O Boitatá Quântico ou O Samba do Bobo Doido
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Yuri V. Santos
06 de maio de 1997O físico inglês Adan Sopal estava muito preocupado com o rumo tomado pelas pesquisas acadêmicas em todo o mundo e, conseqüentemente, com o futuro da ciência. Após publicar um artigo de cunho satírico numa respeitada revista científica - The True Science - decidiu aceitar o convite da Universidade de Brasília para ali ministrar aulas durante dois semestres letivos. O referido artigo era uma paródia aos inúmeros trabalhos publicados pelo meio acadêmico-científico, que, com extrema pretensão, buscam demonstrar algum sentido. Tal texto intitulava-se: Transcendendo o Paradigma: em Direção a uma Hermenêutica Não-Probabilística da Onda-Quântica. Usando uma linguagem carregada de metáforas grotescas, conceitos nebulosos e analogias improváveis - assim como grande parte dos acadêmicos costuma fazer - conseguiu engambelar todo mundo. Ninguém percebeu que aquilo não passava duma piada. Afinal, aquele cientista excêntrico sempre se comportou como se tivesse um rei na barriga. Os poucos que mantiveram um pé atrás, em relação ao texto, não tiveram disposição ou mesmo gabarito para contestar o venerado PhD. Por fim - quando ele próprio se desmascarou através doutro artigo na revista The Science Fiction - retirou-se, fugindo da tonelada de críticas e anátemas, cá para os trópicos.
Sopal já havia passado uma temporada no Brasil, a convite da UNICAMP, e, portanto, já tinha uma idéia do que lhe esperava. No fundo - guardadas as devidas proporções, principalmente no que se referia às condições materiais - ele sabia que o nível de nossas pesquisas equiparava-se ao do primeiro mundo. Só não se lembrava do toque de exotismo encontrado nas saladas científicas de alguns picaretas tupiniquins; certamente pra inglês - no caso, ele - ver. Contudo, graças à atenção enviesada dada pelos sábios do hemisfério norte a esses sábios autóctones, tanto labor resultaria inócuo. Para Sopal, isto não deixava de ser um alívio. Pelo menos por enquanto.
Na primeira semana de sua estada em Brasília, fez uma visita ao coordenador de pesquisa e pós-graduação da UnB. Agora que se tornara, segundo suas próprias palavras, um "estudioso cultural amador", precisava inteirar-se da produção daquela instituição. Pareceu-lhe banal encontrar teses em andamento que tentavam provar, por exemplo: que Capitu realmente traíra Bentinho; que Einstein e Wittgenstein eram "burros emocionais"; que a filiação de Heidegger ao Partido Nacional-Socialista alemão modificara essencialmente sua filosofia; que Moby Dick, de Herman Melville, era uma releitura de Don Quijote, de Cervantes; que Gilles Deleuze e Felix Guattari jamais disseram algo de significativo; que o historiador latino Suetônio, autor de Os Doze Césares, tinha aversão a homossexuais; que o governo brasileiro era a máxima expressão da teoria do Caos; e assim por diante. Nas áreas de exatas e biológicas deparou-se com a mesma linguagem hermética que tanto assusta os leigos. Um fato comum e, até certo ponto, legítimo. Mas também encontrou a mesma ausência de relevância em praticamente todos aqueles projetos. Fato este, a seu ver, ainda mais corriqueiro. Não obstante, duas pesquisas bastante insólitas chamaram sua atenção: uma do professor Fêndix, um geneticista reconhecido internacionalmente; outra do professor Leves, um físico muito talentoso, mas imaginativo demais. Resolveu, pois, estudar ambos os projetos, antes de contatar os respectivos responsáveis.
Enquanto caminhava pelo Instituto Central de Ciências, carregando um calhamaço de textos sob o braço, Sopal ia refletindo a respeito do futuro da academia. Talvez ele fosse um tanto radical e não reparasse em certos aspectos positivos dessas instituições. Talvez o Edifício da Ciência, com seu fulcro e suas proposições, já estivesse não apenas terminado - como há muito se especula - mas, acima de tudo, necessitando de remendos, de um novo ar condicionado e de novos caminhos que o ligassem ao dia-a-dia humano. Talvez já não existissem realmente muitos passos a dar adiante, mais partículas elementares a descobrir, novas leis a revelar ou até mesmo novos paradigmas para se agarrar. A resposta estaria provavelmente neste caminhar para os lados, neste percorrer todas as direções, às vezes em ziguezague, às vezes para trás (com uma marreta na mão), tal como apregoavam alguns franceses malucos. O fato de a maioria das pesquisas atuais se alicerçarem sobre teorias e sistemas, há muito elaborados, confirmados e até combatidos, apenas corroborava tal pensamento. Um grande salto adiante parecia improvável. Agora seria o momento de testar o que ainda parecesse sólido, compreendê-lo e pô-lo em prática. Dar a mão à comunidade, à cidade, ao homem da rua. Não apenas através de cursos profissionalizantes - que, de modo geral, apenas contribuem com o mercado - mas através de boa vontade. E era essa boa vontade que parecia faltar no meio de tanta picaretagem. Sim, Adan Sopal sabia ser um sonhador.
