DOUBT, é muito útil essa capacidade para o não-religioso. Eu também "encarno" os dois lados, mas porque fui católico durante muito tempo.
Não posso dizer que já tive uma religião propriamente, mas influência certamente. Do catolicismo primeiro, pela criação e, provavelmente a mais forte, mas acho que não foi me dado o dom da religiosidade.
Entretanto, continuo sofrendo essa influência, por exemplo, com relação à verdade - me persegue a idéia de que ela é libertadora, embora viva me colocando em enrascadas, quando uma simples mentira poderia me salvar. É claro que minto e conscientemente, como qualquer pessoa comum, mas sinto que tenho mais dificuldade que isso que a maioria das pessoas que conheço.
O interessante é que, embora seja uma influência do cristianismo, ou dos meus pais, que repetiram isso mais que qualquer outra coisa, é algo que só fui realmente adotar depois de questionar. Aliás, foi do questionamento sobre tudo, que desenvolvi a maioria dos meus valores.
E, apesar da religiosidade nunca ter sido o meu ponto forte, mesmo na infância, é algo que me parece incrivelmente fácil de simular para compreender. E não é como se eu fingisse ter fé por alguns instantes, eu realmente consigo ter fé, mas apenas por alguns instantes.
A hipótese de ser um efeito colateral da consciência do "eu" é atrativa e intuitiva, mas pressupõe que o "eu" desinformado vai necessariamente buscar sentido para o mundo em agentes invisíveis. A tendência de fato foi essa, talvez não porque fosse o único raciocínio a se fazer (esse "eu" poderia ter sido mais cético/racionalista, mais prudente), mas sim porque estava geneticamente predisposto a fazê-lo. É a teoria da detecção de agentes, que também é constatada em animais: os que ouviam um farfalhar de arbusto e não suspeitavam de um predador invisível caíram fora do pool genético. Outros esclarecimentos e hipóteses na boa e velha Wikipedia e também neste artigo recente da News Scientist (ambos em inglês).
Quando falo da hipótese de ser um efeito colateral da consciência do "eu", não me refiro a essa busca por sentido para o mundo, que é, embora impregnada de misticismo, uma busca racional por explicações para as coisas. Eu me refiro aqueles instantes de instrospeção sem compromisso com a razão, podemos talvez chamar de êxtase, em que a ilusão do "eu" meio que se materializa, fazendo com que a realidade pareça ilusão, deixando, normalmente, uma impressão da existência do "eu".
Quando sugeri essa hipótese julgava ser uma experiência comum, mas após o comentário do Feliperj fiquei em dúvida. Talvez não seja tão comum assim aos céticos ou não mais a maioria deles, devido ao ceticismo, deixando de fazer sentido.
Portanto não é preciso especular se a popularidade do pensamento religioso seria culpa das religiões organizadas. Não é, pois é muito anterior a elas. A humanidade como um todo sempre pendeu muito fácil para a crença no sobrenatural, desde os primórdios. O costume de enterrar os mortos com seus pertences, que sugere uma preocupação com o pós-vida, remonta a 300.000 - 50.000 AC. Existem exceções notáveis de grupos que são agnósticos ou indiferentes quanto à existência de deuses, ou não os cultuam porque acham que esses deuses são distantes ou hostis, mas são uma minoria que a gente nem ouve falar. E os romanos durante uma época tratavam a questão com indiferença, tanto que construíram o Panteão, em homenagem a todos os deuses. Fora isso, que grupo humano a gente ouviu falar que não tivesse crenças e superstições?
Desse modo fica difícil imaginar uma humanidade se desenvolvendo sem espiritualidade, já que esta praticamente veio junto com o despertar da consciência. Se por acaso uma visão agnóstica do mundo, mais prudente, tivesse sido favorecida em nossos antepassados, dá pra supor mil coisas, porque a visão de mundo dessa humanidade "só sei que nada sei" teria sido completamente diferente. Mas acho que os conflitos continuariam existindo. Pois se até com religião eles existem... Ah, e em vez de Apocalipse Zumbi para atiçar o senso de disputa da moçada, haveria talvez o Apocalipse Neandertal (ou algum outro representante da irracionalidade).
Não creio que a ausência de espiritualidade teria prejudicado demais a autoestima do homem primitivo antes das caçadas. Os rituais ajudavam, certamente, mas ele daria um jeito sem eles. Muitos animais sociais agem em grupo, coordenam-se para caçar, sem lançar mão de tamanho nível de pensamento abstrato.
O problema é que essa é uma questão especulativa por definição. Toda hipótese tem cunho psicológico, e toda explicação psicológica tem cunho subjetivo, normalmente fazem muito sentido e podem explicar tudo, mas não comprovam nada.