JC e-mail 2698, de 31 de Janeiro de 2005.
Seleção sobrenatural Conferência em São Paulo expõe o ideário do criacionismo, movimento que diz que a evolução está condenada e quer ver o literalismo bíblico nas escolas
Claudio Angelo escreve para a ‘Folha de SP’:
0 conhecimento revelado e o conhecimento científico têm naturezas e propósitos distintos." Quem ouvisse a frase de Euler Pereira Bahia na quinta-feira retrasada, durante a abertura do 5º Encontro Nacional de Criacionistas, poderia respirar com alívio.
Ali estava o reitor de uma instituição criacionista, o Unasp (Centro Universitário Adventista de São Paulo), aparentemente se aliando com o que muita gente considera apenas bom senso: ciência e religião são domínios importantes, mas não se misturam.
O alívio, como se verificaria, foi temporário. O que se seguiu à fala do reitor foram quatro dias de ataques à evolução pela seleção natural, a teoria proposta pelos naturalistas britânicos Charles Darwin (1809-1882) e Alfred Russel Wallace (1823-1919) em 1858 que explicou como as espécies se originam e que baniu para sempre o sobrenatural da biologia.
As estocadas foram desferidas principalmente pelos chamados "cientistas da criação", cristãos evangélicos que levam a Bíblia ao pé da letra e que costumam defender o ensino do livro do Gênese nas escolas para explicar o surgimento e a evolução da vida.
Também compareceram ao encontro proponentes do chamado design inteligente, tese que luta para ganhar o rótulo de "científica" ao postular que a imensa complexidade dos seres vivos não pode ser explicada pela seleção natural, mas é produto de um "planejamento".
A conferência foi realizada de 20 a 23 deste mês e acompanhada pela reportagem da Folha. Na programação, palestras de estudiosos membros de instituições adventistas dos EUA e do Brasil, sob títulos sugestivos como "domando os dinossauros" e "estratificação espontânea", além de uma discussão seríssima sobre se havia morte e decomposição no Éden (o conferencista, um americano, ponderava se os caroços de maçã se acumulavam eternamente no chão do Paraíso).
No final, uma excursão geológica e paleontológica, dedicada a mostrar supostas evidências de que a Terra tem menos de 10 mil anos de idade e foi realmente assolada pelo dilúvio.
Sinais nas rochasA julgar pela conferência da geóloga norte-americana Elaine Kennedy, do Geosciences Research Institute (um instituto de pesquisas criado por adventistas de sétimo dia em Loma Linda, no Estado da Califórnia), as evidências do dilúvio estão em toda parte -até mesmo em inocentes cristais de calcita.
Na palestra, intitulada "Dados e Interpretação: Conhecendo a Diferença", Kennedy argumentou que, em ciência, tudo que não são medições em campo ou laboratório são interpretações do cientista.
E que dados podem ser interpretados de várias formas -concluindo, com isso, que as geociências e a Bíblia têm exatamente o mesmo peso na explicação da estrutura da Terra. "Todas as interpretações científicas são subjetivas e enviesadas", afirmou.
Admitindo ela mesma ter lá seu "viés" de interpretação, a geóloga mostrou à platéia um slide do padrão de refração da luz sobre uma fina fatia de calcita. Fatiar rochas e minerais e olhá-los contra a luz é um procedimento bastante usado para descobrir sua composição química.
"Este é o meu favorito, porque você vê nele um arco-íris circular e uma cruz negra", sorriu. "Por meio da tecnologia, você pode ver a mensagem de Deus e a promessa do Dilúvio", declarou a americana, a uma platéia maravilhada.
Kennedy foi mais longe: disse não acreditar no principal lema das ciências geológicas -o presente é a chave para o passado- porque a Bíblia diz que isso é falso e que "as evidências disponíveis não autorizam estabelecer uma idade jovem ou antiga para a Terra".
