Autor Tópico: Ceticismo Filosófico - Descrição Simples  (Lida 3854 vezes)

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Offline Skeptikós

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Ceticismo Filosófico - Descrição Simples
« Online: 30 de Janeiro de 2014, 12:51:12 »
Na Antiguidade, o ceticismo filosófico é a designação das doutrinas criadas pelos filósofos gregos Pirro de Élis [séc. III a. C.] ( ceticismo pirrônico ou pirronismo) e Carnéades de Cirene [séc. II a. C.] (ceticismo acadêmico). E desenvolvidas posteriormente por alguns nomes principais, como Enesidemo (séc. I a. C.), Clitomáco (séc. I a. C)  e Sexto Empírico (séc. I a. C.). A doutrina é caracterizada principalmente pela adoção do princípio da antilogia¹ , que, no plano moral, conduzia à epoké², seguida da ataraxia³.
[Cf. Aurélio, V.5.0 / HP, Sexto Empírico, I e II]

Notas:
1 - oposição entre argumentos equipolentes que forme uma contradição aparente de idéias, resumida na fórmula geral: a todo argumento se opõe outro de igual força.
2 - suspensão do juízo.
3 - estado de completa ausência de perturbações ou inquietações da mente alcançado pela suspensão do juízo.
[Cf. Aurélio, V.5.0 / HP, Sexto Empírico, II]


O ceticismo filosófico, tanto o pirrônico¹ quanto o acadêmico², realizam um exame crítico dos sistemas dogmáticos³.

Notas:
1 - O pirrônico é aquele que nada afirma sobre a verdade, mas continua a busca-la e investiga-la. [ceticismo pirrônico]
2 - O acadêmico é aquele que considera a verdade inaccessível ao homem. [ceticismo acadêmico]
3 - O dogmático é aquele que afirma ter descoberto a verdade. [filosofia dogmática]
[Cf. HP, Sexto Empírico, I,I]

O cético é aquele que, insatisfeito com as irregularidades do mundo, saiu a procura de explicações que o levasse a verdades sobre como entender e resolver estas irregularidades. De posse da verdade o cético esperaria alcançar, enfim, paz de espírito.

Porém nenhum sistema filosófico que ele estudou foi capaz de lhe proporcionar qualquer certeza absoluta sobre os objetos de estudo. Ainda por cima, para todo sistema dogmático que afirmava ter descoberto a verdade, havia sempre um outro sistema dogmático oposto ao primeiro e igualmente convincente (antilogia) que também dizia ter encontrado a verdade.

Diante destas contradições e incertezas, e da até então impossibilidade de alcançar uma explicação absolutamente verdadeira, o cético decidiu por suspender seus juízos (epoké), encontrando assim, paz de espírito (ataraxia), que antes ele esperava alcançar de posse da verdade.
[Cf. Ensaios sobre Ceticismo, org. de Plínio Junqueira Smith e Waldomiro Silva Filho]
« Última modificação: 30 de Janeiro de 2014, 12:58:17 por Skeptikós »
"Che non men che saper dubbiar m'aggrada."
"E, não menos que saber, duvidar me agrada."

Dante, Inferno, XI, 93; cit. p/ Montaigne, Os ensaios, Uma seleção, I, XXV, p. 93; org. de M. A. Screech, trad. de Rosa Freire D'aguiar

Offline Rocky Joe

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Re:Ceticismo Filosófico - Descrição Simples
« Resposta #1 Online: 30 de Janeiro de 2014, 14:15:48 »
Acho que a "sacada" do William James foi contestar o ponto 2 da primeira definição; se duvidar de tudo nos leva a não conseguir escolher racionalmente entre determinadas ações, ao invés de suspendermos o juízo podemos escolher aquele que nos é mais úti, uma vez que "suspender o juízo" não é mais racional; tem o mesmo peso do que escolher uma ou outra.

E é uma doutrina difícil, na verdade. Suspender o juízo não é difícil, mas daí conseguir a "paz de espírito" com isso é necessário algo a mais, algo do temperamento.
« Última modificação: 30 de Janeiro de 2014, 14:20:49 por Rocky Joe »

Offline Skeptikós

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Re:Ceticismo Filosófico - Descrição Simples
« Resposta #2 Online: 30 de Janeiro de 2014, 17:34:14 »
A maior critica que os céticos receberam era justamente a de sua filosofia refletir uma atitude de inação. Os céticos resolveram isso de uma maneira que se parece em certo ponto com o pragmatismo posteriormente proposto por James.

A solução era a de após suspender o juízo sobre as questões universais e as teorias que pretendiam dizer como as coisas questionadas eram e si mesmas, deveria se tomar uma atitude prática perante a vida, de acordo com as impressões que se tira da realidade.