E foi com tais considerações em mente que o físico achou-se em meio a uma intensa aglomeração de estudantes, uma espécie de comício. Alguém, com uma cadela nos braços, discursava:
"...pois, afinal, vocês querem eleger como seu reitor um peão de obra, um figura que nem sequer tem o segundo grau, ou um cientista maluco, cuja concepção de ser humano é semelhante à idéia que tem do funcionamento de um computador? Hem?"
"Joga a bosta da Gení neles!", bradaram alguns partidários do orador, enquanto os demais estudantes, indolentes, limitavam-se a observar tudo aquilo como se fosse um espetáculo circense.
"Vou repetir", prosseguiu o orador. "Nós estudantes devemos protestar contra o peso ridículo que nossos votos têm nessa eleição e, também, contra o nível dos candidatos. Não podemos deixar os professores e os funcionários decidirem nossa vida." E erguendo a cadelinha acima da cabeça, gritou: "Votem na Gení!!"
"Joga a bosta da Gení neles!", repetiram os asseclas da candidata.
Ouviu-se algumas risadas, a maioria dos passantes retomou seu caminho. O orador continuava sua pregação:
"A situação é a seguinte..."
Toda aquela cena fez Sopal sentir-se indisposto e irritado. Odiava tais manifestações. Sentiu que, se a universidade não se aproximava tanto das pessoas ordinárias, estas mesmas pessoas, em compensação, já a haviam invadido. Uma tristeza. Pelo menos a maior parte dos estudantes não aderira àquela demonstração de anarquia política. Muito embora tal afastamento decorresse mais duma inércia e dum individualismo característicos da juventude do mundo inteiro, do que de consciência social. Não!, decidiu, a academia não deveria continuar andando pros lados ou em círculos, mas sim seguir em frente. Era preciso descobrir novos talentos e incentivá-los, prosseguir no desenvolvimento do Edifício da Ciência. As possibilidades eram infinitas. A Ciência não devia nada àquela gente vulgar! A aristocracia do espírito deveria imperar na academia. Quem sabe ele até convencesse aqueles dois cientistas brasileiros a participar da sua cruzada contra a vulgarização acadêmica. Antes, porém, era necessário avaliá-los. Eles podiam muito bem ser representantes da degeneração acadêmica.
Quando chegou no apartamento funcional que lhe fora cedido pela UnB, Sopal teve nova surpresa. Um rapaz com uma roupa de cores berrantes e repleta de guizos o esperava. Espantado, o físico descobriu que aquele fora o último bobo da corte do Palácio de Buckingham. Este explicou-lhe que, assim que se viu desempregado, colocou um anúncio nos classificados do London Times, oferecendo seus serviços. Foi, então, contratado pelo irmão de Sopal.
"Seu irmão me disse que eu seria útil para o senhor", prosseguiu o bobo num inglês britânico. "Ah!, e eu também adoro feijoada..."
Era só o que me faltava, pensou Sopal. Mais um bobo... E, no entanto, ao conversar com aquele jovem, surpreendeu-se com a fina ironia explicitada por ele em tudo o que dizia:
"Deixei a família real porque me haviam roubado a função. Eu era o bobo deles, é verdade, mas eles se tornaram os bobos da nação. Eu não queria fazer metalinguagem..."
Persuadido de que a presença do rapaz lhe seria vantajosa, Sopal o aceitou como seu assistente. Só não pôde demovê-lo da convicção de que deveria seguir trajado de bufão. Segundo o bobo, que se chamava Yorick, se assim não o fizesse, acabaria sofrendo represálias a nível pessoal. Precisava enfatizar que era apenas um personagem cômico, um encarregado de explicitar o ridículo alheio.
"O.K.", disse Sopal, resignado.
