UOL, 17-08-2005
APESAR DA DISCRIMINAÇÃO, AUMENTA NÚMERO DE ATEUS NOS EUAEnquanto um surto evangélico toma lugar nos EUA, a minoria atéia foge
de manchetes e escândalosMelissa Fletcher
San Antonio Express-NewsMelissa e Chanse mordiscam sanduíches e batatas fritas em uma
lanchonete local. Para quem os vê, eles são apenas mais um jovem casal
saboreando um lanche em uma tarde de fim de semana. Ela usa óculos de
armação elegante e a sua densa cabeleira negra está amarrada em um
rabo de cavalo.
O único sinal de uma pequena tendência rebelde é uma tatuagem que pode
ser parcialmente vista por sob a manga da camisa. Ele é um homem
pequeno, de fala mansa, calmo e de barba cerrada. O filho do casal,
Echo, um garoto de olhos castanhos, de cinco anos, está sentado entre
os pais. Como quaisquer pais do mundo, eles dizem ao garoto para que
permaneça sentado e termine de comer os ovos mexidos.
Melissa e Chanse são jovens ateus. Eles não acreditam em Deus. E estão
criando o filho de forma que este questione a existência de Deus em
meio a uma sociedade composta majoritariamente por crentes. São parte
de uma minoria pequena, mas substancial, que caminha em sentido
contrário à maioria religiosa dos Estados Unidos, representando uma
tendência que tem se tornado mais visível ultimamente, à medida que as
questões relativas à fé estão cada vez mais emaranhadas à política e
às decisões da administração pública.
Embora o casal tenha concordado em falar sobre as suas crenças - ou
sobre a ausência destas -, os dois se negaram a permitir que o seu
sobrenome, que é claramente de origem hispânica, fosse revelado. A mãe
de Chanse trabalha em um escritório administrado por cristãos
conservadores. Chanse teme que o fato de falar publicamente a respeito
da sua condição de ateu possa trazer conseqüências negativas para a
mãe. Isso expressa o dilema enfrentado atualmente pelos ateus nos
Estados Unidos.
Ultimamente, a face pública do ateísmo tem sido Michael Newdow, que
moveu uma ação contra o governo por este ter obrigado a sua filha a
repetir a expressão "sob Deus" no juramento de lealdade à bandeira e à
república norte-americanas. A Suprema Corte dos Estados Unidos acabou
rejeitando o seu caso, afirmando que ele não demonstrava uma postura
paterna apropriada com relação à filha. A história foi manchete na
mídia durante meses.
Mas a maioria dos ateus não quer manchetes nem escândalos. Eles
desejam simplesmente viver suas vidas sem brigas ou pressões. "As
pessoas lhe dizem: se você é ateu, deve adorar a Satã'", diz Melissa,
enquanto mergulha as batatas fritas em ketchup. "Elas não entendem que
se você não acredita em Deus, também não acredita no demônio". Eles
lamentam o fato, afirmando que os ateus são a última das minorias do
país que se
constitui em alvo declarado do fanatismo. Os especialistas que estudam
a religião na vida pública concordam.
"Os ateus não são muito bem vistos nos Estados Unidos", diz John
Green, pesquisador do Fórum Pew de Religião e Vida Pública. "Ainda é
aceitável criticar os ateus de uma forma impolida. Os indivíduos podem
alimentar imagens negativas quanto a judeus, católicos, muçulmanos ou
evangélicos, mas sabem que não devem expressar tais idéias. Mas ainda
não há problema algum em falar mal dos ateus".
A maioria esmagadora dos cidadãos norte-americanos professa algum tipo
de fé religiosa, embora uma porção bem menor realmente compareça aos
cultos religiosos regularmente. O cenário público tem ficado cada vez
mais dominado pela retórica religiosa (especialmente a cristã), desde
os "eleitores que votam em valores" da eleição presidencial de 2004,
até os tópicos culturais polêmicos que passam por questões religiosas
- aborto, direitos dos gays, pesquisa com células-tronco, "desenho
inteligente" da vida, iniciativas baseadas na fé e direito a morrer.
