Procurei no fórum, e não há um tópico sobre Weber.
Religiosidade é um dos seus tópicos, de forma que deve interessar o pessoal. Quem se interessar,
eis um bom texto sobre Weber, do Ghiraldelli, um dos melhores professores que já tive. Coloco abaixo verbetes do texto,
e um endereço para um vídeo.1. Separação de esferas de valor
Weber não fala em esferas de valor em oposição a esferas de fatos. Weber trata todas as esferas de atuação humana como esferas de valor. O que são essas “esferas”? Simplesmente isto: são os campos das atividades humanas centrais. Basicamente três: a esfera da ciência e da técnica, a esfera da arte e a esfera da moral. Ele segue a tríade kantiana: conhecimento teórico, apreciação estética, normatividade ético-moral.
Weber lembra que todas essas esferas, no Ocidente pré-moderno, estão articuladas sob o imã da religião. A modernidade se configura quando essa imantação perde a força, e então cada uma dessas áreas da atividade humana ganha autonomia e se separa uma da outra. Há uma independência entre tais esferas. O próprio trabalho de Kant, ao falar do homem como ser transcendental, que é uma consciência que deve ser analisada em três campos, já se mostra ela mesma, tal obra, como fruto da modernidade.
Assim, a modernidade é a época em que o conhecimento e as teorias se fazem a partir de diretrizes intrínsecas, e não mais em função de uma cosmovisão específica, como a cosmovisão religiosa. Ao mesmo tempo, a moral passa a ser uma moral laica, antes regrada pela cidade e pela profissão do que por qualquer ordenação de doutrinas que seriam fornecidas pelas divindades. Não à toa, também em Kant, nasce a idéia de que a virtude é algo do âmbito específico da consciência, e que o ser moral não precisa de uma religião para se comportar moralmente. O equivalente ocorre com a arte, que passa a retratar o mundo e, enfim, a ficcionar o mundo. A idéia de uma arte que é arte por representar os feitos do cristianismo perdem a razão de ser. A arte fica em função do belo, e o belo é visto por Kant, por exemplo, como o que é da ordem do desinteresse.
Nos tempos modernos a ciência, a arte e a moral andam pelas suas próprias pernas. Paulatinamente se desgarram do que lhes dava unidade e, nesta unidade, sentido. A religião, em especial o cristianismo, é a fonte de sentido dessa unidade. A modernidade se faz como modernidade na medida em que essa unidade não se verifica mais na vida dos homens. E então, não raro, vários deles, individualmente, sentem o peso da perda de sentido. Do final do século XIX até os dias de hoje, encontramos pessoas que lamentam a “vida sem sentido” provocada pelos “tempos modernos”. O senso comum e a mentalidade popular sabem bem expressar isso que é a separação e autonomia das esferas de valor, como tudo isso é posto, em forma erudita, no pensamento social de Weber – sua caracterização da vida moderna.
2. Desencantamento do mundo
Às vezes encontramos leitores de Weber que exageram no entendimento da expressão “desencantamento do mundo”. Eles tomam a idéia de modernidade segundo a característica da “perda de sentido”, e então falam do “desencantamento do mundo” como uma espécie de sentimento subjetivo-individual de angústia, de desespero. Mas não é assim que Weber utilizou a expressão.
“Desencantamento do mundo” é, em Weber, a expressão que caracteriza uma situação geral que se abate sobre o homem que, se age segundo tal ordenação, pode ser chamado de homem moderno.
Em oposição ao homem não moderno, o moderno é aquele que olha para tudo que há ao seu redor, e também para si mesmo, como sendo regido ou por causa e efeito ou por razões. Tudo é naturalizado. Aquilo que não pode ser explicado ou compreendido na base de relações causais ou relações racionais não é misterioso. Uma vez que não pode ser explicado, isso se deve a duas circunstâncias: ou porque quem quer explicar não foi educado para explicar ou porque a ciência ainda não encontrou razões ou causas para tal. Então, ou por educação individual ou pelo progresso da ciência, o que deve ser explicado será, a qualquer momento, explicado. Deuses, gênios, demônios, forças extra-naturais e assim por diante caem fora do horizonte do homem, e então ele é, de fato, um homem moderno.
