“Rousseau e outros cinco inimigos da liberdade” – Sir Isaiah Berlin
“Partindo da liberdade ilimitada, chego ao despotismo ilimitado”-
Shigalev, em Os Demónios de Dostoiévski. (pág 49)
"Conseqüentemente, Rousseau desenvolve o conceito de vontade geral. Começa com a idéia inofensiva de um contrato, o que, no fim de contas, é um assunto semicomercial, simplesmente um tipo de compromisso a que se adere voluntariamente e, em última análise, igualmente revogável, um ato realizado por seres humanos que se reúnem e acordam praticar determinadas ações destinadas a conduzir à sua felicidade comum.
É assim que começa; mas a partir da idéia de um contrato social como um ato absolutamente voluntário da parte de indivíduos que permanecem independentes e que buscam, cada um, o seu próprio bem, Rousseau avança gradualmente para a noção de uma vontade geral quase como a vontade personificada de uma vasta entidade super-individual, de algo chamado “o Estado”, que não é já o leviatã esmagador de Hobbes, mas algo mais parecido com uma equipa, com uma Igreja, uma unidade na diversidade, algo maior do que nós, no qual mergulhamos a nossa personalidade apenas para voltarmos a descobri-la.
Há um momento místico em que Rousseau passa misteriosamente da idéia de um grupo de indivíduos com relações voluntárias e livres entre si, cada um buscando o seu próprio bem, para a idéia de submissão a algo que somos nós próprios e, contudo, é maior do que nós – o todo, a comunidade. Os passos que utiliza para o alcançar são singulares e vale a pena analisá-los brevemente.
Dizemos para nós próprios que desejamos determinadas coisas e se somos impedidos de as ter, não somos livres; e isso é o pior que nos pode acontecer. Dizemos então para nós próprios: “O que é que eu desejo?” Desejamos apenas a satisfação da nossa natureza. Se formos sensatos, se formos racionais, bem informados, perspicazes, descobriremos onde reside a nossa satisfação.
A verdadeira satisfação de qualquer homem não pode colidir com a verdadeira satisfação de qualquer outro, pois se isso acontecesse, a natureza não seria harmoniosa e uma verdade colidiria com outra, o que é logicamente impossível. Poderei verificar que outros homens estão a tentar frustrar-me. Por que motivo o fazem? Se sei que estou certo, se sei que aquilo que busco é o verdadeiro bem, então as pessoas que se me opõem têm de estar erradas sobre o que quer que seja que elas próprias busquem.
O que Rousseau pretende transmitir, de fato, é que todos os homens são potencialmente bons – ninguém pode ser totalmente mau. Se os homens deixassem a sua bondade natural brotar, desejariam apenas aquilo que é correto; e o fato de não o desejarem só significa que não compreendem a sua própria natureza.
Mas a natureza está lá, apesar de tudo isso. Para Rousseau, afirmar que aquilo que um homem deseja é mau, embora potencialmente deseje o que é bom, é como dizer que existe uma qualquer parte secreta dele próprio que constitui o seu eu «verdadeiro»; que se ele fosse ele próprio, se fosse como deveria ser, se fosse o seu verdadeiro eu, então procuraria obter o bom.
Forçar um homem a ser livre é forçá-lo a comportar-se de uma forma racional. É livre o homem que obtém aquilo que deseja; aquilo que verdadeiramente deseja é um fim racional. Se não deseja um fim racional, não deseja verdadeiramente; se não deseja um fim racional, aquilo que deseja não é a verdadeira, mas a falsa liberdade.
Forço-o a fazer certas coisas que o farão feliz. Ele ficar-me-á grato se alguma vez descobrir o seu próprio eu verdadeiro: é esse o âmago da sua famosa doutrina e não há um ditador no Ocidente que depois de Rousseau não tenha utilizado esse monstruoso paradoxo para justificar o seu comportamento.
Os Jacobinos, Robespierre, Hitler, Mussolini, os Comunistas, utilizam todos esse mesmo método argumentativo, de afirmar que os homens não sabem o que verdadeiramente querem – e, assim, ao querê-lo por eles, ao desejá-lo em seu nome, damos-lhes o que num sentido oculto, sem que eles próprios saibam, desejam “realmente”.
Quando executamos um criminoso, quando submetemos seres humanos à nossa vontade, mesmo quando ordenamos inquisições, quando torturamos homens e os matamos, não estamos apenas a fazer algo que é bom para eles – embora mesmo isso seja já suficientemente dúbio - , estamos a fazer aquilo que eles verdadeiramente querem, mesmo que o neguem mil vezes.
O mal provocado por Rousseau consiste em ter iniciado a mitologia do eu verdadeiro, em nome da qual nos é permitido forçar as pessoas. Sem dúvida que todos os inquisidores e todas as grandes estruturas religiosas procuraram justificar os seus atos de coerção, que terão ulteriormente parecido, pelo menos a algumas pessoas, cruéis e injustos; mas, pelo menos, invocaram sanções sobrenaturais para eles. Pelo menos invocaram justificações que não era permitido à razão questionar.
Por esta grande perversão, Rousseau é mais responsável do que qualquer outro pensador que alguma vez tenha vivido. Nesse sentido, não é minimamente paradoxal afirmar que Rousseau, que reivindica ter sido o amante mais ardente e apaixonado da liberdade humana que alguma vez viveu, que procurou libertar todas as grilhetas, os constrangimentos da educação, da sofisticação, da cultura, da convenção, da ciência, da arte, – Rousseau, apesar de tudo isso, foi um dos mais funestos e formidáveis inimigos da liberdade em toda a história do pensamento moderno."