De forma simplificada, o cético não afirma o que as coisas são em si mesma, mas como as coisas se apresentam a ele, evitando assim a inação. O cético não diz por exemplo, que o mel é doce em si mesmo, mas que é assim como o mel parece a ele.

Pelo experiência, o cético descobre que parece que algumas ideias se seguidas são capazes de predizer e inferir resultados futuros, a isso ele se apega, pois isso lhe parece útil.

O cético reconhece por tanto a utilidade da medicina, da agricultura, da astronomia, da engenharia e etc. Pois estas ciências, digamos assim, são capazes de realizar previsões com certa eficiência, e prover resultados desejados com igual eficiência.
"Che non men che saper dubbiar m'aggrada."
"E, não menos que saber, duvidar me agrada."

Dante, Inferno, XI, 93; cit. p/ Montaigne, Os ensaios, Uma seleção, I, XXV, p. 93; org. de M. A. Screech, trad. de Rosa Freire D'aguiar

Offline Skeptikós

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Re:Ceticismo Filosófico - Descrição Simples
« Resposta #3 Online: 14 de Junho de 2014, 12:31:53 »
O Ceticismo Por Jean-Paul Dumont

Introdução

O termo ceticismo terminou por designar atualmente, na linguagem comum, uma atitude negativa do pensamento. O cético é visto, freqüentemente, não somente como um espírito hesitante ou tímido, que não se pronuncia sobre nada, mas como aquele que, sobre qualquer coisa que é avançada, ou sobre qualquer coisa que possa dizer, se refugia na crítica. Da mesma forma, acredita-se ainda que o ceticismo é a escola da recusa e da negação categórica. Na realidade, e por sua própria etimologia (skepsis em grego significando “exame”), o ceticismo vetaria qualquer posição decidida, a começar até pela que consistiria em afirmar, muito antes de Pirro e como Metrodoro de Abdera, que somente sabemos uma coisa: que nada sabemos. Os céticos qualificam a si mesmos de zetéticos, isto é, de pesquisadores; de eféticos, que praticam a suspensão do juízo; de aporéticos, filósofos do obstáculo, da perplexidade e dos resultados não encontrados. Além disso, os historiadores latinos e gregos da filosofia cética, como Aulo-Gélio, Sexto Empírico e Diógenes Laércio, mantém uma distinção muito rigorosa entre os acadêmicos, que sustentam a impossibilidade de conhecer, e os céticos, que tomam a vida e a experiência por critérios de suas condutas. Para compreender o ceticismo, é preciso, pois, responder sucessivamente a estas duas questões: em que consistia o ceticismo antigo? Por que o ceticismo foi, na história da filosofia, ignorado e traído em sua intenção e valor?

1.SIGNIFICAÇÃO DO CETICISMO ANTIGO

Dados históricos



O fundador do ceticismo grego foi Pirro (fim do IV séc. a.C.). Ele não deixou nenhum escrito filosófico. Nasceu em Élis, pequena cidade do Peloponeso, onde viveu inicialmente como pintor, depois interessou-se pela filosofia, principalmente sob a influência de Anaxarco de Abdera, em companhia de quem seguiu Alexandre, o Grande, por ocasião da campanha da Ásia. Retornando à Élis, fundou uma escola filosófica que lhe valeu uma enorme reputação junto a seus concidadãos. Ele vivia pobre e simplesmente em companhia de sua irmã, Filista, que exercia a ocupação de parteira. Seu historiógrafo posterior, Antígone de Caristo, expressou em linguagem anedótica a indiferença de alma, a impassibilidade e o domínio de si que ele tinha. Ele teve por discípulo Tímon, autor de várias obras em versos e em prosa: as Sátiras (ou Considerações suspeitas); sendo que o verbo “satirizar” passou a significar a partir de então, “lançar-se a uma crítica acerba”), as Imagens; um diálogo, o Python (jogo de palavras sobre Pirro?); dois tratados em prosa Sobre as sensações e Contra os físicos. Porém, sua obra nos é apenas conhecida de modo muito fragmentário.

A escola cética conhece um eclipse que eqüivale a um desaparecimento. Uma certa forma de ceticismo é, então, praticada pelos neo-acadêmicos: Arcesilau (primeira metade do séc. III e início do séc. II a.C.), chefe da nova academia.(Cf. Academia). Em seguida, a escola renasce graças à atividade de Enesidemo, de quem a obra é bastante conhecida, mas de quem a vida é de tal modo pouco conhecida que hesitamos sobre a época em que viveu (ele foi contemporâneo de Cícero ou viveu um século mais tarde?). Depois dele, a figura mais marcante é a de Agripa, mas da carreira dele nada conhecemos, a não ser os cinco argumentos que Diógenes Laércio lhe atribui. Aparece em seguida Sexto Empírico, o grande historiador do ceticismo, de quem também não sabemos quando e onde viveu (entre o início do séc. II e a segunda metade do séc. III d.C., sem dúvida na Grécia, posto que ele parece conhecer muito bem, além de Atenas, Alexandria e Roma.) Ele pertencia a escola empírica, o termo “empírico” sendo quase sinônimo de médico. Esta escola foi erguida em honra ao médico Menodoto de Nicomédia, discípulo de Antíoco de Laodicéia. A história do ceticismo antigo termina no século III.