* * *
Na manhã do dia seguinte, no seu laboratório da UnB, o professor Fêndix trabalhava em suas experiências genéticas. Não via a hora de encerrar as atividades daquele dia e retornar para a chácara onde morava. Lá, além de cultivar as mais variadas espécies vegetais, colhidas em suas inúmeras viagens, possuía seu próprio laboratório, no qual dava origem a novas espécies. Sua mais recente criatura era um ser híbrido de duas espécies vegetais (Selenicereus grandiflorus - a rainha-da-noite - e Impatiens sultanii - a maria-sem-vergonha) e de uma ave da família dos vulturídeos (um abutre do gênero Vultur). Com tão singular coquetel mendeliano, Fêndix esperava obter uma planta arbustiva e carnívora que, abrindo as flores à noite, pudesse devorar os ratos que infestavam sua chácara. Ela se chamaria Selenicereus sultanii ou maria-da-noite. Apenas naquele dia poderia confirmar tal previsão. As flores da jovem planta estavam a ponto de desabrochar.
"Posso interrompê-lo por um instante?", indagou Sopal, à entrada laboratório.
"Claro, claro...", disse Fêndix, gesticulando. "Entre." Cumprimentaram-se com um aperto de mão. Fêndix inquietou-se. Já conhecia a reputação daquele homem.
"May I?", disse o bobo, aparecendo logo em seguida. O geneticista não conseguiu identificar o que era aquilo ali na porta. Ficou boquiaberto sem saber o que responder.
"Não se preocupe", disse Sopal. "Ele está comigo."
Fêndix abriu ainda mais a boca. Olhou espantado para o físico, que sorriu. Seguiu-se um momento de constrangimento. Yorick, inocente qual criança, entrou saltitando.
"É seu filho?", perguntou Fêndix.
"Não", replicou em inglês o bobo, enquanto observava o conteúdo dum béquer. "Sou o novo responsável pelo laboratório..."
"Ah", fez Fêndix. Mas este pensava: só pode ser filho dele. E decidiu não lhe fazer caso. Excentricidades britânicas, deduziu. Apenas isto.
Sopal tomou assento:
"Estou a par da sua pesquisa", afirmou, cruzando as pernas.
Fêndix ficou repentinamente pálido. Retirou um lenço do bolso do jaleco e enxugou a testa.
"Ah, é?", disse.
"Sim", continuou o inglês. "Achei muito interessante o seu trabalho de clonagem de hortifrutícolas. Principalmente no que tange à melhoria genética de algumas espécies, tornando-as resistentes a certas pragas."
O geneticista respirou aliviado. Por um momento pensou que havia sido espionado. O bobo, a um canto, tentava disfarçar o constrangimento por não compreender a língua portuguesa. Vestido com um jaleco sujo, fazia caretas.
Os dois cientistas conversaram por cerca de duas horas. Para surpresa de Fêndix, o físico pareceu-lhe um homem digno e simpático. Concordou quando este discorreu sobre a necessidade de evitar o colapso das pesquisas acadêmico-científicas. Sentiu-se profundamente lisonjeado quando Sopal o apontou como um exemplo a ser seguido. E seus olhos brilharam ao ouvir do físico que os gênios ainda estão por aí, esperando o momento de dar as caras. O que ele acharia da nova espécie híbrida que estava criando? Não pôde perguntar. Mas convidou Sopal a conhecer sua chácara naquela mesma noite. Tinha muitas coisas a lhe mostrar. O inglês, satisfeito, aceitou a invitação.
Quando saíram do laboratório, Sopal e Yorick se dirigiram ao restaurante universitário, o bandejão. O bobo estava cabisbaixo, parecia decepcionado consigo mesmo.
"O que é que você tem?", indagou o físico.
Yorick explicou-lhe que não poderia fazer suas intervenções e tiradas satíricas sem conhecer a língua daquelas pessoas. Sentia-se um bobo.
"Mas você não é um bobo, meu amigo?"
"Um bufão nunca é um verdadeiro bobo", respondeu. "Ele apenas mostra o quanto as pessoas podem comportar-se como otárias. Ele é um tipo de espelho."
Sopal sorriu. Afeiçoava-se por aquele rapaz:
"Ora, não se preocupe, Yorick. Enquanto vai aprendendo esse idioma, você pode continuar intervindo em inglês. Algumas pessoas entendem."
"Não estou tão certo disso. Aquele tal de Fêndix ficou muito alterado quando o arremedei comportando-me como um cientista louco. Pensei que fosse voar no meu pescoço. Se ele tivesse entendido o que eu dizia não teria ficado daquele jeito."
"Bem", disse Sopal, franzindo a testa. "Vamos comer. Talvez sirvam uma feijoada hoje..."
