Caro - Sérgio Sodré
Se Fernando Pessoa, não era ultra-céptico, pelo menos era ateu, ou panteísta, de acordo com o seu heterónimo "Alberto Caeiro".
O poema "O guardador de rebanhos" é bastante sugestivo nessa aspecto.
Eu nunca guardei rebanhos, mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor, conhece o vento e o sol...
E anda pela mão das estações a seguir e a olhar.
Toda a paz da Natureza sem gente, vem sentar-se a meu lado.
Mas eu fico triste como um pôr do Sol, para a nossa imaginação,
quando esfria no fundo da planície e se sente a noite entrada
como uma borboleta pela janela.
Mas a minha tristeza é sossego porque é natural e justa
e é o que deve estar na alma, quando já pensa que existe.
E as mãos colhem flores sem ela dar por isso,
como um ruído de chocalhos, para além da curva da estrada,
os meus pensamentos são contentes.
Só tenho pena de saber que eles são contentes,
porque, se o não soubesse,
em vez de serem contentes e tristes,
seriam alegres e contentes.
Pensar incomoda como andar à chuva,
quando o vento cresce e parece que chove mais.
Não tenho ambições nem desejos:
ser poeta não é uma ambição minha,
é a minha maneira de estar sozinho.
Sei ter o pasmo essencial que tem uma criança,
se ao nascer, reparasse que nascera deveras,
sinto-me nascido a cada momento,
para a eterna novidade do mundo.
Creio no mundo como num malmequer,
porque o vejo, mas não penso nele,
porque pensar é não compreender…
O Mundo não se fez para pensarmos nele,
pensar é estar doente dos olhos,
mas para olharmos para ele e estarmos de acordo.
Eu não tenho filosofia, tenho sentidos:
se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
mas porque a amo, e amo-a por isso.
Porque quem ama, nunca sabe o que ama,
nem sabe por que ama, nem o que é amar,
amar, é a eterna inocência:
e a única inocência, é não pensar…
Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo:
entraria pela minha porta dentro, dizendo-me, estou aqui!
Isto é talvez ridículo aos ouvidos
de quem, por não saber o que é olhar para as cousas,
não compreende quem fala delas,
com o modo de falar, que reparar para elas, ensina.
Mas se Deus é as flores e as árvores,
os montes, o sol e o luar,
então acredito nele, a toda a hora.
E a minha vida é toda uma oração e uma missa:
uma comunhão, com os olhos e pelos ouvidos.
Mas se Deus é as árvores e as flores
e os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar...
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar, flores, árvores e montes,
Se ele me aparece, como sendo árvores e montes,
luar, sol e flores, é que ele quer que eu o conheça,
como árvores e montes, flores, luar e sol.
E por isso eu obedeço-lhe.
Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
como quem abre os olhos e vê...
Chamo-lhe luar e sol, flores, árvores e montes,
amo-o sem pensar nele,
penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda a hora.
Etc...