1.SIGNIFICAÇÃO DO CETICISMO ANTIGO

Divergências das tradições


O ceticismo grego é bem conhecido, principalmente pelo testemunho dado por Sexto Empírico através de obras que expõem minuciosamente sua intenção e seus argumentos. Mais ou menos na mesma época, Diógenes Laércio dedicou uma parte importante do livro IX de suas Vidas à escola pirrônica. Em seguida, Eusébio de Cesaréia (início do séc. III ) expôs em sua Preparação evangélica (XIV,18) um testemunho bastante longo, relativo à Tímon, e conservado pelo peripatético Arístocles de Mecena que foi quase seu contemporâneo. Percebe-se, pois, que as fontes relativas ao ceticismo antigo são extremamente tardias, já que a doutrina foi fixada somente cinco séculos mais tarde.

As fontes latinas incluem um capítulo das Noites áticas de Aulo-Gélio (início do séc. II d.C.) que utiliza Favorinos, Gaulois de Arles, contemporâneo de Adriano, e que mantém uma distinção entre céticos e acadêmicos.

Resta Cícero. Como freqüentemente, Cícero é nossa fonte mais antiga em matéria de história de filosofia antiga. Assim como a exposição de Catão em De Finibus constitui o mais antigo trabalho do conjunto do estoicismo, os Acadêmicos e, em menor grau, as Tusculanas contém um certo número de informações relativas aos aspectos morais do pirronismo e aos aspectos epistemológicos da filosofia acadêmica. Porém, é preciso limitar a importância do testemunho de Cícero por três razões. Primeiramente, ele é, embora o mais antigo, muito posterior aos céticos. Por outro lado, Cícero não conhece o termo grego skeptikói, de modo que ele usa a palavra latina scepticus (não clássica); com a qual ele não poderia interpretar corretamente o ceticismo. Enfim, ele fala sobretudo de Arcesilau e de Carnéades, de quem conhece as polêmicas com o estóico Crisipo; ora, é muito difícil admitir que o que ele atribui a Arcesilau e a Carnéades possa valer também para os discípulos de Pirro.

Como freqüentemente na história do pensamento antigo, encontramo-nos diante de tradições fixadas posteriormente; o autor, que retranscreve a opinião dos antigos ou de seus predecessores, reconstitui a tese que ele lhes empresta. Conhecer em sua pureza uma tese antiga fragmentada e retranscrita logo depois, é uma empreitada que convém renunciar. Todavia, a respeito da história do ceticismo, a impossibilidade de escolher uma maneira absolutamente decisiva entre uma ou outra tradição, comporta conseqüências filosóficas incalculáveis. Se adotarmos o ponto de vista de Cícero, embora Cícero seja o único autor antigo a sustentá-lo, estamos condenados a fazer dos céticos, filósofos que afirmam com ênfase que nada podemos conhecer. Os Acadêmicos são a fonte dos que, como Sêneca, santo Agostinho, Hume, Kant ou Hegel, oferecem do ceticismo antigo a imagem de um niilismo radical. Em compensação, se adotarmos o ponto de vista grego de Eusébio, de Sexto Empírico ou de Diógenes Laércio, o ceticismo é, ao contrário, uma filosofia cujo critério baseia-se na vida, na experiência e no fenômeno, excluindo apenas as especulações dogmáticas. Como dizem Sexto Empírico (Hypotyposes Pirrônicas, III, 179) e Diógenes Laércio (Vidas, IX, 104), “o fogo, que por essência queima, causa a cada um a representação de ser quente”. Vemos então, nesta perspectiva, que a significação do ceticismo torna-se completamente diferente daquela de um pretenso niilismo que conduziria os homens à indiferença e à inação. Assim sendo, cabem duas questões: Por que o ceticismo grego constituiu-se como um fenomenismo? Por que, depois, um contra-senso foi cometido a respeito de seu verdadeiro significado?