Os juízes dão pareceres favoráveis e contrários à exibição pública dos
Dez Mandamentos. Os políticos parecem competir uns com os outros para
demonstrarem quem professa a espiritualidade de forma mais sincera.
Um filme mostrando as últimas horas da vida de Jesus bate recorde de
bilheteria. Um presidente declaradamente religioso proclama que Jesus
foi o filósofo que exerceu maior impacto sobre sua vida.
Mas, ao mesmo tempo, há uma corrente contrária em ação. Um estudo
realizado pelo Centro de Pós-Graduação da City University de Nova York
revelou que o número de pessoas que se descreve como "não religiosa"
mais do que dobrou de 1990 a 2001, passando de 14,3 milhões para 29,4
milhões. O único outro grupo que também cresceu foram os muçulmanos.
"Neste momento, a identidade religiosa que cresce mais rapidamente nos
Estados Unidos é a dos não religiosos", afirma Dan Barker,
vice-presidente da Fundação Liberdade da Religião, um grupo de
Madison, no Estado de Wisconsin, que defende a separação entre igreja
e Estado e trabalha no sentido de educar a população sobre o ateísmo.
Um estudo feito pelo Fórum Pew de Religião e Vida Pública revelou que
16% dos norte-americanos (cerca de 35 milhões de pessoas) se
consideram "não afiliados" - uma categoria que inclui "crentes não
afiliados", "secularistas" e ateus/agnósticos. Segundo Green, o último
termo - ateus/agnósticos - é uma aglutinação porque os dois grupos têm
muita coisa em comum. Mas há uma diferença sutil. Os ateus afirmam
diretamente que não existe Deus. Já os agnósticos dizem simplesmente
que os seres humanos nunca poderão saber se Deus existe ou não.
Juntos, eles representam 3% da população norte-americana. "São seis
milhões de pessoas", explica Green. "A título de comparação, existem
54 milhões de adultos católicos".
Mas, ao se olhar a questão por outro ângulo, o grupo formado por ateus
e agnósticos é maior do que a população judaica, que corresponde a
cerca de 2% dos adultos norte-americanos. Segundo Green, os ateus e
agnósticos, como grupo, tendem a possuir alto nível educacional e a
ser
politicamente liberais (embora, de acordo com Green, existam
republicanos ateus). Eles tendem a se concentrar nas grandes cidades
das costas leste e oeste. Geralmente são jovens, e há mais homens do
que
mulheres nessa categoria.
Mas no que exatamente acreditam os ateus, já que não crêem em Deus?
Resumindo, os ateus acreditam somente na razão, naquelas coisas às
quais se pode chegar por meio do intelecto e do método científico.
Eles
argumentam que simplesmente não há evidência concreta da existência de
Deus. E não admitem atos de fé ou qualquer coisa que implique em um
envolvimento de um ser sobrenatural nas vidas humanas. Eles acreditam
que
é possível levar uma vida feliz e respeitável baseada em uma ética
humana que não foi entregue por Deus em tábuas de pedra, mas que
deriva de um código de regras que emergiu naturalmente no decorrer de
um processo evolucionário no qual os seres humanos aprenderam como
viver juntos com sucesso.
"E para quem quer que realmente acredite que os seres humanos de fato
roubariam ou matariam se simplesmente não existisse Deus, eu diria:
'Por favor, permaneça na sua religião'", afirma com ironia Bobbie
Kirchart, presidente da Aliança Ateísta Internacional. Eles acreditam
que o sentido é derivado da forma como se vive a vida agora, e não de
uma promessa de recompensa eterna no além-mundo. Eles se recusam a
cultuar uma divindade que teria montado o universo de uma forma que
entendem como sendo muito injusta.
"Se existisse um Deus que fosse tão malicioso a ponto de me torturar
eternamente simplesmente porque eu não acredito nele, quando ele se
esconde de mim e não se faz conhecer, bem, em tal caso eu não
desejaria adorar a esse Deus", afirma Virginia Glassner, uma atéia de
Austin, Texas. "Eu arriscaria a minha sorte no inferno".
Tradução: Danilo Fonseca
http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/outros/2005/08/17/ult586u258.jhtm