Admitiu, no entanto, que o "paradigma do dilúvio" não consegue explicar uma coisinha: por que a sucessão de fósseis animais em camadas de rocha diferentes ao longo das eras é tão consistente em todo planeta.
"Como é que existem fósseis jurássicos em rochas jurássicas na América do Norte, fósseis jurássicos em rochas jurássicas na América do Sul e fósseis jurássicos em rochas jurássicas na Europa? Eu, como criacionista, não consigo explicar isso."
Numa segunda conferência, sobre dinossauros, colocou como uma "questão pendente" a existência de grandes carnívoros, como o Tyrannosaurus rex, atribuindo seu tamanho exagerado a uma alteração devido aos efeitos do pecado original.
Momento"O criacionismo não é apenas ciência sem fundamentos, como religião anacrônica", disse o teólogo Eduardo R. da Cruz, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Mas é um anacronismo que está ganhando momento, admite Cruz. No Rio de Janeiro e na Bahia, a explicação bíblica para a criação já é ensinada nas escolas públicas.
Uma pesquisa feita pelo Ibope sob encomenda da revista "Época" e publicada em janeiro mostra que 89% dos brasileiros acham que o criacionismo deve ser ensinado nas escolas.
"Na periferia, o criacionismo corre solto. E não pode ser simplesmente reprimido", afirmou o teólogo. A infiltração se dá por meio das igrejas pentecostais, cuja presença é forte nas zonas mais pobres e que acabam abraçando o literalismo bíblico.
Nem todos os criacionistas, diga-se logo, querem a Bíblia como livro-texto nas aulas de ciências. "A ciência atual não aceita Deus e a criação", diz Márcia Oliveira de Paula, da Unasp (Centro Universitário Adventista de São Paulo), organizadora do encontro. "Mas, numa aula de ciência, apresentar uma teoria que tenha apoio divino não funciona."
Segundo ela e outros criacionistas brasileiros, o lugar para esse tipo de ensinamento são as aulas de religião. Que não podem ser ministradas em sua forma confessional em escolas públicas no Brasil, um Estado laico.
Nos EUA, país onde o fundamentalismo cristão produziu o "criacionismo científico" nos anos 1960, o quadro é diferente. Batalhas judiciais têm sido travadas nas últimas semanas para estabelecer o ensino das idéias sobre a criação bíblica, levantando, ao mesmo tempo, questões sobre a "credibilidade" do darwinismo.
A última delas foi vencida pelos criacionistas no distrito escolar de Dover, no Estado da Pensilvânia. Outra, sobre adesivos em livros didáticos no condado de Cobb, Geórgia, foi perdida por eles.
Cruz afirma que o movimento criacionista ainda pode crescer no Brasil. "A maioria católica nem sabe o que está em jogo", afirma.
Para o físico e colunista da Folha Marcelo Gleiser, da Universidade Dartmouth, em New Hampshire (EUA), os cientistas precisam reconhecer que o criacionismo não pode mais ser ignorado.
Até agora, a atitude de biólogos evolucionistas como o paleontólogo americano Stephen Jay Gould (morto em 2002) e o etólogo britânico Richard Dawkins -que eram adversários intelectuais- tem sido simplesmente se recusar a debater com os criacionistas.
"Só aparecer no mesmo tablado que eles é emprestar-lhes o respeito que eles desejam", escreveu Dawkins a Jay Gould em 2001. Numa atitude rara, o americano concordou.
"Os cientistas têm de acordar para a importância sociocultural do movimento criacionista", diz Gleiser. "Alegar que o debate dá credibilidade àqueles que não a merecem é uma postura ineficaz e perigosa. Se consideramos o criacionismo como uma doutrina errônea, devemos explicar à sociedade por quê."
O teólogo da PUC dá como exemplo dessa negligência o lançamento no Brasil (em 1997) do livro "A Caixa Preta de Darwin", do americano Michael Behe, da Universidade Leigh, estrela do design inteligente.