1.SIGNIFICAÇÃO DO CETICISMO ANTIGO

O fenomenismo grego


A importância conferida pelo ceticismo ao conceito de fenômeno (cf. Fenômeno) pode ser medida pelas palavras de Tímon. “O fenômeno prevalece sobre tudo, por toda parte onde ele se encontra” (Sexto Empírico, Contra os lógicos, I, 30: Diógenes Laércio, Vidas, IX, 105). No início este conceito não pertence propriamente à linguagem filosófica, mas antes à física. Por fenômeno, os ouvintes do sofista Protágoras ou os leitores de Platão entendem uma realidade física, ou seja, uma imagem constituída de ar e de luz, que desempenha no processo da visão um papel determinante. Contrariamente aos cientistas dos tempos modernos que se acostumaram, depois de Kleper e Descartes, a comparar o olho ao dispositivo ótico da câmara escura, a Antigüidade grega fez intervir na produção da visão um duplo fluxo luminoso: o objeto emite ou reflete a luz, mas ao mesmo tempo o olho, vendo, emite um raio que parte ao encontro daquele que o objeto está emitindo. Esta concorrência dos dois fluxos requer um meio transparente ou diáfano como o ar quando é de dia ou quando as trevas não o tornam opaco. Do encontro desses dois raios luminosos nasce um corpo, ou objeto material, portanto, um produto mediato, uma espécie de meio termo visível, que leva o nome de fenômeno, designando a natureza luminosa da representação. Ele provoca uma dupla conseqüência. Por um lado, o objeto nunca é tomado ou apreendido conforme sua própria natureza ou tal qual ele é em si mesmo. Esse é o sentido que Sexto Empírico dá à antiga fórmula de Anaxágoras: “Os fenômenos são a visão do que permanece oculto”. O fenômeno é, portanto, como uma máscara ou cortina que se interpõe entre o objeto e olho; o visível é o que dissimula o real tornado invisível. Por outro lado, o fenômeno contém sempre alguma coisa que pertence ao sujeito; é por estar cheio de sangue que o olho percebe um fenômeno roxo e por estar com icterícia que vê tudo amarelo. Assim, tudo é relativo, o que leva, como Aristóteles o diz de Protágoras, a considerar que os fenômenos são o critério e a medida de todas as coisas.

Quando interpretamos filosoficamente uma física da visão desse tipo, somos levados a considerar que a realidade empírica do objeto não poderia constituir um dado absoluto e que o conhecimento efetua-se relativamente ao sujeito que participa de sua constituição. Assim, no tempo de Pirro, a física grega coloca a filosofia diante da seguinte alternativa: já que a realidade empírica não é uma realidade apreendida em si, é preciso afirmar, ou que não há ciência possível, à qual se reduz a sensação, ou que a ciência se fundamenta numa realidade inteligível; e essa é a última solução examinada por Platão. Mas, no primeiro caso, que é o do empirismo estrito, os fenômenos constituem o único critério ao qual podemos legitimamente nos ater. Consequentemente, não resta mais que uma coisa a fazer: tomar a sensação por guia – é o que fazem os cirenaicos – ou tomar a vida por guia – é o que fazem os pirrônicos. Se acreditarmos em Tímon, conforme o que indica Eusébio, o fato de constatar que as coisas não manifestam visivelmente ou fenomenicamente qualquer diferença absoluta entre elas e escapam igualmente à certeza e ao juízo que pretende conhecê-las absolutamente, permite-nos permanecer sem opinião e sem inclinação, de escapar a todo abalo ou dúvida da alma, de limitar-nos a dizer de cada coisa, que ela não é mais isto que aquilo, o que conduz à afasia e à ataraxia (Eusébio, op. cit. XIV, 18). Conseqüentemente, o ceticismo antigo não é uma negação da ciência ou do saber, é, ao contrário, solidário ao desenvolvimento da física da percepção.

1.SIGNIFICAÇÃO DO CETICISMO ANTIGO

Evolução do relativismo

Entretanto, o século III a.C., é marcado por uma profunda subversão a propósito da teoria da percepção, e os principais responsáveis por esta evolução científica são os estóicos. Zenão e principalmente Crisipo se distinguiram de seus predecessores em dois pontos essenciais.Por um lado, recusam-se, de modo absoluto, a admitir, como Platão ou Aristóteles, a existência de realidades inteligíveis, mesmo que concebidas como imanentes ao objeto empírico. Eles se apresentam como empiristas no sentido estrito. É por isso que eles são nominalistas, consideram os conceitos como abstrações e desenvolvem uma lógica original que suprime as classes e que prefigura a lógica proposicional dos Modernos. Assim, eles dão razão, aparentemente, aos pirrônicos contra Platão. Lembramos ainda que o final do século III é marcado pelo triunfo do pensamento empírico.