O bobo abriu um sorriso instantaneamente:
"Vamos!"
Uma vez no restaurante, outro contratempo: os partidários da candidatura de Gení à reitoria, continuavam fazendo alarde ali dentro.
"My God!", murmurou Sopal.
Já o bobo, ao ver todo aquele movimento, sentiu-se em casa. Saiu por entre os estudantes fazendo acrobacias, dando saltos mortais e retirando ovos das orelhas femininas que por ali passavam. Se não podia falar com a boca falaria com o resto do corpo. Começou, então, através de mímicas, a imitar um comensal manco carregando uma bandeja imaginária. Os estudantes, funcionários e professores riram sem mais poder por pelo menos quinze minutos.
"Quem é esse cara?", perguntou um.
"Acho que é aquele maluco da Música...", responderam.
Por fim, faminto, Yorick uniu-se a Sopal numa mesa.
"Cadê a feijoada?", indagou, investigando a própria bandeja.
"Acho que só vão servi-la amanhã", respondeu o físico.
"Aaaaaaaah!!!!", saiu gritando o bobo.
Todos o olharam curiosos. O que faria agora? Yorick, pois, saltou a roleta, tomou a cadela Gení das mãos do estudante que discursava e voltou para o refeitório.
"Eu quero carne!", bradou em inglês, erguendo a cadela à frente da boca. Poucos o entenderam. Percebendo isto, começou a gritar com forte sotaque: "Feijoada! Feijoada!"
Muitos riram, outros ficaram enojados. Entre estes Sopal, que, por seu turno, foi saindo de mansinho do restaurante. Já não parecia uma boa idéia ter contratado aquele bufão.
Yorick, a essa altura dos acontecimentos, já colocara a cadelinha pra comer da sua bandeja. Atraído pelos gritos e risadas, alguns seguranças do restaurante foram averiguar o que se passava. Quando solicitaram ao bobo que se comportasse, este levantou-se com estrépito e, enquanto apontava para a bandeja, tornou a gritar a plenos pulmões:
"Dog food! Dog food!"; e todos riram e aplaudiram.
Chicão - o enorme, bigodudo e musculoso chefe da cozinha - apareceu para ver o que estava acontecendo. Quando lhe contaram que alguém estava dizendo que sua comida era comida de cachorro, mordeu o lábio inferior e perguntou com gravidade:
"Quem é o sicrano?"
Horácio, um dos cozinheiros, apontou para o bobo, que, no seu canto, comia da bandeja junto com a cadelinha.
"Vem cá!", rosnou Chicão, pegando Yorick pela nuca.
"What are you doing, fellow?!", soltou o bobo, agitando as pernas no ar.
"Tu vai vê o que eu du com você!"
"Eita", exclamou Horácio. "Fica calmo aí, Chicão, qui tá todo mundo olhando..."
Uma estudante de Letras-Inglês aproximou-se tentando evitar o pior. Servindo como intérprete e defensora, transmitiu a Chicão os pedidos de desculpa do bobo. Este ainda a fez acrescentar aos autos seu desejo de comer feijoada. O cozinheiro deu um sorriso de poucos amigos:
"Então o gringo quer feijoada... Manda ele voltar aqui hoje às oito da noite"; e piscou um olho pro colega Horácio.
* * *
Naquela tarde, Sopal aproveitou a ausência de Yorick para conhecer Leves, o professor de física. Sem o bobo poderia ter um diálogo mais substancial. Dirigiu-se ao departamento de física. Antes mesmo de entrar na sala do professor, ouviu um solo de guitarra. Bateu várias vezes na porta, sem ser atendido. Resolveu entrar e se deparou com Leves que, de olhos fechados, tocava um blues do Muddy Waters. Três gatos andavam pela sala.
"Hum, hum", pigarreou o inglês.
Leves arregalou os olhos:
"Caramba! Me desculpe, eu não tinha te visto. Só um momento...", e, para embaraço do visitante, executou o restante da música. Três minutos que pareceram uma hora. "Pronto. O senhor deseja...?"
"Eu sou Adan Sopal. Gostaria de tomar alguns minutos do seu tempo."
"Claro! Vamos, sente-se, é um prazer conhecê-lo...", e sentou-se com um gato no colo. Estava pasmo: um inglês que não marca hora? Incrível!
