Autor Tópico: Santos, mártires e heróis  (Lida 558 vezes)

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Santos, mártires e heróis
« Online: 25 de Novembro de 2010, 14:32:55 »
Santos, mártires e heróis

O comportamento é disseminado e atinge indistintamente fiéis e guerrilheiros, filósofos e soldados. Estou falando da disposição de morrer por uma ideia. Praticamente todas as religiões têm seus mártires, que foram assassinados por defender sua fé. Não é apenas a confiança numa outra --e melhor-- vida que move os candidatos a santo. O fenômeno, afinal, ocorre também em esferas mais seculares, como exércitos, e mesmo ateias, como movimentos revolucionários de esquerda. Até a ciência cultiva seus heróis. De minha parte, acho que não há nada mais estúpido do que morrer por uma ideia, seja ela religiosa ou laica, mas avancemos com um pouco mais de calma.

Ainda bem que ninguém mais lê vidas de santos. Se querem entupir o Monteiro Lobato de notas por ter empregado linguagem racista, que cautelas não teríamos de adotar antes de permitir que crianças lessem, por exemplo, a história de santo Eustáquio, que, segundo reza a lenda, preferiu ser cozinhado vivo junto com sua mulher e filhos a oferecer sacrifício a deuses pagãos. Será que um alerta do tipo "não tente fazer isso em casa" bastaria?

O ponto central é que as vidas de santo, as histórias de martírio e gestos de heroísmo são repetidos aos quatro cantos justamente porque alguém vê neles um valor a ser imitado. Aqui, a nota acabaria com o propósito mesmo do relato hagiográfico. OK. Admitamos que deixar-se cozinhar num caldeirão é um caso extremo, que ninguém em sã consciência defenderia nos dias de hoje. Será?

Mesmo reconhecendo que existem níveis de dor que dobram qualquer um, olhamos com desconfiança para o ex-guerrilheiro que, sob tortura, teria dado com a língua nos dentes. A própria Constituição do pacífico Brasil prevê a pena de morte em caso de guerra, ou seja, para aqueles que, orientando-se no mais justificável bom senso, se recusarem a lutar (a maior parte das guerras ocorre por motivos bem imbecis, é bom lembrar).

De todo o panteão de santos e heróis, fico com Galileu Galilei, que, muito sensatamente, não teria hesitado antes de abjurar a teoria heliocêntrica para poder continuar vivendo.

Cuidado. Não estou aqui afirmando que é uma tolice cultivar alguns princípios e defender ideais. Só o que digo é que existe um limite máximo até onde levar a luta: a vida. Não sou apenas eu que penso assim. Trago em meu socorro Charles Darwin, cuja teoria mundialmente famosa preconiza que devemos sobreviver a quase qualquer custo e fazer muito sexo. Se, em determinadas circunstâncias, ainda faz sentido que nos sacrifiquemos para salvar um ou mais parentes (idealmente, dois irmãos ou oito primos), fazê-lo em favor de uma abstração é um beco sem saída evolutivo. Prova-o o fato de ninguém até hoje viu nenhum animal além do homem defendendo uma ideia até a morte.

E, se estamos diante de um comportamento exclusivamente humano, bem disseminado (quase um universal) e que aparentemente não faz muito sentido biológico, trata-se de algo que vale a pena investigar melhor.

A primeira pergunta a se fazer é: para que diabos a vocação para mártir serve? Temos aqui duas possibilidades, ou bem ela é uma adaptação humana obtida por seleção natural ou é apenas um efeito colateral resultante da forma como nossos cérebros estão montados. Seria relativamente fácil demonstrar que o altruísmo radical, embora faça mal ao indivíduo que o comete, serve aos propósitos do grupo em que ele vive. O incentivo ao heroísmo, afinal, tende a produzir soldados mais valentes e sociedades mais coesas, como se vê nos movimentos nacionalistas. A seleção aqui não ocorreria no nível do indivíduo (ou dos genes, como quer Richard Dawkins), mas do grupo.