Mas, por outro lado, os estóicos rejeitam também a antiga física fenomênica. Na realidade, eles consideram a sensação como uma pura e simples afecção concebida conforme o modelo da impressão deixada na alma pelos objetos exteriores. Certamente, a impressão não se confunde com a realidade empírica destes. Portanto, a sensação nada apreende do objeto exterior: ela é passiva. Mas, ao mesmo tempo que a alma recebe a sensação, ela imagina espontaneamente e instantaneamente a causa da sensação; e é por isso que a imaginação é dita compreensiva, porque percebe a causa da qual a sensação é o efeito.

Como se vê, os estóicos contornam a dificuldade levantada pelo estatuto físico do fenômeno, e compreende-se ao mesmo tempo, que neste contexto diferente e renovado, tenham se desenvolvido polêmicas entre os estóicos e os defensores da nova academia.

É por essa época que deve se situar a intervenção de Enesidemo. Sua recusa do dogmatismo estóico consiste, essencialmente, em criticar a teoria da representação compreensiva, isto é, a possibilidade da alma imaginar corretamente e espontaneamente a causa da sensação que ela experimenta, utilizando, segundo um registro filosófico, o antigo modelo físico desvalorizado fornecido pelo conceito de fenômeno. Esta é a razão pela qual ele desenvolve uma série de argumentos destinados a exaltar o relativismo e a mostrar que toda representação, pretensamente compreensiva não pode perceber a essência da coisa. Estes argumentos são conhecidos sob a denominação de Dez Tropos ou Modos de Enesidemo, e é sua exposição que nas antigas Enciclopédias, por exemplo, a de Diderot e d’Alembert, constitui o ponto central da exposição das teses céticas. Nós nos limitaremos, de nossa parte, a apresentar as conclusões a que nos conduziu o estudo destes tropos.

Os tropos ditos de Enesidemo são conhecidos por três exposições sucessivas e um testemunho complementar. A mais antiga versão é a oferecida por Fílon de Alexandria (Da embriaguez, 171-202) e ela compreende oito tropos. O primeiro tropo ressalta a diversidade dos animais e dos órgãos dos sentidos. Ele conclui que as sensações são relativas ao sujeito que as experimenta. O segundo tropo constata que um mesmo homem pode, segundo as circunstâncias, ser diferentemente afetado por um mesmo objeto. O terceiro tropo denuncia a relatividade das circunstâncias, como saúde e doença, sonho e vigília, idade, movimento e repouso, etc., que concorrem para a instabilidade dos fenômenos. O quarto tropo destaca a relatividade dada pelas posições, pelas distâncias e pelos lugares. O quinto tropo considera a quantidade e a composição das substâncias, cujas propriedades mudam conforme a fórmula de sua composição. O sexto tropo é o da relação. Este modo torna-se o mais importante na versão de Sexto Empírico e Diógenes Laércio, pois é o que funda o relativismo universal. O sétimo tropo revela o caracter misturado dos eflúvios provenientes de um objeto exterior. O oitavo tropo constata a diversidade dos costumes, das leis, da moral, das crenças e das convicções.

A essa exposição em oito tropos que se encontra em Fílon corresponde a afirmação de Eusébio, segundo a qual Enesidemo teria formulado nove tropos, assim como a presença, em Sexto Empírico e em Diógenes Laércio, de exposições quase parecidas e que somente diferem pela ordem dos argumentos, que, em compensação, são em número de dez. Nós resolvemos este problema propondo que se considere que a versão retranscrita por Fílon remete a um escritor cético anônimo (e por que não ao tratado de Tímon: Sobre as sensações?), ao qual Enesidemo teria acrescentado um novo modo, aquele que, em Sexto Empírico e em Diógenes Laércio constitui o terceiro e que é relativo à diferença de disposição dos órgãos dos sentidos. Não foi senão mais tarde que Favorinos teria acrescentado um décimo argumento que ocupa o nono lugar na enumeração de Sexto Empírico e constitui uma variação pouco importante sobre o tema da freqüência e da raridade das ocorrências.

Em todo caso, esses argumentos são destinados a contestar o caráter absoluto do conhecimento sensível e a recusar a pretensão dogmática e estóica de escapar ao antigo relativismo. A época de Enesidemo é a do relativismo filosófico. Sem dúvida, é também nesta época que se encontra reafirmada a vocação moral do ceticismo. Se, como pensa P. Couissin, a palavra epoché, isto é, “suspensão do juízo”, foi tomada emprestada de Zenão por Arcesilau e não criada por Pirro, bem que a idéia esteve certamente no próprio Pirro, e é o relativismo filosófico de Enesidemo que melhor contribui para definir a suspensão do juízo como a regra não dogmática da vida cética. O cético denuncia como vãs as concepções noumênicas e, recusando exercer dogmaticamente seu entendimento, limita-se a constatar a relatividade dos fenômenos, opondo entre eles as representações presentes e passadas e tirando de seu conflito argumentos para uma vida tranqüila e silenciosa.

