FHC contra o Estado forteDepois da tentativa de tomada de controle da Vale e da proposta de mudança na lei do petróleo, o ex-presidente alerta para o perigo do excesso de intervenção estatal na economiaEstadolatria. Doença gravada no DNA do brasileiro, ela é parte do nosso código genético. Seu principal sintoma é confundir a ideia de nacionalismo com a defesa de um estado forte e intervencionista. Só que, sempre que a ingerência estatal avança, diminui a eficiência das empresas. É assim que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso enxerga o momento atual do País. Em entrevista exclusiva à DINHEIRO, ele se disse preocupado com movimentos recentes do governo, como a tentativa de tomada de controle da Vale, e fez um alerta: "devagarzinho estamos mudando o modo de funcionar da economia brasileira, na direção do chavismo." Na entrevista, ele também fez raros elogios ao presidente Lula, dizendo que seu sucessor merece todo o reconhecimento internacional que tem. Mas avisou que as eleições de 2010 não serão um embate entre os oito anos de Lula versus os oito anos de FHC, ou de estado forte contra mínimo, como deseja o PT. "O eleitor olha para a frente, não para trás", diz ele. "Ele quer saber quem o conduzirá a um futuro melhor." Leia a seguir sua entrevista.
DINHEIRO - Uma das batalhas do seu governo foi a aprovação da Lei do Petróleo, em 1997, que agora está sendo revista pelo governo. Como o sr. avalia essa guinada?
FHC - Lá atrás, nós desfizemos uma confusão que havia entre União e Petrobras. O monopólio, na verdade, pertence à União, que pode conceder o direito de explorar o petróleo à Petrobras ou a outras empresas. Em paralelo, nós transformamos a Petrobras numa verdadeira empresa, tirando o caráter de repartição pública pertencente a partidos. Naquele tempo, o Brasil produzia 700 mil barris por dia e foi esse estímulo à competição que fez com que a empresa alcançasse a autossuficiência, com dois milhões de barris.
DINHEIRO - A descoberta do pré-sal, com risco exploratório menor, não exigiria a mudança do modelo?
FHC - O governo, de fato, tem o dever de parar para pensar e avaliar o que é melhor para o País. Mas o risco para a União, no regime de partilha, aumenta. Na prática, o governo estatiza o risco. Ele terá o custo exploratório e só vai ser ressarcido se houver sucesso. No modelo atual de concessões, o risco é diluído entre os agentes, públicos ou privados. Além disso, tem a criação dessa nova empresa, a Petrosal, cujo objetivo é inspecionar a exploração. Ela não estará submetida à Agência Nacional de Petróleo, e sim ao Ministério de Minas e Energia. Isso aumenta o risco de corrupção. Eu até brinco dizendo que a sede da Petrosal talvez devesse ser a cidade de Codó, no Maranhão. E há ainda a proposta de capitalizar a Petrobras com cinco bilhões de barris do pré-sal. Sabe o que isso significa? Tudo o que foi extraído da Bacia de Campos até hoje.
DINHEIRO - No seu governo já havia sinais da descoberta do pré-sal?
FHC - Sim, o campo de Tupi foi leiloado em 2000, com muita oposição do PT. Ganharam a Petrobras, a British Petroleum e a portuguesa Galp. Um ano depois, nos road-shows da Petrobras, já se falava da perspectiva do pré-sal, mas não se sabia a dimensão, como na verdade não se sabe até hoje.
DINHEIRO - Como o sr. avalia o caso Vale e a tentativa do governo de mudar a gestão da companhia?
FHC - Devagarzinho, nós estamos mudando o modo de funcionar a economia brasileira. A base de tudo isso é a existência de grandes fundos de pensão ligados a empresas estatais ou que foram estatais. Em grande parte, esses fundos foram feitos com dinheiro do Tesouro e se expandiram com a contribuição do dinheiro dos empregados. Hoje, eles têm uma massa de recursos enormes e investem. Só que agora querem deixar de ser apenas investidores para ser também gestores das companhias. Depois da privatização, vem a "previtização" da economia.
