Criação versus evolução: o falso dilema; parte II
Os teólogos modernos com um mínimo grau de refinamento desistiram de acreditar na criação instantânea. Os indícios de que existiu de fato algum tipo de evolução tornaram-se avassaladores
Alex Sandre Lennine Igor Mota é técnico em processamento de dados, bacharel em biblioteconomia e ciência da informação e pós-graduando em divulgação científica (lennine@gmail.com) Artigo enviado pelo autor:
Começamos a primeira parte deste texto por afirmar que as teses criacionistas são, essencialmente, um sistema de crenças de ordem religiosa. Desde que tratadas como tal, portanto, o criacionismo tem suas justificativas e razões de ser.
Mas as considerações de Mauro Celso Destácio, em seu artigo original (
http://www.eca.usp.br/nucleos/njr/proscientiae/), levantam outras questões, nomeadamente, acerca do materialismo como um referencial de pesquisas ou como um postulado metafísico e suas contradições eventuais. Vejamo-los.
O naturalismo inerente da ciência e o ateísmo metodológico
Para tentar responder a esta questão, fiquemos com o citado pelo próprio Mauro, o etólogo inglês Richard Dawkins. Em 'O relojoeiro cego', o eminente professor de Oxford, abordando esta mesma questão, começa por citar Darwin em pessoa, textualmente, "em carta a Sir Charles Lyell, o principal geólogo de sua época": ‘Se eu estivesse convicto de que precisaria desse tipo de adições à teoria da seleção natural, eu a rejeitaria como imprestável [...]. Não daria nada pela teoria da seleção natural se ela exigisse adições milagrosas em qualquer estágio de descendência.’
Darwin referia-se a uma idéia bastante difundida que procura adequar o evolucionismo ao teísmo. Segundo esta perspectiva, dado que a evolução das espécies é um fato e a seleção natural é uma teoria suficientemente suportada pelas evidências e evidentemente capaz de explicar tal processo restaria-nos crer que Deus (caberiam quaisquer outras entidades sobre-humanas e supra-materiais) teria projetado e estaria guiando o processo.
Ainda com Dawkins: ‘Isso não é uma questão secundária. Na concepção de Darwin, todo o objetivo da teoria da evolução pela seleção natural era fornecer uma explicação não milagrosa para a existência de adaptações complexas. [...] Para Darwin, qualquer evolução que precisasse da ajuda de Deus para dar seus passos não era evolução coisa nenhuma. Tal idéia destituía de sentido a tese da evolução. [p.366]’
Oportuno é continuarmos a ler o que o mesmo Dawkins tem a dizer sobre o problema:
‘Já tratamos de todas as pretensas alternativas à teoria da seleção natural, exceto a mais antiga delas: a teoria de que a vida foi criada, ou sua evolução arquitetada, por um designer consciente. É óbvio que seria injustamente fácil demolir alguma versão específica dessa teoria, como a descrita (ou as descritas, pois podem ser duas) no Gênesis. Quase todos os povos elaboraram seu próprio mito sobre a criação, e a história do Gênesis é apenas aquela que foi adotada por uma tribo específica de pastores do Oriente Médio. Seu status não é superior ao da crença de determinada tribo da África Ocidental, para quem o mundo foi criado do excremento de formigas. Todos esses mitos têm em comum a dependência das intenções de algum tipo de ser sobrenatural.
À primeira vista existe uma distinção importante a ser feita entre o que se poderia chamar de "criação instantânea" e "evolução guiada".
Os teólogos modernos com um mínimo grau de refinamento desistiram de acreditar na criação instantânea. Os indícios de que existiu de fato algum tipo de evolução tornaram-se avassaladores.
Mas muitos teólogos que se intitulam evolucionistas [...] enfiam Deus clandestinamente pela porta dos fundos: permitem-lhe algum tipo de supervisão no rumo tomado pela evolução, seja influenciando momentos cruciais na história evolutiva (especialmente, é claro, na história evolutiva humana), seja até mesmo imiscuindo-se de um modo mais abrangente nos eventos cotidianos que contribuem para a mudança evolutiva.
Não podemos refutar crenças como essas, especialmente se for suposto que Deus cuidou para que suas intervenções sempre imitassem estritamente o que se esperaria da evolução pela seleção natural. Tudo o que podemos afirmar sobre essas crenças é, primeiramente, que elas são supérfluas, e, segundo, que elas supõem a existência da principal coisa que desejamos explicar, ou seja, a complexidade organizada.
O que faz da evolução uma teoria tão impecável é o fato de ela explicar como a complexidade organizada pode surgir da simplicidade primitiva.
Se queremos postular uma deidade capaz de arquitetar toda a complexidade organizada do mundo, seja instantaneamente, seja pela evolução guiada, essa deidade já tem de ser imensamente complexa antes de tudo.
O criacionista, fanático invocador da Bíblia ou bispo culto, simplesmente postula um ser já existente dotado de prodigiosa inteligência e complexidade.
Se nos permitimos o luxo de postular a complexidade organizada sem apresentar uma explicação, poderemos muito bem continuar no mesmo caminho e simplesmente postular a existência da vida como a conhecemos! [...] A teoria da evolução pela seleção natural cumulativa é a única teoria conhecida que, em seus fundamentos, é capaz de explicar a existência da complexidade organizada.
Mesmo se os indícios não a favorecessem, ela ainda assim seria a melhor teoria disponível! Na verdade, os indícios a favorecem. Mas essa é uma outra história. [p.459-460]
Fica bastante claro que o que tais pessoas pretendem é fazer Deus "entrar pela porta dos fundos" da ciência. A seleção natural, como todas as teses científicas, necessariamente e por definição, exclui Deus.