1.SIGNIFICAÇÃO DO CETICISMO ANTIGO

Os novos céticos


O lugar da alma no qual se dá o jogo das oposições entre fenômenos e nôumenos é, segundo Enesidemo, a memória. A uma representação presente, pode-se opor uma representação passada, ou até, a imaginação de uma coisa futura. É a razão pela qual na prática da dúvida cética, a alma não se encontra totalmente engajada. Mais tarde, veremos Descartes, convicto da unidade do espírito humano, experimentar a dúvida como uma angústia que interessa a totalidade das faculdades. Ao contrário, com Enesidemo ou Sexto Empírico, é feita uma separação entre a faculdade sensitiva e a faculdade de imaginar ou de conceber, embora a dúvida possa permanecer a expressão feliz e tranqüila de uma imaginação e de um entendimento suspensos ou, se se preferir, dogmaticamente inativos. Entretanto, para chegar a este silêncio do entendimento colocado na impossibilidade de se pronunciar sobre a natureza em si do objeto empírico, é preciso poder dispor de remédios apropriados e sobretudo cuidadosamente dosados a fim de não ocasionar, pela refutação de uma tese, a adesão do espírito a uma tese contrária. É a razão pela qual os céticos inventam, com Agripa, e praticam, com Sexto Empírico, uma nova lógica. Enquanto que, nas escolas gregas de filosofia, a lógica ou a dialética cumprem uma função defensiva contra os adversários do sistema, aqui a dialética é o instrumento de uma terapêutica destinada a dividir a alma em duas, ou seja, a impedir o entendimento de dogmatizar, concedendo plena confiança aos sentidos e à vida.

Os novos céticos imaginaram cinco argumentos. O primeiro é o da discordância. Ele consiste nem reconhecer a oposição entre as opiniões e as teses; assim; na frase: “A neve é branca, mas a água é escura” é impossível saber qual é essencialmente a cor da água, e convém suspender o juízo quanto a este ponto. O segundo argumento é o da regressão ao infinito. Ele consiste em considerar que a prova a que o dogmático quiser recorrer, remete a uma outra prova, e assim ao infinito; por exemplo: pretender dar uma definição absoluta de qualquer coisa expõe quem formula esta pretensão a uma regressão ao infinito, já que o que define requer que ele mesmo seja definido, e assim por diante. O terceiro argumento é o da relação. Ele consiste em constatar que não somente os objetos são relativos entre si, mas que toda representação é sempre uma representação para um sujeito e relativa a ele. Este argumento retoma o da relação tal como Enesidemo o expressara. Esquerda e direita, pai e filho são relativos. Significante e significado são relativos. Tudo é relativo, o que exclui a universalidade. A própria fórmula: “tudo é relativo” deve ser entendida no sentido de “tudo nos aparece ou nos é representado conforme um fenômeno relativo”. Este argumento manifesta a herança filosófica de Protágoras. Ele estabelece um relativismo universal. Ele denuncia a pretensão do entendimento de se referir a uma certeza absoluta, ao conhecimento do real. O quarto argumento é o da hipótese. Quando os dogmáticos querem escapar do regresso ao infinito, eles colocam no início da cadeia de razões algo indemonstrável do qual convém admitir o caráter hipotético. Isto é o que fazem os geômetras que procedem por axiomas, definições e postulados. Mas o cético recusa-se a aceitar o que eles pedem e esquecer o caráter hipotético dos princípios nos quais a dedução se fundamenta. Assim, a geometria euclidiana ou a geometria estóica são denunciadas como sistemas hipotéticos: à outras hipóteses corresponderiam outras geometrias.

O último argumento é o do dialelo ou círculo vicioso. Quando a gente pretende fundamentar circularmente uma prova sobre uma conseqüência daquilo que a gente procura demonstrar, a gente cai num círculo vicioso. O silogismo aristotélico que pretende deduzir da maior universal “todo homem é animal” a conclusão que “Sócrates é animal” cai no círculo vicioso. Pois a proposição:” todo homem é animal” é na realidade, fundada na indução que inclui todos os homens conhecidos: Sócrates, Platão, Díon. Conseqüentemente, é a conclusão, “Sócrates é animal”, que serve para fundamentar a hipótese “todo homem é animal” de tal modo que a gente cai num círculo vicioso.

Até estes últimos anos, alguns eruditos ficaram exasperados pela multiplicação dos argumentos que Sexto Empírico propôs, enquanto que um espirito tão fino como o de Henri Estienne encontrou neles um grande deleite. Com efeito, é preciso ver bem que este estoque de argumentos dialéticos reuniu uma farmacopéia extremamente diversificada, comportando analgésicos, calmantes e tranqüilizantes da alma, objetos necessários para o cientismo da época, isto é, a pretensão dogmática de tudo conhecer.