"Bem...", e Sopal principiou sua ladainha de sempre, desta vez com maior empolgação, afinal era uma conversa de físico pra físico. Contudo, durante todo o tempo, Leves limitou-se a sorrir e a dizer um sim ou um claro, vez ou outra. Decepcionado, percebeu que estava diante não apenas de um gênio, mas também de um desses ingleses arrogantes, conservadores e com mania de apocalipse. Alguém com um rei doente na barriga, por assim dizer. Sim, era evidente que a academia vive momentos de crise e até mesmo de impasse, pensou. Mas isto era uma contingência, haveria de passar. Não adiantava virar um dom-quixote da ciência. Ainda mais um físico talentoso como Sopal.
"Eu queria que você me explicasse sua pesquisa", acrescentou o inglês, cortando os pensamentos do professor. "Seu projeto não me pareceu muito claro..."
"Você gosta de gatos?", perguntou Leves, tangenciando a conversa.
O visitante coçou a cabeça:
"Bem... Não... Não muito..."
"Deixa eu lhe apresentar alguns. Esse é o Múon, este aqui é o Glúon e aquele pretinho é o Bóson."
"Olha", interrompeu Sopal, "colocar nomes de partículas elementares em gatos não faz de alguém um grande físico. Se você não quiser me falar do seu trabalho, eu entenderei..."
Leves sorriu:
"O.K., O.K., eu só queria deixá-lo mais à vontade, apresentando minha família... É... Você quer saber...?"
"Sua pesquisa", disse o inglês, visivelmente impaciente.
"Claro, minha pesquisa. Bom, eu acabo de desenvolver um aparelho revolucionário..."
Sopal, incrédulo, arqueou as sobrancelhas: "Hum."
"E não posso esconder o quanto devo ao senhor tê-lo construído..."
"A mim? Que aparelho é esse?", indagou, curioso.
"Eu criei uma máquina que torna possível a um corpo extenso dar saltos quânticos!"
"Um teleportador!!", fez o inglês, levantando-se. "Como o da Guerra nas Estrelas!?"
"Não", corrigiu Leves. "Como aquele da Jornada nas Estrelas."
Sopal ficou muito irritado:
"Isso é uma brincadeira de mau gosto! Eu jamais escrevi sobre tal assunto!"
Agora foi Leves que se surpreendeu:
"Claro que escreveu. Está bem aqui...", disse, estendendo um exemplar da revista The True Sciense.
"Mas isto é uma piada, uma paródia que fiz aos artigos vazios que essas porcarias de revistas costumam publicar."
"Piada ou não, o senhor estava corretíssimo..." "Isto é um absurdo...", disse Sopal.
"Eu posso provar. Esta noite eu lhe farei uma demonstração com meu Boitatá Quântico..."
O inglês pensou por alguns segundos. Outro maluco? Boitatá Quântico?!
"Já tenho compromisso, mas..."
E combinaram que iriam juntos à casa de Fêndix. Este, ao ser indagado se um novo convidado o incomodaria, respondeu que não, muito pelo contrário, seria ótimo. Para Sopal, aquele tal de Leves seria apenas um substituto para o bobo, que não tornara a encontrar. Tudo o que ele, Sopal, escrevera no artigo era inconsistente, não poderia servir de respaldo teórico para nenhum projeto de pesquisa. Qualquer físico sabe que uma onda quântica é uma função de probabilidade e, portanto, não pode ser controlada. Os tais "corpos taquiônicos", citados por Leves, não existem, pois nenhum corpo extenso pode viajar mais depressa que a luz. Essa história de um aparelho que emite um feixe de ondas quânticas, criando um padrão holotaquiográfico de um objeto qualquer, é pura conversa pra rainha dormir. Aquele físico brasileiro era definitivamente maluco. Daria muitas risadas aquela noite. Imagine: um feixe de ondas quânticas (que Leves chama de Boitatá Quântico) transportando um "corpo taquiônico" através dum atalho no além do Espaço-Tempo - os buracos de minhoca ou, segundo ele, buracos de Boitatá - para uma região distante, dentro dum tempo-imaginário. Loucura! Se tudo isto não fosse tão complicado para os leigos, mandaria essa idéia para um desses programas de TV em que os apresentadores adoram piadas infames e temas escatológicos.
* * *
O bobo passou grande parte daquela tarde procurando Sopal. Como não o encontrou, abordava qualquer um que lhe cruzasse o caminho, pedindo que lhe ensinasse português. Sentia-se muito desorientado para fazer gracinhas e chistes. Felizmente, encontrou um estudante de direito muito atencioso que lhe ensinou algumas palavras chaves: Please era cuzão; Good evening era foda-se; Thank You era filho-da-puta; I'm sorry era vou te comer; e etc. Como era sonoramente agradável o português! Gostou sobremaneira da palavra cuzão. Parecia francês. "Cuzão", repetia. E ficou praticando a nova língua durante muito tempo. Quando se tocou do adiantado da hora - eram 7:42 h. - dirigiu-se imediatamente para o bandejão, que já estava fechado. Ficou dez minutos parado diante da porta de acesso à cozinha. Precisava esperar as oito horas, ser pontual. Era bobo, mas também era inglês.
