Bem, minha posição é anti-pitagórica no sentido de que os números NÃO estão na Natureza. Não poderia, portanto, ser uma descoberta em seu sentido frouxo. Sabidamente existem animais que executam tarefas associadas à contagem, mas os pormenores evolutivos de seus pré-programas biológicos são, como acabei de mencionar, explicados de modo distinto (são vicissitudes evolutivas). Já a sistematização criada pelo ser humano, que pode ser avaliada como uma consequência de seu potencial para produzir um "fenótipo estendido" (Dawkins), ou um conhecimento do mundo 3 (Popper), objetivo, distingue-se como um conjunto de elementos adventados para se lidar com uma realidade cuja correlação é percebida como possível (uma pedra, uma ovelha).
É assim que nossos dez dedos (outras bases de contagem também se coadunam com o posto a seguir) e nossa capacidade de abstrair a realidade em símbolos correlatos permitiram uma base de raciocínio para pensar aquela de modo mais estratégico, o que não deixa de ser uma característica evolutiva, um meme que deu muito certo por se mostrar satisfatoriamente fiel ao objeto abstraído. Embora isto não responda a questão da "misteriosa correlação", pelo menos para além dos aspectos mais evidentes de uma capacidade que se perpetua por suas vantagens evolutivas, ao menos faz uma alusão ao motivo de a matemática não ser uma descoberta no sentido de que se refere a algo que pré-existe: a existência de três ovos não significa que o número três está ali, e sim que aventamos uma forma de assim os representar.
A propósito, não coaduno também com a idéia de que as pessoas que não tiveram contato com a matemática formal “saibam matemática sem saber”, como alguém que vai fazer café e “sabe” que tal quantidade é suficiente para duas ou três xícaras. Isto é um comportamento que se adquire por pura experimentação ao longo da vida e, se vamos dizer que isto é matemática, então, no mínimo se deverá fazer uma distinção entre “matemática intuitiva” (o que não concordo) e matemática sistematizada. A matemática é muitas vezes contra-intuitiva, como vários exemplos mostram. Gosto muito dos dois seguintes: se envolvermos todo o equador da Terra com uma corda (tendo sua circunferência, portanto) a adicionarmos apenas um metro a este valor, a qual distância a nova corda ficará do chão? A intuição diz que será muito, muito pouco, afinal o que é um metro a mais em uma corda de aproximadamente 40 mil quilômetros (circunferência aproximada da Terra). Mas o mais espetacular e contra-intuitivo é que o valor obtido, para o quanto a corda estará distanciada do “chão”, será uma constante, algo que independe do tamanho do planeta (!!) (para este mesmo um metro a mais de corda, e para valores múltiplos do metro). Não adianta torcer o nariz... isto é muito contra-intuitivo. E é demonstrado facilmente de forma analítica, mostrando que a matemática transcende nossa “intuição quantitativa”. Ela pode começar aí, mas alça vôo rapidinho, como uma assíntota.
Ah, o outro exemplo é o clássico caso do Problema de Monty Hall. É espantosamente simples, mas demanda uma historinha que vou apenas resumir. Quem quiser um maior detalhamento, vejam em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Problema_de_Monty_Hall. Em um jogo do tipo “o que há atrás das três portas”, temos um prêmio, atrás de uma delas, e uma cabra nas outras duas. Ao se escolher inicialmente uma das portas, mas SEM abri-la, e ao constatar que em uma outra porta há, de fato, uma cabra, quais são as chances de você ganhar o prêmio a) se ficar com sua escolha ou b) se trocar de porta? Novamente, não adianta torcer o nariz: a “intuição” diz que tanto faz, afinal se eu sei onde uma das cabras está, então nas duas portas que restam há uma cabra e o prêmio. Se você já escolheu uma destas portas, a intuição nos diz que temos 50% de chance de levar o prêmio, com ou sem troca. E isto está errado! É fantástico como um problema tão simples gerou tantos desacordos até mesmo por parte de matemáticos! (vejam em “O Andar do bêbado”, do Leonard Mlodinow). A resposta, óbvia apenas depois de sistematizarmos nosso conhecimento (uma tabela verdade, por exemplo), mostra que muitas conclusões que tiramos com a matemática ultrapassa uma mera extensão de nossa intuição. É, antes, um advento com elementos descobertos, naturalmente (novamente, uma pedra, uma ovelha), mas que se mostra uma sistematização que exige muito da criatividade do perscrutador, muito de suas capacidades inventivas (a “intuição” do matemático” é algo distinto da intuição referida anteriormente, e exige um cuidado a parte, que tangencia o “a sorte favorece a mente preparada”, de Pasteur).
Posto assim, fica difícil uma categorização peremptória a respeito. Para tudo é necessário um grau de descoberta, assim como a ciência começa com um mínimo de observação, mas, assim como esta rapidamente se desenvolve sem recursos onipresentes a subsídios empíricos (ver Silveira & Peduzzi, 2006), a matemática rapidamente ganha uma dimensão de estratagemas, de formulações que transcendem a mera descoberta. Ademais, o que prefiro destacar disto tudo é que a matemática está na Natureza tanto quanto o mapa está no território representado.
No mais, tomemos cuidado com problemas wittgensteinianos.
SILVEIRA, F. Lang. da; PEDUZZI, L. O. Q.; Três episódios de descoberta científica: da
caricatura empirista a uma outra história. Caderno Brasileiro de Ensino de Física, v. 23, n.
1: p. 26-52, abr. 2006.