Ora, da mesma forma como observamos a propósito do pirronismo, quando, longe de derrubar toda ciência a dúvida é solidária de um estado dado da ciência, constatamos também em Sexto Empírico uma evolução particularmente significativa. Seu último tratado, Contra os astrólogos, não é dirigido contra a astronomia experimental, mas contra o charlatanismo dos Caldeus. Ele admite a utilidade e a legitimidade de uma astronomia experimental que permita regular os trabalhos da agricultura e prever as cheias dos rios. Vemos ele discutir os problemas postos para a medida do tempo por meio de um relógio d’água e refletir sobre o ajuste das simultaneidades. Enfim, o empirismo resulta em pesquisas comparáveis aos futuros métodos indutivos de Stuart Mill e coloca a possibilidade de edificar uma ciência não dogmática, que seria experimental.

Ainda que isso seja dito muito claramente pelos textos céticos, essa afirmação pode, entretanto, surpreender. Ela decorre do fato que em matéria de ceticismo o contra-senso parece ter conseguido mais força que a própria verdade histórica, mais exatamente, é o próprio contra-senso que é histórico a ponto de se impor contra a letra dos textos. Conseqüentemente, é a este aspecto tradicional do ceticismo que convém agora voltarmos nossa atenção.
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Re:Ceticismo Filosófico - Descrição Simples
« Resposta #4 Online: 14 de Junho de 2014, 12:32:33 »
2. AS TRANSFORMAÇÕES DO CETICISMO

História da história do ceticismo


A história do ceticismo moderno é inseparável da interpretação que os Modernos propõem do ceticismo antigo. Todos os que se declaram céticos em um certo sentido, como Montaigne ou Hume, fazem-no referindo-se a uma certa idéia do ceticismo. Mas, por outro lado, os partidários de um certo ceticismo não são os únicos a falar e a se posicionar em relação a idéia que eles fazem do mesmo. Assim, é necessário definir a imagem que os grandes filósofos deram do ceticismo antigo.

Esta é, entretanto, uma tarefa difícil. É preciso, com efeito, lançar-se também a uma elucidação histórica das razões pelas quais sucessivamente o ceticismo antigo foi apresentado. Uma tal história em segundo grau cujo projeto é o de dar conta do estado do conhecimento das fontes em épocas diversas e da motivação das preferências interpretativas, exigiria, para ser completa, que se possa dar conta das metamorfoses do ceticismo antigo exigiria, para ser completa, que pudessem ao mesmo tempo dar conta do estado do conhecimento das fontes em épocas diferentes e das motivações das preferências interpretativas pelas quais os interpretes se tornaram responsáveis. É claro que nas épocas em que os textos pirrônicos são bem conhecidos o ceticismo é de preferência encarado como um empirismo e como um fenomenismo, em compensação, quando a influência de Cícero é predominante, é a interpretação acadêmica de um ceticismo negador que tende a se impor. Mas, por outro lado, as famílias espirituais às quais se ligam os intérpretes, orientam tão profundamente sua ligação seja à corrente do pensamento cristão, seja à corrente do pensamento racionalista, que convém dar conta esquematicamente agora.

2. AS TRANSFORMAÇÕES DO CETICISMO

Cristianismo e ceticismo


O primeiro filósofo a ter retomado os gregos e a ter, de algum modo, vivido de novo a experiência da dúvida foi Santo Agostinho. Uma grande parte de sua obra é dedicada a um esclarecimento das razões que a gente poderia ter para pôr em dúvida os conhecimentos humanos. O diálogo Contra os Acadêmicos apresenta na sua terceira parte toda a matéria das razões para duvidar que constituíram “alimento tão comum remastigado pela Meditação primeira de Descartes. Entretanto, o modelo ao qual Santo Agostinho se refere não é o pirronismo mas a dúvida acadêmica, que oferece o exemplo de uma verdade impossível de descobrir e de uma busca destinada a não terminar. Por outro lado, Santo Agostinho não se sente à vontade na dúvida. Enquanto que a suspensão do juízo aparecia voluptuosa a Enesidemo, ela o mergulha num verdadeiro desespero diante da certeza inencontrável, a desesperatio veri.