E aqui nós entramos num dos terrenos mais pantanosos do neodarwinismo. Os biólogos mais puristas, se não rejeitam, consideram a seleção de grupo extremamente complicada. O problema básico é que ela não é lá muito estável. Para começar, o sujeito que se sacrifica tem maiores chances de não deixar descendentes, extinguindo junto consigo os genes responsáveis pela propensão a colaborar. Para secundar, sempre valeria a pena para indivíduos egoístas pegar uma carona na coesão grupal sem dar sua justa contribuição. Eles teriam maior sucesso reprodutivo, espalhando genes egoístas. Seria assim muito difícil fixar num 'pool' genético qualquer as características que favorecem o grupo.

Parece mais promissor imaginar a vocação para mártir como um subproduto de outras funções cerebrais. Uma analogia válida é o uso recreativo de drogas como maconha e álcool. Ninguém --espero-- vai sugerir que a capacidade de sentir barato e ficar bêbado representam uma adaptação humana. O efeito que drogas têm sobre nós é mais bem descrito como um acidente: são substâncias que exploram, de forma por vezes parasítica, os centros de prazer e recompensa do cérebro, cujas finalidades primordiais são o aprendizado e a fixação de hábitos que satisfaçam necessidades vitais, como engordar e fazer sexo.

Quais seriam as estruturas cognitivas que o martirismo explora? Aqui não podemos fazer muito mais do que especular. Uma possibilidade é que ele funcione de forma parecida com a elaboração do luto. Originalmente, serviria mais para tentar dar um sentido à morte de entes queridos que tombaram em conflitos do que para convencer os sobreviventes a meter-se no mesmo caminho. Seria uma forma meio esquisita de aplacar nossa ânsia por transcendências. O instinto de preservação, que costuma ser forte, já funcionaria como um freio a interpretações excessivamente literais do autossacrifício.

Num momento posterior, religiões, Estados e dirigentes de células revolucionárias descobriram o poder que a vocação para o heroísmo exerce sobre alguns indivíduos e decidiram explorá-la em favor dessas organizações. Vale lembrar que aqui nós já não estamos mais falando de seleção de grupo no sentido clássico, pois, ao contrário de um clã de caçadores perdido na floresta, uma igreja ou um país não dependem mais da fixação de um 'pool' de genes para sobreviver. Essas superestruturas, ou memes, para utilizar o vocabulário neodarwinista, desde que tomem o cuidado de não esgotar rapidamente os recursos humanos à sua disposição, podem perfeitamente explorar indivíduos.

A crer nessa chave hermenêutica, religião, ideologia, nacionalismo e cerca de 3/4 da literatura têm um substrato comum, que se aproveita da inclinação natural de nossas mentes por histórias de heroísmo. Como ocorre com as drogas, o fenômeno é legítimo até o ponto em que nos proporciona prazer e preenche alguns vazios existenciais. Deixa de sê-lo quando passa a nos impor ônus despropositados. Se há um verdadeiro crime contra a natureza, ele não está em formais mais imaginativas de fazer sexo, mas em exigir que alguém dê a própria vida por uma ideia abstrata --e, em geral, carente de comprovação.

http://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/835475-santos-martires-e-herois.shtml

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Offline Pagão

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Re: Santos, mártires e heróis
« Resposta #1 Online: 03 de Janeiro de 2011, 20:38:03 »
Uma bela morte honra toda uma vida e é uma forma de buscar a imortalidade possível... nada de sacrifícios para durarmos (não confundir com viver) mais um pouquinho... nem que seja como escravos...? É mero reflexo da decadência de um povo e de uma civilização denegrir os seus heróis...se houver um Céu ele só pode ser o Céu deles... e mesmo que esse Céu não exista, grande é o povo que vive como se existisse!
Nenhuma argumentação racional exerce efeitos racionais sobre um indivíduo que não deseje adotar uma atitude racional. - K.Popper

Offline DDV

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Re: Santos, mártires e heróis
« Resposta #2 Online: 03 de Janeiro de 2011, 22:20:21 »
Há tantos comportamentos e idéias não-adaptativas (darwinianamente falando) na espécie humana que poderíamos ficar horas citando.