Na obra, Behe desfia a "complexidade irredutível" das biomoléculas, que só poderia ser resultado de um planejamento inteligente. "O livro foi ignorado. Há uma discussão ali que não pode ser ignorada", afirmou.
Coelho cambrianoPor enquanto, nada muda o fato de que o criacionismo, ao contrário do darwinismo, segue sem confirmação. "Peça a eles um único [fóssil de] coelho no [Período] Cambriano e eu me rendo", diz o virologista Paolo Zanotto, da USP. "Enquanto isso, vamos explicando a vida segundo a evolução."
O padre e paleontólogo italiano Giuseppe Leonardi prefere separar as coisas. Questionado uma vez por um jornalista sobre se via conflito entre sua vocação e sua profissão de caçador de fósseis -portanto, evolucionista, disse que não. E sorriu: "Deus não quer cientistas. Deus quer cristãos."
A política do designO design inteligente, ferramenta do criacionismo, é um "movimento filosófico e de ação política" que tem como objetivo influenciar o conteúdo dos livros didáticos em relação às "falhas" e "omissões" cometidas por eles ao ensinar aos estudantes a teoria da evolução pela seleção natural, que sofreria de uma "total insuficiência epistêmica".
As aspas são de Enézio E. de Almeida Filho, um professor do ensino médio que coordena o Núcleo Brasileiro de Design Inteligente. Classificando a teoria de Darwin como "zona de incerteza científica", Almeida Filho fez uma conferência durante o encontro criacionista atacando os livros didáticos de biologia do Brasil.
Segundo ele, a abordagem da evolução nos livros não cumpre os pré-requisitos do Ministério da Educação de despertar a consciência crítica nos estudantes do segundo grau.
"Nós não temos exatidão no conhecimento que é passado e não existe objetividade porque existe, sim, uma defesa de uma ideologia. [Isso] é negado, mas é uma ideologia materialista e atéia."
O professor insistiu em classificar os ataques da tese do planejamento inteligente à evolução de Darwin como "um debate entre ciência e ciência".
Não explicou por que razão além de "preconceito" do establishment científico o argumento do design tem sistematicamente falhado em cumprir o preceito básico da investigação científica: a validação pelos pares, em forma de publicação em periódicos especializados.
Até hoje, nenhum artigo científico criacionista ou de design inteligente foi aceito para publicação em periódicos de alto impacto e que possuem o sistema de validação pelos pares (conhecido em inglês como "peer review"), como o norte-americano "Science" (
http://www.sciencemag.org) e o britânico "Nature" (
http://www.nature.com).
O único caso em que isso aconteceu foi na revista "Proceedings of the Biological Society of Washington", que acolheu um trabalho sobre design inteligente em agosto passado.
O editor do periódico na época em que o artigo foi aceito pertencia a uma sociedade defensora de idéias criacionistas. E a Sociedade Biológica de Washington, que publica a revista, admitiu que o artigo não era apropriado e foi ao prelo sem conhecimento do seu conselho editorial.
Em sua conferência, Almeida Filho se dedicou a atacar as "improbidades científicas" do livro de segundo grau "Fundamentos da Biologia Moderna", de José Mariano Amabis e Gilberto Rodrigues Martho.
Sua principal reclamação é que os autores aceitam sem questionamentos as evidências em favor da teoria darwinista -cujas fraquezas, diz, são freqüentemente discutidas na literatura científica especializada.
Goela abaixoUm exemplo de suposta "fraqueza" da teoria da evolução que os livros didáticos empurrariam goela abaixo dos estudantes é a chamada explosão cambriana, ocorrida há cerca de 570 milhões de anos, na qual todos os filos existentes de animais já aparecem formados.
O mistério para os paleontólogos é como isso aconteceu num intervalo tão curto do tempo geológico, já que os primeiros seres multicelulares do planeta haviam surgido menos de 100 milhões de anos antes -e antes disso, ao que tudo indica, apenas seres unicelulares dominaram o planeta por mais de 2 bilhões de anos.
