Aos religiosos:
Do ponto de vista de alguem que não crê, todas as religiões se mostram, em maior ou menor
grau, ridículas. Porém, dentre aqueles que acreditam, existem sempre os que apresentam um visão mais
intelectualizada da sua crença, e procuram justificá-la ou desculpá-la usando argumentos lógicos (falaciosos ou
não) muitas vezes sofisticados e retórica floreada. Muitas vezes esses crentes (e vejam que não estou usando
esse nome de forma pejorativa) tomam como base toda uma literatura apologética e discussões teológicas
herméticas para analisar aspectos sutis da sua religião. Até aí tudo bem.
O problema é o que chamo de "Pedigree das idéias". Simples: de onde se originou esse elemento fundamental de
uma crença. É possível ver a marca de uma, digamos assim, "cultura de origem" sobre esse elemento?
No caso da filosofia as idéias surgem de insights individuais e constantes debates entre filósofos. Um
aspecto importante da filosofia é a importância do questionamento. As idéias devem passar pelo teste da consistência
e do refinamento do pensamento. Dessa forma, questionar, por exemplo, sobre que influência uma sociedade escravocrata
pode ter tido sobre o pensamento de Platão é algo bem-vindo. Ou pensar sobre como a sífilis pode ter influenciado as idéias
de Nietzsche. É possível assim filtrar a "cultura de origem" de uma idéia de sua essência atemporal, por assim dizer.
Já no caso da ciência, as idéias surgem da experimentação, devendo também passar no teste da consistência. Em princípio,
todo elemento de uma teoria científica está aberto a questionamento. Só que acontece que certos elementos fundamentais
já tiveram toda uma longa história de aprovação em testes experimentais (por exemplo, ninguém questiona que a aceleração
da gravidade cai com o inverso do quadrado da distância ao centro da Terra). Assim, a força da ciência reside nesse questionamento.
O ambiente cultural dos cientistas certamente influencia sua forma de ver o mundo, mas o resultado de suas pesquisas (no caso
das ciências da exatas e da natureza, pelo menos) é - deve ser - independente dessa "cultura de origem".
Nesse aspecto a religião é diferente: os elementos fundamentais da crença não estão abertos a questionamento. Devem ser
aceitos como verdade e ponto final. Muitas vezes a teologia se mostra como o estudo de sutilezas relacionadas a interpretações dos livros
sagrados. Para alguem que analisa os pontos de uma religião "de fora", fica difícil não pensar na influência da "cultura de origem" sobre
a formulação desses pontos. Por isso, como alguem que tem o costume de questionar idéias, pergunto como alguem pode seguir defendendo
certas posições sem refletir sobre as pessoas que a originaram. Naturalmente, para o crente essas idéias vieram de uma fonte (deuses) que
transcende o ambiente cultural. Ótimo, exceto que mesmo em uma análise superficial é possível detectar a influência de uma "cultura de
origem" sobre esses princípios.
Resumindo. Aos que creem: não causa desconforto ver aspectos mesquinhos e cruéis de uma cultura refletidos nos princípios básicos de sua
crença? Deuses vingativos, ciumentos, desejosos de sacrifícios de animais, santos que devem ser aplacados, punições eternas, restrições
alimentares ilógicas?
Tópico: O pedigree das idéias (Lida 598 vezes)