O Estado e as escolhas difíceisDinheiro não cai do céu. Entre os inúmeros ditados populares, esse talvez seja o primeiro a ser ouvido por muita gente, ao pedir ao pai ou à mãe a compra de um brinquedo ou um chocolate extra. A economia mundial, setores privado e público incluídos, tentou nos últimos anos despistar esse fato criando modelos econômicos e financeiros baseados demasiadamente no crédito. Ou, mais precisamente, no débito. O setor financeiro cresceu e gerou riqueza espalhando crédito mundo afora, deixando grande parte do planeta endividada. O sistema ruiu e, para que não fosse à falência completamente, foi resgatado pelo Estado, que muitos no setor privado já consideravam um ator menor na economia. Nos Estados Unidos, na Europa ou no Brasil, a cena foi a mesma: o setor público salvando bancos ou impedindo o colapso da atividade econômica por meio de aportes bilionários ou incentivos fiscais. Como dinheiro não cai mesmo do céu, essa conta tem de ser paga por alguém em algum momento. É onde se encontram hoje, particularmente, a Europa e os Estados Unidos, que têm de fazer escolhas difíceis para salvar o futuro sem destruir o presente.
O Senado da França
aprovou, dias atrás, o aumento da idade mínima para aposentadoria de 60 para 62 anos. A decisão, confirmada nesta terça-feira, foi tomada apesar dos inúmeros, gigantescos e muitas vezes violentos protestos de trabalhadores e estudantes por várias semanas em muitos pontos do país. O governo francês parece ter concluído que, especialmente com as pessoas vivendo muito mais do que antigamente, a população precisa pagar mais pelos benefícios da aposentadoria, trabalhando por mais tempo. Aqui na Grã-Bretanha, as eleições deste ano foram marcadas pelo tema dos cortes para reduzir o déficit público. O então governo, trabalhista, prometia cortar, mas não muito e aos poucos. A oposição conservadora prometia cortar imediatamente e bastante. Os conservadores saíram das urnas com o primeiro lugar, montaram uma coalizão com os liberais-democratas e na semana passada
anunciaram cortes de 80 bilhões de libras (mais de R$ 200 bilhões) para os próximos quatro anos. A perspectiva é de que cerca de 500 mil empregos sejam fechados no serviço público britânico (parte deles inclusive na BBC).
Nos Estados Unidos, o debate também gira em torno de cortar ou não cortar, mas o governo do outro lado do Atlântico parece seguir o caminho oposto ao de Londres. A equipe de Barack Obama parece convencida da necessidade de ainda incentivar o crescimento econômico, por causa do alto desemprego no país (quase 10%). O presidente do Fed
indicou semanas atrás que novas medidas serão necessárias para estimular a economia americana, mas muitos se preocupam com o atual nível do déficit. Esse debate colocou frente a frente, dias atrás, o
Nobel de economia Paul Krugman, favorável a mais estímulos, e o historiador Niall Ferguson, defensor de cortes para conter a dívida. Outros países europeus e o Japão também sofrem com altos níveis de déficit público
e têm tomado medidas para combater o problema. A palavra do momento, em grande parte do mundo desenvolvido, é "austeridade".
E o Brasil? Com crescimento econômico acima de 7% em 2010 e as menores taxas de desemprego desde 2002, o país não precisaria se preocupar, certo? Não exatamente. Nos últimos anos, o Estado brasileiro aumentou de tamanho, tanto na administração direta como nas suas estatais. Além disso, foi o Estado o grande responsável pela rápida recuperação econômica no meio da crise global, especialmente com medidas do que incentivaram o consumo interno. O Estado demonstrou o seu valor na crise, mas precisa manter as contas em ordem se quiser evitar algum choque mais para frente, até porque a atividade econômica provavelmente terá menor ritmo a partir de 2011. O governo diz que ajuste fiscal neste momento não é necessário, apesar dos apelos de alguns especialistas, que veem em possíveis cortes uma mãozinha para a redução das taxas de juros.
É uma discussão longa, para a qual ainda não há resposta, e é possível argumentar em favor do pensamento do governo ou daqueles mais preocupados com o futuro das contas públicas. O mais importante, a esta altura do campoenato, seria saber o que pensam os dois candidatos a presidente. Mas não se sabe ainda o que fará Dilma Rousseff em relação aos gastos públicos depois que tomar posse. Ou o que fará no Planalto José Serra quanto à valorização do real, que promove importações e dificulta as vendas para o exterior. Muito pouco tem sido ouvido dos candidatos sobre o futuro da economia brasileira, que hoje vai muito bem, mas amanhã pode enfrentar problemas. O chamado Primeiro Mundo está tendo que cortar na própria carne para pagar a dívida pública, nascida do setor privado, o que agora não importa, porque quem paga a conta é o país. O Brasil já fez muito disso no passado e deveria evitar voltar a fazer no futuro. Espera-se que os candidatos a presidente tenham planos para essa questão, mesmo que não gostem de compartilhá-los com os eleitores.
http://www.bbc.co.uk/blogs/portuguese/2010/10/estado_e_as_escolhas_dificeis.shtml