"Esse aí é o calcanhar-de-aquiles da teoria da evolução, quando ela deixa de lidar nos livros didáticos a respeito da explosão cambriana e o que isso representa para a suficiência científica da teoria", disse Almeida Filho, sustentando que os avanços da paleontogia estão fazendo os darwinistas duvidarem do darwinismo em suas bases fundamentais.
Não é isso o que dizem os paleontólogos. A explosão cambriana é sem dúvida um dos tópicos mais quentes da biologia evolutiva e tem causado arranca-rabos monumentais entre os cientistas.
Mas nenhum deles jamais pôs a evolução em questão. "O que nós discutimos de maneira ética os criacionistas manipulam", diz o paleobiólogo Reinaldo José Bertini, da Unesp de Rio Claro.
A explosão cambriana, explica Bertini, foi um aumento em dez vezes no número de espécies animais conhecidas num intervalo pequeno de tempo geológico. Mas há hipóteses para explicá-la.
Na época, a Terra acabava de sair de uma glaciação que cobriu a maior parte do planeta. O fim da era do gelo liberou boa parte dos ambientes para os animais, que se diferenciaram para explorar os novos nichos ecológicos. O debate está longe de ser resolvido, mas, na academia, não envolve a invalidação do evolucionismo.
Outro exemplo de "improbidade" apontado no livro de Amabis e Martho é a ilustração da famosa série de embriões de vertebrados desenhada em 1874 pelo alemão Ernst Haeckel para ilustrar o princípio da recapitulação.
Essa idéia, segundo a qual durante o desenvolvimento (ontogenia) os animais mostram traços de um ancestral comum ("recapitulam a filogenia", no dizer dos biólogos), foi usada por Darwin como confirmação de sua teoria -e até hoje não foi provada falsa.
Acontece que Haeckel, ao desenhar vários embriões de vertebrados extremamente parecidos como exemplo de recapitulação, cometeu uma série de distorções. Uma delas, admitida por ele mesmo na época, foi fazer um embrião de cachorro passar por embrião humano.
A fraude de Haeckel foi redescoberta por um grupo de pesquisadores britânicos em 1997. Em um estudo na revista "Anatomy and Embryology", eles mostraram que, na verdade, os embriões eram bem menos semelhantes entre si do que faziam supor os desenhos do alemão.
Almeida Filho citou uma reportagem publicada em 1997 na revista "Science" comentando a fraude para desqualificar Haeckel e Darwin -e, no balaio, todo o princípio da recapitulação.
"Olha o aspecto ideológico", comentou. "As distorções levaram Darwin e Haeckel à crença de que os vertebrados recapitulam a filogenia durante a ontogenia. Mas os cientistas já estão carecas de saber que isso não é verdade."
Evidência suprimidaO argumento seria forte, se sobrevivesse ao escrutínio. Na mesma revista "Science", alguns meses depois, os autores do estudo original escrevem: "Nosso trabalho tem sido usado num debate televisivo nacional para atacar a teoria da evolução e sugerir que a evolução não pode explicar a embriologia. Nós discordamos fortemente. Os dados embriológicos são totalmente consistentes com a evolução darwinista".
Em uma carta à mesma publicação, o autor principal, Michael Richardson, lamenta: "Estou preocupado em descobrir que posso ter ajudado a criar um mito criacionista".
Os adeptos do design não citam nem artigo, nem carta, fazendo exatamente o que criticam nos biólogos evolucionistas: suprimir evidências.
Mais tarde, questionado por alguém na platéia sobre as evidências da evolução trazidas pela biologia molecular, o coordenador do Núcleo Brasileiro de Design Inteligente afirmou que, na verdade, essa disciplina traz "evidências desfavoráveis àquilo que é preconizado como sendo fato da evolução". Mas admitiu: "Não tenho, no momento, uma literatura que eu poderia indicar".
(Folha de SP, 30/1)
http://www.jornaldaciencia.org.br/Detalhe.jsp?id=25140