É bem provável que sejam mesmo um subproduto do desenvolvimento cerebral, que permitiu aos indivíduos entenderem e até controlarem os próprios sentimentos, e de bolarem meios alternativos (não "pretendidos" pela evolução) de satisfazerem suas necessidades psíquicas e emocionais.



Não acredite em quem lhe disser que a verdade não existe.

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Offline Pagão

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Re: Santos, mártires e heróis
« Resposta #3 Online: 04 de Janeiro de 2011, 08:22:01 »
O heróismo não é dar a vida por ideias abstractas... mas muito mais pela manutenção e defesa do espaço necessário à reprodução e subsistência...dificultando a sua apropriação pelo invasor, ou então exercendo o papel de invasor para alargar as suas possibilidades próprias.
Um ou dois leões defendem o seu território, fêmas e crias, muitas vezes até à morte, contra três ou quatro (como todos vemos na TV) em vez de simplesmente fugirem para viver outro dia e procurarem novas fêmas e novos territórios... o seu heróismo é bem natural. O homem é mais um animal e o que vemos é que os animais não se batem por calculismo... ou seja não lutam apenas quando "sabem" que vencem. Há imensos exemplos de sacrifício do próprio em defesa do grupo no mundo animal e humano...e isso quer dizer que é um comportamento de acordo com a evolução e não uma aberração ou desvio...
 
Nenhuma argumentação racional exerce efeitos racionais sobre um indivíduo que não deseje adotar uma atitude racional. - K.Popper

Offline lusitano

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Re: Santos, mártires e heróis
« Resposta #4 Online: 12 de Janeiro de 2011, 11:33:27 »
Caro - Unknown

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Ainda bem que ninguém mais lê vidas de santos. Se querem entupir o Monteiro Lobato de notas por ter empregado linguagem racista, que cautelas não teríamos de adotar antes de permitir que crianças lessem, por exemplo, a história de santo Eustáquio, que, segundo reza a lenda, preferiu ser cozinhado vivo junto com sua mulher e filhos a oferecer sacrifício a deuses pagãos. Será que um alerta do tipo "não tente fazer isso em casa" bastaria?

O ponto central é que as vidas de santo, as histórias de martírio e gestos de heroísmo são repetidos aos quatro cantos justamente porque alguém vê neles um valor a ser imitado. Aqui, a nota acabaria com o propósito mesmo do relato hagiográfico. OK. Admitamos que deixar-se cozinhar num caldeirão é um caso extremo, que ninguém em sã consciência defenderia nos dias de hoje. Será?

Será, que não aí canibalismo camuflado, ou é apenas desperdício de carne?

Que espécie de pessoas, são capazes de se dar ao luxo de submeter o semelhante a torturas demenciais?

Será que num momento de emergência, um homem extremista, de determinada teologia, farto de viver entre bárbaros irredutíveis á sua convicção, não prefere ir desta para melhor, praticando uma eutanásia estranhamente controversa, dando o supremo espectáculo de se oferecer como jantar circunstancial a um grupo de alimárias mais ou menos esfomeadas, sem dar o mínimo sinal de medo, dor, ou sofrimento...

Pacece-me que em todas as épocas, sempre existiram "faquires" peritos em auto-sugestão, capazes de induzir em si próprios, anestesia local ou geral absoluta; principalmente, em momentos extraordinários. :arrow: :ideia:
Vamos a ver se é desta vez que eu acerto, na compreensão do sistema.

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Especulando realismo fantástico, em termos de
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paralogismo comparado - artur.

 

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