É claro que um homem moderno pode ter uma mentalidade arcaica. É isso que o faz tomar remédios e, ao mesmo tempo, fazer simpatias. Mas não é o fato de termos mais gente do primeiro tipo que gente do segundo tipo que definimos se estamos ou não na modernidade. O que vale é que o que impera nas nossas relações, como fator preponderante, é que levamos a sério a idéia de um mundo a nossa volta que não funciona senão por relações que não são nem um pouco mágicas. O encanto ou o enfeitiçamento do mundo cai por terra aos nossos olhos. Quando isso ocorre, a modernidade já bateu à nossa porta.
3. Burocratização das instituições
Em um mundo em que as relações entre os homens e as relações entre os homens e a as coisas são todas passíveis de serem expostas segundo um relato racional, por qual motivo se haveria de ficar sujeito ao acaso? As chances de previsibilidade e controle se tornam muito mais concretas, ou ao menos plausíveis. Para tal, as instituições privadas e públicas, as empresas e, enfim, o Estado, devem ser regrados segundo um plano administrativo.
O plano administrativo tipicamente moderno é potencializado pela racionalização das ações. A racionalidade que Weber toma como a racionalidade tout court é aquela da ação levada a cabo através dos meios mais econômicos. Então, a racionalização da administração é posta em prática na medida em que idiossincrasias e gostos pessoais ficam de lado, cedendo espaço para atividades de rendimento ótimo. Nada melhor que uma burocracia profissional, completamente impessoal, para realizar tal façanha.
A burocratização torna-se o caminho pelo qual as instituições e o Estado se permitem chamar de entidades racionais. O mundo do trabalho é produto e produtor desse tipo de racionalidade que, com a burocratização das relações, se torna um mundo que promete realizar o ideal de Comte: “prever para prover”. O mundo em que esse lema se torna verdadeiro é o mundo moderno.
4. Especialista sem inteligência, hedonista sem coração
As conseqüências psico-sociais da “perda de sentido” e da “burocratização” produzem o típico homem moderno, caracterizado por Weber como “o especialista sem inteligência e o hedonista sem coração”.
Essa figura típica é encontrada por nós em todos os lugares. Não raro, quando nos olhamos no espelho, somos capazes de nos reconhecermos nessa figura. Temos um saber profissional que se revela como um know how especial. Precisamos de ser experts em algo para sobrevivermos no mundo moderno. Isto é, o que nos faz aproveitáveis na vida moderna é nossa capacidade de sermos racionais ao máximo, e nossa profissão espelha isso. Ou somos aqueles que sabem mais de muito pouco, ou simplesmente somos chamados de diletantes e, então, somos colocados à margem do trabalho. Não temos que ter inteligência. Temos de ser experts.
Nossa condição de experts, em um mundo sem sentido, em que tudo é regido pela capacidade de fazermos a relações não saírem de seu traçado racional, nos tornamos capazes de viver o momento, sem grandes preocupações com o futuro. O futuro virá, e ele será bom, acreditamos nisso. Nossa crença está baseada na idéia de que nada pode ocorrer de diferente no mundo se seguirmos os procedimentos racionais e burocratizados. Então, cada minuto pode ser vivido, cada dia pode ser aproveitado, tudo que temos nas mãos é algo para aproveitarmos ao máximo e, então, descartarmos. Vivemos, sim, um tipo de hedonismo. Mas é um hedonismo caricato, pois nosso coração é incapaz de se regozijar com nossa ampliada capacidade de usufruir dos bens que geramos e novos caminhos que abrimos. Não temos o coração educado para a verdadeira doutrina do hedonismo.
Podemos ficar horas na praia, como nenhum outro homem do passado conseguiu ficar, uma vez que tinha de parar sua vida para voltar ao trabalho, ou seja, garantir os meios de sobrevivência; todavia, todo esse tempo que ficamos na praia, nos sentimos entediados se não temos nosso laptop conectado por meio de algum wireless. Nosso hedonismo é um sintoma moderno, não o aprendizado da doutrina de Epicuro.