"Entra aí, rapaiz", disse Horácio, abrindo a porta. "Vamo logo que a gente tem que ir embora."
"Foda-se", disse Yorick.
Horácio arregalou os olhos. Crispou as mãos. Mas... fazer o quê? Sua sina era servir, não era? Melhor era engolir mais esse sapo. E levou o bobo até a cozinha, onde estava Chicão.
O chefe da cozinha, felizmente, estava bastante loquaz e quase não deixava o bobo falar. Mudara completamente desde a hora do almoço, era a amabilidade em pessoa. Perguntava muitas coisas, tais como: de onde era o bobo, quantos anos tinha, onde morava aqui no Brasil, se gostava de Brasília, e assim por diante. Cantarolava sem parar um sambinha que, segundo ele, seria ideal para o bobo aprender: Canta, canta, minha gente/ Deixa a tristeza pra lá/ Canta forte, canta alto/ Que a vida vai melhorar... Yorick, obviamente, não compreendia nada. Apenas deixou-se levar até a mesa, onde recebeu prato, talheres, guardanapo, etc. Finalmente comeria sua feijoada. Antes, porém, Chicão lhe disse:
"Vai te custar oitenta reais, entendeu?"
"Excuse me?"
"Oitenta dólares - Oi-ten-ta-dó-la-res. Entendeu?"
Desconfiado, Yorick tirou a carteira do bolso e retirou cerca de dez reais.
"Nãnanina", disse Chicão, grosso. "Oitenta!"
O bobo, vexado, entregou a carteira pro cozinheiro e viu-o retirar uns cem dólares dali. Horácio assistia a tudo impassível. Quando Yorick recebeu novamente a carteira, tudo voltou ao estado anterior. Chicão tornou-se um enorme sorriso bigodudo e ambulante. O bobo não via a hora de comer e sair fora.
"Humm...", gemia.
Minutos depois, Horácio apareceu com uma grande panela na mão. Chicão vinha logo atrás. O cheiro era delicioso.
"Espero que esse cabra termine logo", resmungou Chicão.
Quando Horácio terminou de encher o prato, Yorick agradeceu:
"Filho-da-puta."
Num átimo, Chicão agarrou-o pelos cabelos:
"O qui é que o cabra safado disse? Hem?", gritou, levantando-o no ar.
O bobo ficou muito assustado, não entendia aquela reação irada. Quando viu uma faca na outra mão do cozinheiro, desesperou-se. Começou a suplicar:
"Cuzão, cuzão, vou te comer, cuzão..."
"Aié? Toma sua peste!", e Chicão passou-lhe a peixeira pela garganta. Horácio ficou estarrecido:
"Endoidou, homi! Qui é que a gente faz com ele agora?!"
"Já ti digo o que a gente faz com esse sangrado", e limpou a peixeira no avental. "Ele não queria feijoada? Vai ter feijoada!"
* * *
Enquanto isso, Sopal, Leves e Fêndix chegavam à chácara deste último. Haviam conversado bastante durante o trajeto. O geneticista era o mais animado. Adorava receber visitas em sua casa. Leves, ainda na UnB, havia colocado uma caixa pesada no porta-malas do carro. Segundo ele, ali dentro estava o Boitatá Quântico. Sopal não conseguia desfazer seu olhar cínico. Ali da chácara avistava-se todo o Plano Piloto, uma visão magnífica.
"Entrem, entrem...", disse Fêndix, abrindo a porta de casa. "Fiquem à vontade. Vocês querem beber algo? Um vinho?"
Sentaram-se cada qual com seu copo na mão. Leves havia trazido a caixa pra dentro da casa.
"Onde está sua planta?", perguntou Sopal.
"Tá lá atrás, na estufa anexa ao laboratório. Mas que tal se a gente ver primeiro essa geringonça do Leves?"
Leves retirou o aparelho da caixa e começou a montá-lo sobre a mesinha de centro. Retirou do bolso do casaco um saquinho plástico:
"Aqui dentro tem uma cerâmica especialmente desenvolvida para o Boitatá. É nela que o padrão holotaquiográfico fica armazenado antes do salto quântico."
"Hmff...", suspirou Sopal.