DINHEIRO - É um erro?
FHC - Sim. No Exterior, os fundos são geridos para garantir aposentadorias e não se transformam em gestores. A Vale, por exemplo, é uma das empresas com melhor retorno no mundo e os beneficiários dos fundos deveriam tirar o chapéu para os atuais gestores. Outro problema é o fato de os fundos serem controlados por um partido político. E se alguém me perguntar quem é o maior capitalista do Brasil, eu respondo: é o PT.
DINHEIRO - O Sérgio Rosa, da Previ?
FHC - Provavelmente. E ele toma decisões que são também de partido. Hoje, há um movimento para eternizar o comando do PT nas empresas. E o modelo brasileiro ficou curioso. As empresas são privadas, mas estão submetidas a um comando que não é propriamente estatal. É político-partidário.
DINHEIRO - Que distorções isso cria para a economia e para a competição política?
FHC - Bom, se o governo tem ingerência, ele de repente decide que a Vale tem que fazer siderúrgicas. Mas por que a companhia deve competir com seus próprios clientes? Empresas como Vale e Petrobras cresceram porque nós tiramos a ingerência político-partidária. E isso agora está voltando. No campo político, há também uma distorção potencial, que é o impacto nos financiamentos de campanhas. A base de poder de um partido que controla essas empresas é imensa.
DINHEIRO - O governo quer mesmo as siderúrgicas ou usa isso como argumento para mudar a gestão?
FHC - É argumento. Eles querem controlar a Vale e ponto final. Por isso é também um erro avaliar que o governo Lula é uma continuidade do governo FHC. Na área macroeconômica, sim. Mas nessas questões da Vale, da Petrobras, das agências reguladores, nós estamos numa contrarreforma. Pouco a pouco, estamos matando as agências.
DINHEIRO - Mas, daqui a 100 anos, quando os historiadores olharem para os 16 anos de Lula e FHC, não parecerá que foi uma coisa só?
FHC - Sim, no que diz respeito às políticas sociais e à macroeconomia. Só que, na sutileza, há diferenças. E dependendo da continuidade desse processo, nós podemos caminhar para um chavismo. A diferença, no caso da Venezuela, é que não existe o outro lado, um setor privado forte. Aqui existe um contrapeso, mas é importante fazer o alerta. Estamos caminhando para um modelo que não é o capitalismo democrático, tal qual o conhecemos. Pode até funcionar, como no caso da China. Mas o preço é a liberdade.
DINHEIRO - Tem reversão?
FHC - Depende das eleições, mas o nosso DNA é estatizante. A nossa aversão à competição vem do passado. Aqui, as pessoas não gostam de meritocracia, como se isso valorizasse a pessoa e não o coletivo. Essa visão de mundo permite uma ingerência extramérito, pelo caminho do privilégio. Como os dirigentes dos fundos, nossos grandes capitalistas, chegaram ao comando dessas empresas? Eles não passaram pelo crivo do povo, nem do mercado. Ascenderam pela política partidária. E no fim acabam misturando os interesses de um segmento burocrático com a ideia de nacionalismo.
DINHEIRO - Essa paixão pelo Estado não afeta o próprio PSDB, como no caso do governador Aécio Neves, que está transformando a Cemig numa das maiores estatais do País? É a necessidade de criar um discurso não privatista para enfrentar o PT?
FHC - O governador anterior, o Eduardo Azeredo, fez uma coisa complicada. Um contrato de gestão com sócios privados, porque ele não quis privatizar. Fez pela metade e não deu certo. E o meu partido, há muito tempo, não vem sabendo defender o que foi feito. Ele se encabulou diante da crítica, como se a privatização não tivesse sido boa. Precisava só falar nos 150 milhões de telefones, na quantidade de pessoas que ganharam dinheiro usando o FGTS na compra de ações da Vale e assim por diante.
DINHEIRO - A onda estatizante cria uma herança maldita?