Não apenas não necessita de tal idéia adicional como a rejeita peremptoriamente. Já não é igualmente evidente que todas as pessoas o façam por segundas intenções, em vãs tentativas – ainda que amplamente aceites por certos setores da sociedade – de minar por dentro o empreendimento científico: boa parte das pessoas tenta essa reconciliação simplesmente por não ter a adequada formação em teoria e metodologia da ciência. Haverá, ainda assim, alguma síntese possível? Possivelmente, ainda que a desagrado de considerável número dos crentes, os mais interessados nela. Vejamo-la.
Ateofobia, ou o medo de se dar o último passo
O blog norte-americano 'The panda's thumb' é um baluarte na defesa e difusão do evolucionismo. Conta com vários editores, das mais diversas áreas, reunidos a avaliar o caráter das críticas, sejam dogmáticas, sejam relativistas, endereçadas ao darwinismo.
Recentemente Henry Neufeld, especialista em línguas e literatura bíblicas, passou a fazer parte do time. Neufeld é declaradamente um teísta, um teísta personalista, como são todos os que crêem na existência de um Deus pessoal.
Ora, "O polegar do panda", uma vez que objetiva a defesa e a divulgação do evolucionismo embate-se frontalmente com as religiões nas incursões dessas pelas veredas da ciência e, mais incidental e indiretamente, com a própria crença em Deus. Não se pode deixar de perguntar o que Henry Neufeld ia lá a fazer. E ele respondeu:
‘Eu me considero um teísta evolucionista. Tenho consideráveis problemas com esta designação, ainda que considere necessário usá-la vez ou outra. Primeiro, eu aceito a teoria biológica da evolução. Não é uma doutrina, não é uma filosofia, não é minha religião; eu a aceito como uma teoria científica válida e abundantemente bem documentada. Em segundo lugar, eu sou um teísta, no sentido de crer em um Deus pessoal. O segundo [aspecto] não influencia no primeiro. Não há diferença alguma no caráter científico de minhas formulações acerca da evolução daqueles de um ateu. Não há qualquer coisa como "evolucionismo teísta", há apenas a teoria da evolução. Mas porque há quem assuma que o debate acerca da criação e evolução é o mesmo que acerca do teísmo e ateísmo, é necessário adotar tal designação.’
A palavra 'ateísmo' refere-se, vulgarmente, a idéias e pessoas que não acreditam em Deus. No entanto, ela pode assumir um significado ligeiramente diferente: a simples ausência de Deus.
Não faz qualquer diferença para um engenheiro considerar o teísmo na edificação de um prédio, de modo que podemos dizer, sem erro, que a engenharia é atéia – "a engenharia", logicamente, não tem nada a dizer sobre Deus, nem isso implica em que os engenheiros tenham de deixar de crer em uma divindade qualquer.
No mesmíssimo sentido é que se defende o "ateísmo metodológico" da ciência: Deus, simplesmente, é uma questão acientífica – ou, dito ao revés, a ciência é atéia. A ciência não "nega" Deus, simplesmente não lhe diz respeito, e daí não decorre que os cientistas devam ser ateus, agnósticos ou crentes, mas que, simplesmente, ajam de um modo tal que esta crença não interfira.
Contrariamente ao que afirma Mauro Celso Destácio na conclusão de seu artigo, evolucionismo e crenças (pois o termo é este) como a do "design inteligente" são, irremediavelmente, inconciliáveis.
Quereremos dizer que é impossível, pois, a um cientista crer em Deus? Absolutamente, não. É sempre possível recuarmos um pouco e pensarmos que, afinal, foi Deus quem pelo menos "organizou o cenário" (embora boa parte da organização do cenário nós já possamos explicar cientificamente), "criou a matéria-prima necessária" (embora igualmente possamos explicar acurada e consideravelmente bem a origem da "matéria-prima" de que somos todos feitos) ou, simplesmente, permitiu que tudo se desse.
Como dissemos de início, a cada passo da ciência as religiões recuam dois. Recuarem não significa que arrefeçam, pelo contrário, como um animal acuado cada vez que as religiões sentem-se ameaçadas elas revidam com mais obscurantismo e fanatismo.
Ao afirmar que "enfim, parece haver algo a reger a natureza, seja Deus ou suas próprias leis", Mauro parece não dar-se conta que estas são, precisamente, duas posições não somente contrárias como antagônicas, incongruentes mesmo. A existência de Deus continua um problema filosófico em aberto. A formação do universo, a origem da vida e a evolução das espécies, sem Deus, não.
Para navegar...
Apresentação de Henry Neufeld ao 'Panda's thumb' [em inglês]:
http://www.pandasthumb.org/pt-archives/week_2004_11_21.html'A velha cruzada dos criacionistas contra Darwin e o evolucionismo', Orlando Tambosi:
http://www.criticanarede.com/filos_darwin.html'O argumento do desígnio: uma discussão', Miguel Moutinho:
http://www.criticanarede.com/fil_designio.html'Criacionismo', Michael Ruse:
http://www.criticanarede.com/rel_criacionismo2.html'Ok, I changed my mind (three times!)', Massimo Pigliucci [em inglês]:
http://www.newhumanist.org.uk/rationallyspeaking.php?id=P1651A primeira parte do artigo ode ser lida em:
http://www.jornaldaciencia.org.br/Detalhe.jsp?id=29624