. O livro usa nossa própria espécie como um exemplar da evolução.
Para o fundador da biologia moderna, o homem obedeceu as mesmas regras evolutivas que seus semelhantes, e compartilha muito de seu ser físico com eles; conforme consta no parágrafo final do livro, ele ainda possui "a marca indelével de sua origem primitiva". Em termos morais, o Homo sapiens era algo mais: "(…) de todas as diferenças entre o homem e os animais mais primitivos, o senso moral ou consciência é, de longe, a mais importante. Esse senso (…) é resumido na palavra dever, curta, mas imperiosa, tão cheia de significado. É o mais nobre de todos os atributos do homem, levando-o, sem um momento de hesitação, a arriscar sua vida pela vida de um semelhante." Nenhum macaco compreende o significado de "dever", uma palavra carregada de ideias alheias a todas as espécies, com a exceção de uma. Ainda assim, apesar desse atributo essencial e unicamente humano, todo macaco - incluindo nós - é, assim como todas as outras criaturas, o produto de um mecanismo biológico comum.
A lógica da evolução é simples. Em todas as plantas e animais, existe variação, a qual é passada de geração em geração. Nascem mais indivíduos do que são capazes de viver ou procriar. Consequentemente, desenvolve-se uma batalha por permanecer vivo e encontrar um parceiro. Nessa batalha, aqueles que possuem certas variantes prevalecem sobre os menos dotados. Tais diferenças herdadas na capacidade de transmitir genes - seleção natural, como chamou Darwin - significam que as formas favoráveis tornam-se mais comuns com o passar das gerações. Com o tempo, quando novas versões se acumulam, uma linhagem pode mudar tanto que já não pode trocar genes com aqueles que um dia foram seus semelhantes. Surge uma nova espécie.
A seleção natural é uma fábrica que produz coisas quase impossíveis. Fabrica o que parece obra de engenharia, sem necessidade de um engenheiro. A evolução constrói órgãos complexos como o olho, a orelha ou o cotovelo reunindo variantes favorecidas conforme elas surgem. Quase como uma ideia de último momento, gera novas formas de vida.
Sua história, conforme contada em A origem das espécies, mostra os esforços dos agricultores ao desenvolverem espécies novas a partir das antigas; as mudanças ocorridas em animais selvagens expostos aos rigores da natureza e às demandas do sexo oposto; a tendência ao desenvolvimento de formas singulares em lugares isolados; e as palavras silenciosas dos fósseis, que contam como era o planeta antes que a evolução acontecesse. Suas páginas falam do embrião como uma chave para o passado e de como as estruturas já sem valor e outras que parecem quase perfeitas demais são testemunhos do poder da seleção natural. A geografia da vida, em ilhas, continentes e montanhas, é também prova da descendência comum de cogumelos, camundongos e homens. Principalmente, a diversidade da vida pode ser organizada em uma série de grupos dentro de grupos, de afinidade sempre decrescente, como um forte indício de que eles se separaram uns dos outros há muito tempo.
A descendência do homem usa essa lógica para desvendar a história de uma única espécie. Por mais que se considere único, o Homo sapiens é um animal como todos os outros. A famosa última frase do livro diz: "Eu dei prova do melhor de minha habilidade: e, ao que me parece, devemos reconhecer que o homem, com todas as suas nobres qualidades, com a simpatia que sente pelos mais desfavorecidos, com a benevolência que concede não apenas a outros homens mas também à mais simples criatura viva, com sua inteligência divina capaz de compreender os movimentos e a constituição do sistema solar - com todos esses poderes sublimes -, ainda traz em sua estrutura física a marca indelével de sua origem primitiva."
Em 1871 - e mesmo em 1971 - as provas para aquela provocativa declaração final eram, de fato, insuficientes. Agora, tudo mudou. Toda a teoria evolutiva pode ser sustentada com base em nós mesmos e em nossos parentes; em cercopitecos e hominoides, em chimpanzés e gorilas e em homens e mulheres. Nossa nova capacidade de observar genes, células, tecidos e orgãos em detalhes extraordinários significa que sabemos mais sobre o passado do homem do que sobre o de qualquer outra espécie. A evolução é mais bem observada por meio de nossos próprios olhos; e não apenas porque estamos todos interessados em saber de onde viemos, mas porque os avanços na ciência significam que o Homo sapiens se tornou a personificação de toda ideia evolutiva. A teoria de Darwin não foi muito modificada desde que foi proposta há 150 anos. Por outro lado, mudou a tecnologia usada para estudá-la.