FHC - As empresas são muito boas e eu acho que não vai dar tempo, se eles não ganharem a eleição. Herança maldita eu vejo no campo fiscal.
DINHEIRO - A fórmula eleitoral do PT é dizer que Dilma Rousseff é igual ao terceiro mandato do Lula. É igual mesmo ou mais estatista?
FHC - Bem mais. O Lula não tem esse DNA. Ele é um líder sindical, negociador e acomodador. Não é propriamente estatizante e se dá muito bem com o setor privado. Ele se adapta, o que é bom para o Brasil. Mas agora ele vai nesse rumo porque escolheu a Dilma como candidata.
DINHEIRO - Em 2010, numa eleição entre Dilma e José Serra, o embate seria entre oito anos de Lula e oito de FHC, ou entre Estado forte e Estado mínimo, como quer o PT?
FHC - A eleição não vai ser essa. O eleitor não olha para trás, olha para a frente. Entre Dilma e Serra, o eleitor vai julgar: quem me conduz para um futuro melhor? A Dilma não é o Lula nem o Serra sou eu.
DINHEIRO - Às vezes eles têm até pontos de convergência, não?
FHC - É, alguns. Mas o Serra não é estatizante. É uma pessoa pragmática, de bom senso.
DINHEIRO - Quais são as qualidades que o sr. enxerga neste governo e no presidente Lula, em particular?
FHC - Primeiro, o presidente realmente tem a capacidade de falar de modo que as pessoas entendam e se sintam parte do processo. Eles foram prudentes na gestão econômica e até avançaram. Foi uma virtude do Antônio Palocci, do governo e do próprio Lula. Mas eles também tiveram uma conjuntura favorável e uma herança bendita, da qual vivem.
DINHEIRO - Que nota o sr. daria?
FHC - Uma nota positiva na questão econômica. Mas onde eu daria uma nota negativa? Na leniência com a corrupção, de um governo que trata qualquer escândalo como coisa natural, e na questão institucional, que é onde estamos retrocedendo. Houve o enfraquecimento das agências, a transformação do Legislativo num apêndice do Executivo e o enfrentamento do Judiciário e das garantias institucionais. Parou porque o Gilmar Mendes deu um basta.
DINHEIRO - E como o sr. avalia o reconhecimento do Lula, que passou a ser chamado de "o cara". Há quem diga que o sr. sente inveja?
FHC - Não é uma questão de inveja. O Brasil sempre apareceu no cenário internacional e foi crescendo ao longo dos anos. Hoje há um reconhecimento do Lula do qual ele é merecedor. Ele é o operário que virou presidente, o que, em si, já é importante. E até hoje eu tenho boa relação pessoal com ele.
DINHEIRO - Mas uma relação política conflituosa?
FHC - Ele faz suas provocações, eu faço as minhas também, mas vamos acabar tomando um chope em São Bernardo depois de 2010.
DINHEIRO - O sr. mencionou uma disputa entre Serra e Dilma. Mas e o Aécio Neves?
FHC - O que ele está dizendo é o seguinte: está disposto a ser presidente da República, mas tem o tempo dele. O que é razoável. Enfim, se o partido não decidir antes quem será o candidato, automaticamente terá decidido pelo Serra.
DINHEIRO - O discurso feito pelo Aécio, do pós-Lula e da convergência entre PT e PSDB, em vez do antagonismo, não é o mais adequado para 2010?
FHC - O problema do antagonismo não é do nosso lado. Quando fizemos a minha transição para o Lula, isso era possível. Mas o PT e o José Dirceu definiram que o adversário eleitoral seria o PSDB. E como eles ainda não tinham amarrado a aliança com o PMDB, deu no Mensalão. Eu nunca me esqueço de uma conversa que tive com o Dirceu e o Lula, em 1994, quando fiz o Plano Real. Chamei os dois e disse que o plano seria bom para o trabalhador. O Zé então me perguntou se eu achava que aquilo poderia criar um candidato contra o Lula. Era essa a preocupação. Se era bom ou ruim para o PT, não para o Brasil.
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