"O que é que a gente vai teleportar?", perguntou Fêndix.
"O que eu não sei, mas sei pra onde", disse Leves.
"Pra onde?"
"Pro trono da rainha da Inglaterra..."
"Rruerck!", ouviram.
"Que diabo é isso?", perguntou Fêndix.
Sopal sorriu:
"Acho que é a minha barriga. A comida de vocês não me faz muito bem."
"Não esse barulho", continuou Fêndix. "Esse outro lá nos fundos..."
Efetivamente, um som estranho vinha do fundo da casa. O geneticista parecia preocupado:
"Já regresso", disse.
Os dois físicos ficaram em silêncio por alguns instantes. Leves sabia que o inglês não tragava seu invento. Mas dali a pouco ele se surpreenderia, com certeza. Ligou o engenho na tomada. Apontou a entrada do Boitatá para um lado. Agora era só apertar o botão vermelho.
"Aaaaah... Me solta... Socooorro...", gritou Fêndix, do fundo da casa.
Os visitantes, assustados, correram na direção dos gritos. O que seria aquilo? Quando chegaram ao laboratório depararam-se com uma cena terrível. A sala estava inteiramente tomada por uma enorme trepadeira cheia de espinhos. Suas flores pareciam bicos rapinantes e atacavam tudo o que viam pela frente. No chão, próximo a um balcão carregado de equipamentos sofisticados, estava o corpo nu de Fêndix. A planta abrira um buraco em seu abdômen e parecia comer pedaços do seu fígado.
"Meu Deus!", exclamou Leves. "Vamos sair daqui!"
"Nããããoo!!", gritou alguém atrás do balcão. "Me ajudem!"
Armados com um cutelo e um facão, encontrados na cozinha, Sopal e Leves abriram caminho por entre os ramos e gavinhas da feroz trepadeira. Quando atingiram o local de onde partiam os gritos, encontraram, não sem grande surpresa, o próprio professor Fêndix, vestido e tudo. A planta tentava estrangulá-lo. Foi com custo que o tiraram dali.
"Mas, Fêndix, quem era aquele lá no chão?", indagou Sopal, confuso.
"Era meu clone", respondeu o geneticista.
"Como é que é?!", perguntaram os físicos ao mesmo tempo.
"Meu clone...", tornou ele. "Mas não se preocupem, ele não tinha cérebro. Era uma espécie de banco de órgãos particular. Era mais vegetal que essa planta maldita..."
Os outros dois mal acreditavam no que ouviam.
"Acho que algo deu errado e minha maria-da-noite virou uma rainha-sem-vergonha, ou seja, uma Impatiens grandiflorus."
"Meu Deus!", exclamou Leves. "Você é o que costumam chamar de cientista maluco..."
"Rruerck", tornou a barriga de Sopal, que, boquiaberto tentava ver dali da porta o corpo do clone:
"É fantástico!!", disse ele. "Você é incrível, Fêndix!"
"Como assim, Sopal?!", espantou-se Leves. "Não me diga que você acha tudo isso uma vitória da Ciência, do conhecimento? "
"Claro que é! Não está claro pra você?"
Leves colocou as mãos na cabeça: "Não acredito! Vocês dois são a vaidade científica em pessoa! Deviam estar acorrentados no lugar daquele Prometeu clônico desmiolado. Isso lá é conhecimento que se propague? Vou agora mesmo destruir meu Boitatá Quântico! Vocês não merecem vê-lo", e saiu na direção da sala.
Sopal riu. Fêndix mantinha-se calado.
"Rruerck", repetiu a barriga de Sopal. "Que fome!", disse ele.
"Aarrgh", fez a rainha-sem-vergonha, agarrando-o pelos pés.
"Leves!", gritou Fêndix, pegando o facão. "Acode aqui!"
A planta rapidamente dominou o corpo do inglês. Parecia mais forte, talvez por ter se alimentado de carne humana. Sufocado, Sopal nem sequer conseguia gritar. Os outros dois faziam o possível para soltá-lo. Mas a planta parecia imbatível. Conseguiu rapidamente perfurar o abdômen de Sopal. Leves recuou, enojado e amedrontado. Fêndix fez o mesmo:
"É melhor a gente se afastar", disse.
De repente uma cena aterradora. De dentro da barriga de Sopal saiu um homúnculo correndo. Vestia uma capa vermelha e tinha uma coroa dourada na cabeça. Leves e Fêndix, estarrecidos, saíram no encalço do estranho ser, que, por sua vez, já transpusera a porta dos fundos da casa. Quando chegaram na sala, viram o reizinho subir numa cobra luminosa que saia de dentro do aparelho de Leves. Era o Boitatá Quântico.
