É questionável que o conceito de hereditariedade indique a influência genética comportamental observada numa população típica. Todavia, não é isso que ficou popularizado recentemente no imaginário popular, principalmente por causa das ideias propagadas por Steven Pinker no livro
Tábula rasa.
Pinker diz que “todas as cinco principais dimensões são hereditárias, e talvez 40% a 50% da variação em uma população típica estejam ligados a diferenças em seus genes” (2). Pinker reconhece a importância da influência ambiental, mas distingue “dois modos muitos diferentes como nossos ambientes poderiam nos afetar”: ambiente compartilhado e ambiente não-compartilhado. O ambiente compartilhado é aquele exerce influência sobre nós e nossos irmãos igualmente. Já o ambiente não-compartilhado é tudo aquilo influencia um irmão, mas não o outro (favoritismo dos pais, experiências únicas, etc.). Sobre os efeitos do ambiente compartilhado, ele faz a citação de outro psicólogo, Erik Turkheimer, ao dizer que “Turkheimer afirmou prudentemente que esses efeitos são menores que os dos genes”. O efeito do ambiente compartilhado contribuiria com 10% e o ambiente não-compartilhado, com 40%, usando a estimativa grosseira da média da hereditariedade dos principais traços psicológicos.
Será mesmo verdade que “o efeito de ser criado na mesma família é menor que o efeito dos genes”? Um primeiro questionamento à visão de hereditariedade que Pinker pôs no imaginário popular diz respeito ao fato de que a hereditariedade não é um conceito que seja aplicável a uma espécie. Segundo o biólogo evolutivo Douglas Futuyma (3):
“Uma vez que a herdabilidade é uma razão, a mesma população pode exibir alta herdabilidade de um caráter se um ambiente for relativamente uniforme (VE é baixa) ou pode exibir uma baixa herdabilidade se o ambiente for mais variável. Um valor de herdabilidade, portanto, somente valerá para uma dada população e para seu ambiente em particular no qual ela foi medida, e não pode ser extrapolado com confiança para outras populações.”
Vejamos também o que diz Erik Turkheimer, o mesmo psicólogo citado por Pinker para corroborar a visão de que “o efeito de ser criado na mesma família é menor que o efeito dos genes”. Segundo o mesmo, entre as famílias mais pobres, 60% da variação do QI se deve ao ambiente compartilhado; a influência dos genes é praticamente zero. Com relação às famílias mais abastadas, o resultado é praticamente o oposto. Observando tudo isso, não é surpresa que Turkheimer tenha dito o seguinte: “Essa descoberta sugere que um modelo de [gene mais ambiente] é simples demais para a interação dinâmica entre genes e o mundo real ao longo do desenvolvimento do indivíduo”. Traduzindo em miúdos, isso demonstra definitivamente que não existe porcentagem fixa para a influência genética da inteligência.
Qual seria a origem do empecilho na genética quantitativa básica para o cálculo da herdabilidade? O problema é que o modelo citado por Turkheimer para descobrir quanto da variabilidade fenotípica é causado por diferenças genéticas tem uma suposição implícita questionável. Trata-se deste pressuposto: a variância do fenótipo é a soma da variância genética e da variância ambiental (Vp = VG + VE). Em experimentos controlados, tanto a variância genética quanto a variância ambiental podem ser praticamente zero. Quando a variância genética é mantida constante, a variância fenotípica estima a variância ambiental; quando a variância ambiental é mantida constante, ela estima a variância genética. Como usualmente não se sabe quais são as variáveis ambientais a serem controladas, considera-se que a variância genética é mais facilmente reduzível a aproximadamente zero do que a variância ambiental.
Essas informações se relacionam com as três formas específicas de estimar a herdabilidade em humanos, que é descrita assim por Pinker (2, Id.):
“O modo mais simples consiste em calcular a correlação entre gêmeos idênticos separados ao nascer e criados separadamente. Eles compartilham todos os genes e nada do ambiente (em relação à variação entre os ambientes na amostra), portanto qualquer correlação entre os dois tem de ser o efeito de seus genes. Alternativamente, podemos comparar gêmeos idênticos criados juntos, que compartilham todos os seus genes e a maior parte do ambiente. (...) Uma outra técnica consiste em comparar irmãos biológicos, que compartilham metade de seus genes e a maior parte do ambiente, com irmãos adotivos, que não compartilham genes (entre os que variam) mas compartilham a maior parte do ambiente”.
Dito isso, qual é o problema em dizer que o fenótipo é a soma dos efeitos genéticos e ambientais? Mostrando um modelo mais sofisticado, Futuyma diz que (3, Id.):
“Lembre-se que a variância de um caráter fenotípico (tal como o grau de QI ou ‘Quociente de Inteligência’) pode ter vários componentes: VG (variância genética), VE (variância ambiental), VG X E (variância devido à interação genótipo x ambiente – i.e., diferentes respostas a um ambiente por diferentes genótipos) e cov (G, E), a variação que se origina de correlações entre o genótipo de um indivíduo e o ambiente. Isto é:
Vp = VG + VE + VG X E + cov (G, E)
Muitos estudos procuram estimar a herdabilidade, h2 = VG/ Vp, de caracteres como o QI medindo as correlações entre parentes (veja Capítulo 14). Para assim fazê-lo, é necessário estimar, ou melhor, eliminar a correlação entre os ambientes experimentados por aqueles parentes [cov (G, E)]. VG X E não pode ser eliminada, nem pode ser estimada exceto pela replicação de cada genótipo em uma variedade de ambientes representativos. Isso pode ser feito com plantas e Drosophila (veja figura 13 no Capítulo 9), mas não com seres humanos. Se a variação que realmente se origina de interações G X E for incluída na estimativa de VG, a herdabilidade será superestimada. Se este for o caso ou não, o fracasso em estimar VG X E pode resultar em sérios julgamentos biológicos errôneos, porque não iremos reconhecer que genótipos que atuam mal em um conjunto de ambientes podem atuar bem em outros. Além disso, se os genótipos diferirem fortemente em suas respostas a diferentes ambientes, as estimativas de VG e VE, e, portanto da herdabilidade podem ser muito alteradas pela mudança do cenário ambiental.