Por mais técnicas que tenham se tornado, as ferramentas usadas hoje para examinar o passado teriam sido familiares em sua natureza, se não em seus detalhes, aos biólogos do século XIX. Charles Darwin foi, entre seus muitos talentos, um proficiente anatomista. Ele usou mudanças na estrutura física dos pombos, porcos e pessoas como indícios para sua teoria. O primeiro capítulo de A descendência do homem é um relato um pouco maçante das diferenças entre os ossos e corpos de homens e macacos. A dissecação, outrora no centro da biologia (e os biólogos de uma certa idade ainda estremecem com o cheiro de formalina), há não muito tempo parecia antiquada, mas hoje parece bastante moderna. A biologia molecular não é mais do que anatomia comparativa acrescida de uma montanha de dinheiro. Seus bisturis químicos cortam seres vivos em bilhões de letras individuais de código de DNA. Aqueles que os manejam mostraram, acima de qualquer dúvida, a verdade por trás do receio da rainha Vitória de que o orangotango Jenny fosse uma prova da ancestralidade comum entre humanos e macacos e muitos outros.
O Projeto Genoma Humano - o esquema para mapear a sequência de nosso próprio DNA - selou um empreendimento que teve início no século XVI, quando Vesalius abriu o coração e descobriu que tinha quatro cavidades em vez das três nas quais insistiam os gregos. Sua conclusão foi anunciada em 2000 e novamente em 2003, 2006 e 2008 (e algumas partes da dupla hélice permanecem não mapeadas). Uma ciência que fora, em sua infância, uma mera descrição de ossos e músculos tornou-se adolescente quando A origem das espécies demonstrou como estruturas compartilhadas eram indícios de uma descendência comum. Enfim chegou à maturidade. A anatomia do DNA tornou-se a chave para a história da vida.
Num armário envidraçado na University College London reside o corpo empalhado do filósofo oitocentista Jeremy Bentham, que defendia a busca da "maior felicidade para o maior número de pessoas". Seu autoícone, como ele o chamava, foi uma tentativa de memorial que custaria menos do que os pomposos sepulcros, então na moda. Bentham estava convencido de que sua ideia seria amplamente aceita. Dois séculos mais tarde, isso aconteceu. James Watson - a metade sobrevivente do duo que desenrolou a dupla hélice - foi presenteado com seu próprio autoícone, um disco compacto com a sequência completa de seu DNA, que ele pode, se desejar, exibir para edificação pública em uma pequena caixa de plástico.
A essência de Watson está codificada em uma massa emaranhada de química complexa. O zigoto que o originou continha dois metros de DNA, e cada uma das bilhões de células que derivam dele conforme seu corpo cresce e envelhece tem uma cópia. Cada uma dessas sentenças moleculares está escrita em 3,2 bilhões de letras, as quatro bases do código genético conhecido. Há vinte anos, quando o esquema para mapear toda a sequência foi proposto, levava meses para decifrar o número de letras contido neste parágrafo. A molécula era dividida em partes menores ao acaso, cada uma delas era lida de ponta a ponta e, para reagrupar o genoma completo, buscavam-se os lugares onde os fragmentos se justapõem. Tais métodos são antigos. As máquinas de hoje recebem flashes de luz de moléculas identificadas com tinta fluorescente, cada base com sua própria cor, e comprimidas uma a uma por poros minúsculos. Tarda não mais do que algumas horas para mapear uma sequência do tamanho deste livro, que corresponde a não mais que uma parte, em muitos milhares, de todo o conteúdo do genoma humano. Logo será possível sequenciar moléculas únicas em vez de várias cópias, como é hoje necessário, e os entusiastas falam de máquinas que serão capazes de mapear 1 milhão de bases de DNA por segundo.
A primeira sequência humana custou 1 bilhão de dólares, e a versão de Watson foi leiloada por 1 milhão. Em 2008, a empresa Knome ofereceu mapear o DNA de qualquer pessoa por apenas U$350 mil. De fato, a sequência completa pode hoje ser feita por uma fração daquela soma. Em cinco anos, o preço cairá para alguns milhares de dólares por genoma, e será possível decifrar o DNA de qualquer ser vivo a um custo insignificante. A rede de parentesco que dá forma à vida será então revelada em todos os seus detalhes.
A matéria-prima da evolução é, em sua estrutura física como uma hélice retorcida, simples ou até mesmo elegante, mas em sua biologia é totalmente o oposto. Em detalhes, o DNA é, francamente, uma bagunça, pois a seleção natural foi forçada a construir sobre aquilo que já existe. A vida não surgiu da engenharia, mas da conveniência. A máquina darwiniana não tem estratégia e jamais prevê o futuro. Suas táticas são baseadas no momento, e os genomas que cria, assim como os seres vivos que eles codificam, são produtos de um conjunto de dilemas de curto prazo. A molécula de James Watson é marcada pela redundância, pela deterioração e pelas cicatrizes de batalhas ocorridas há muito tempo. Os genes - assim como células, vísceras e cérebros - funcionam, mas por pouco.