"God save my Kingdom!", berrou o anão, desaparecendo em seguida.
Os outros ficaram paralisados.
"Aquela... aquela coisa... foi pro trono da rainha da Inglaterra", murmurou Fêndix.
"Negativo", replicou Leves. "O aparelho ainda não tava regulado pra isso. Hoje de manhã, eu o usei pra mandar lixo pro espaço. Aquela coisa deve estar em alguma órbita da Terra agora. Foi pro espaço..."
O geneticista fez uma careta:
"Por que todos os astronautas tem de ser gringos? Nunca vi alguém do hemisfério sul ter esse privilégio..."
Encararam-se. Em menos de dois segundos começaram a gargalhar histericamente. Realmente não dava pra imaginar um astronauta brasileiro. Ou dava? [1]
* * *
No dia seguinte, uma notícia chocante percorreu os corredores da UnB. A cadela Gení fora eleita reitora da universidade. Nem mesmo os estudantes que lançaram sua candidatura ficaram satisfeitos com aquilo. Será que as pessoas não haviam notado que aquilo fora um mero chiste, uma gozação?
"O professor Sopal tem razão", disse o coordenador de pesquisa e pós-graduação. "É o fim do mundo... do mundo acadêmico."
Mas Leves nem reparava nesses acontecimentos. Não conseguia tirar as imagens da noite anterior da cabeça. Nem ao menos se lembrava do artigo que deveria enviar naquele dia àquela publicação científica de Recife, a The Chico Sciense. Quantas coisas horríveis testemunhara... Ele e tampouco Fêndix sabiam que providência tomar. Talvez não tomassem nenhuma.
Quando entrou no bandejão, nem sequer ouvia os comentários quebrados referentes ao resultado das eleições universitárias. Como um sonâmbulo, pegou a bandeja e entrou na fila. Só caiu em si quando, já na mesa, percebeu que lhe haviam servido feijoada. Ficou enojado. Depois do que presenciara, jamais tornaria a comer qualquer tipo de carne. Todas lhe lembravam carne humana. Nauseado, olhava ao redor. Pessoas sentadas, de pé, na fila, servindo comida. Todas feitas de carne, desde o estudante de medicina ao seu lado àquele homem que despejava a feijoada na bandeja das pessoas. Não, nunca mais...
"Chicão, vem cá, rapaiz", chamou Horácio, com a concha cheia de feijoada na mão. "Dá uma olhada nisto aqui."
"Que qui foi?"
"O crânio, rapaiz", disse mostrando a concha.
"O quê?!"
"A caveira!, homi, a caveira!"
"Ah", fez Chicão pegando a concha.
"Deixa-me ver. Ah, pobre Yorick! Conheci-o, Horácio. Era um moço duma graça infinita, duma invulgar fantasia. Onde estão agora os teus gracejos, os teus ditos, as tuas canções, as tuas brincadeiras, que tão estrondosas gargalhadas provocavam à mesa? E agora? Nem um simples dito para troçar do teu próprio esgar? Já não tens queixo? Vai procurar a minha senhora e diz-lhe que, por mais pintura que ponha no rosto, é a este estado que tem de chegar. Fá-la rir com isso. Peço-te, Horácio, dize-me uma coisa." [2]
"O que é, Chicão?"
"Será que esses estudantes pensam que só porque a gente serve eles, a gente é ingnorante?"
"Talvez, rapaiz, talvez..."
Chicão rangeu os dentes:
"Eles que não se metam comigo. Ingnorante, pois sim!..."
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Nota: O autor pretende explicitar aqui sua perplexidade diante do rumo tomado pelo conto. Rei na barriga?! Deve ter sido o café degustado durante a viagem de escrever...
* * *
[1] Este conto foi escrito em 1996. Nada como ser surpreendido pela realidade...
[2] Para inglês ler: "Let me see. Alas, poor Yorick! I knew him, Horatio. A fellow of infinite jest, of most excellent fancy. (...) Your gambols, your songs, your flashes of merriment that were wont to set the table on a roar? Not one now to mock your own grinning? Quite chop-fallen? Now get you to my lady's table and tell her, let her paint an inch thick, to this favour she must come. Make her laugh at that. Prithee, Horatio, tell me one thing."
(Vide Hamlet, V.I )
(Conto extraído de A Tragicomédia Acadêmica - Contos Imediatos do Terceiro Grau.)
http://karaloka.net/content/view/104/54/