Essa é a razão pela qual alguns geneticistas de populações insistem em que medidas de herdabilidade não são muito informativas e podem até mesmo ser enganosas”.
Quanto à relação do uso do estudo de gêmeos na estimativa da herdabilidade, psicólogos e estatísticos notaram uma série de vieses que tendem a exagerar a detecção de similaridades entre os mesmos. Essas observações foram reunidas pelo jornalista David Shenk (1, Id.). Vamos a eles:
G x A compartilhado. Gêmeos idênticos compartilham não apenas os mesmos genes, mas também o mesmo ambiente, o que gera uma interação Gene x Ambiente idêntica.
Circunstâncias culturais compartilhadas. Os estudos com gêmeos separados dão ênfase às semelhanças dos traços biológicos, mas se esquecem das similaridades compartilhadas dos traços culturais. Mesmo sexo, mesma idade, mesma etnia, e na maior parte dos casos, experiências sociais, econômicas e culturais iguais (ou muito parecidas). “Todos esses fatores favorecem um aumento da semelhança entre gêmeos separados”, explicou o psicólogo Jay Joseph no livro de
The Gene Illusion.
Diferenças ocultas. Os estatísticos chamam esse fenômeno de “problema com múltiplos objetivos”: a armadilha sedutora de selecionarmos dados que favorecem uma determinada tese e, ao mesmo tempo, descartarmos de forma conveniente os demais. Para cada pequena semelhança entre um par de gêmeos univitelinos, há milhares de pequenas (porém não mencionadas) diferenças. “As possibilidades para se tirarem más conclusões estatísticas são infinitas”, afirma o estatístico Persi Diaconis, da Universidade de Stanford.
Correlações e exageros. Pesquisadores tentam se resguardar contra qualquer correlação deliberada ou involuntária. Em seu livro
Identical Twins Reared Apart, de 1981, Susan Farber revisou 121 casos de gêmeos descritos por pesquisadores como “separados no nascimento” ou “criados separadamente”. Somente três desses pares haviam de fato sido separados logo após o nascimento e analisados assim que foram reunidos. No famoso estudo da Universidade de Minnesota com gêmeos, a média de idade dos participantes era de 40 anos e o tempo que passaram separados era de 30 anos. Isso significa que esses gêmeos compartilharam, em média, 10 anos de convivência no mesmo ambiente.
Não há problema com o estudo dos gêmeos humanos. O problema está em relacioná-lo a herdabilidade. Segundo o biólogo Patrick Bateson, isso transmite a “suposição estapafúrdia de que as influências genéticas e ambientais são independentes umas das outras e que não interagem entre si. Essa suposição está claramente equivocada” (1, Id.).
P.S.: O geneticista Massimo Pigluicci já disse (1, Id.):
“Os biólogos se deram conta de que, se você modifica ou os genes ou o meio ambiente, o comportamento resultante pode mudar drasticamente. O truque, então, não está em dividir as causas entre o que é inato e o que é adquirido, e sim avaliar [a maneira] como os genes e o ambiente dialogam para gerar o aspecto e o comportamento de um indivíduo.”
Quem achou complicado e abstrato demais o que o Massimo Pigluicci falou, vejamos um exemplo prático do que ele quis dizer. Já pus isso no tópico "O genial que existe em nós":
Experimento de Cooper-Zubek em 1958 com grupos genéticos de ratos com desempenho testado em labirintos ao longo de gerações mostraram como seus descendentes se saíram ao serem criados em diferentes ambientes. Antes que se testasse o número de erros que cometeriam ao caminhar nos labirintos, ratos descendentes dos grupos genéticos bons e maus – com diferença média de 40% em termos de erros entre os dois grupos – foram submetidos a esses ambientes:
Enriquecido – Casinha com paredes pintadas com cores fortes e vivas. Havia rampas, balanços, escorregos, espelhos e sinos.
Normal – Casinha com parede sem cores vivas. Poucos exercícios e brinquedos para estimular os sentidos.
Limitado – Basicamente um “barraco de rato”.
Quais foram os resultados? A única circunstância em que os ratos tiveram desempenho significativamente discrepante foi no caso em que foram criados em ambientes normais. Ratos ruins de labirinto tiveram um número de erros apenas 10% superior aos bons de labirinto na comparação da criação em ambientes enriquecidos. Por fim, ratos bons e maus de labirintos tiveram desempenho idêntico quando criados em ambientes limitados (eles foram igualmente burros!).
Referências:(1) SHENK, David.
O gênio em todos nós. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2011.
(2) PINKER, Steven.
Tábula rasa. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2004.
(3) FUTUYMA, Douglas J.
Biologia evolutiva. 3. ed. São Paulo: Editora Funpec, 2009.