O ceticismo ganha com Santo Agostinho três características novas: primeiramente, a dúvida é vivida. Se pensarmos no caráter existencial que toma a dúvida cartesiana e que revestirá a consciência infeliz de Hegel, devemos reconhecer em Santo Agostinho o mérito surpreendente de inaugurar para o ceticismo uma função totalmente nova. A razão disso é a impossibilidade augustiniana de separar as funções da alma, assim como o faziam os discípulos de Enesidemo. A unidade de espírito humano confere a dúvida a dimensão total de um completo desespero. Em segundo lugar, ao ser ao mesmo tempo desesperadora e existencial, a dúvida é uma experiência. Enquanto experiência – o que lhe confere uma intensidade particular –, a dúvida é passageira e dura um momento. Deste modo, a busca cética deixa de ser a busca zetética dos meios da suspensão, para tornar-se o momento da procura de uma verdade que ainda não se possui porque não está no poder da ciência possuí-la. É preciso notar este desvio do sentido grego da investigação cética para o sentido cristão de uma investigação da verdade. Em terceiro lugar, ao mesmo tempo em que a dúvida constitui uma experiência, ela é, não obstante, também um momento no sentido dialético do itinerário filosófico. O desespero é a expressão do momento da negatividade. A dúvida marca na literatura cristã o ponto da passagem obrigatório que constitui a permanência no purgatório, a prova necessária do pecado, o encontro das trevas do erro, cuja função revela as insuficiências de uma ciência atéia ou de uma certeza não fundada num Deus garantidor das verdades eternas. A dúvida é, pois, o momento da negação que transforma o saber humano numa certeza fundada na segurança de uma fé divina. Por isso mesmo, a experiência cética ocupa na vida do crente um lugar privilegiado, já que ela é a expressão da insuficiência do paganismo e a afirmação já presente de uma certeza de uma ordem inteiramente nova.. É porque Descartes e Hegel são, no fundo, tão cristãos quanto Santo Agostinho, que um propõe dar a dúvida unicamente metódica do Discurso do método a dimensão espiritual do desespero existencial das Meditações, e que o outro concebe o desenvolvimento da consciência como passando para um instante necessário do erro com o objetivo de chegar a uma certeza fundamentada. O ceticismo é um instante do purgatório em que a fé desolada e perdida se despoja das ilusões sensíveis, antes de ultrapassar o instante da crítica e da busca, para a apreensão de uma certeza tornada sólida, porque endurecida por ocasião desta própria prova.

Daí decorre que o ceticismo, que a gente poderia acreditar espontaneamente que ele é rejeitado como um pecado e como uma abominação pelos teólogos, seja, na realidade, considerado pelos pensadores cristãos como um precioso auxiliar da fé em oposição a ciência. O exemplo mais claro é o uso pascaliano do pirronismo destinado a revelar a “fraqueza do homem através de seus “discursos de humildade”. “Zombar da filosofia é, em verdade, filosofar”(…) nós não acreditamos que toda a filosofia valha uma hora de aflição (…) o pirronismo é a verdade”. O ceticismo cumpre nos Pensamentos, uma função apologética: humilhar a inteligência, rebaixar o saber humano e manifestar a miséria de um entendimento abandonado por Deus.Porém, é preciso sublinhar o caráter, no fundo, banal e extremamente clássico desta concepção do ceticismo. A voz pascaliana é somente uma dentre outras no meio de um concerto de personagens menos ilustres que, todavia, tiveram em seu tempo uma influência considerável. Nicolau de Cusa tinha na metade do século XV, dado um esclarecimento particular, sob o nome de docta ignorantia, à ignorância reconhecida pelos neoplatônicos como a condição do homem diante da infinita grandeza de um Deus situado para além de todo o conhecimento humano. Erasmo, no Elogio da loucura, retoma a expressão de São Paulo: “Eu não falo segundo Deus mas como se fosse louco”. Agrippa de Nettesheym, em De incertitudine e vanitate omnium scientiarum e artium liber que conheceu um sucesso duradouro, denuncia a nociva presunção da ciência de se igualar a palavra de Deus. Henri Estienne em seu prefácio às Hypotyposes pirrônicas de Sexto Empírico apresenta o pirronismo como o melhor remédio contra a impiedade dos filósofos dogmáticos. Para Gentien Hervet, editor de Adversus mathematicos, a obra de Sexto Empírico exalta as fraquezas da razão humana e reconduz naturalmente o espírito para o caminho da religião católica. No século XVII, La Mothe le Vayer ( Da virtude dos pagãos, 1641, Solilóquios céticos, 1670) e Huet, bispo de Avranches (Tratado da fraqueza do espírito humano, obra póstuma, 1722), retoma ainda o mesmo tema: “Minha razão não podia me fazer conhecer com uma inteira evidência e uma perfeita certeza se há corpos, qual é a origem do mundo e várias outras coisas semelhantes, mas depois que eu aceitei a fé todas estas dúvidas se esvaneceram como espectros ao levantar do sol”.

O principal responsável pelo sucesso do ceticismo foi, bem entendido, Montaigne. Montaigne exerceu uma influência determinante sobre Descartes, Pascal… No entanto, seu caso merece ser considerado inteiramente à parte. Com efeito, seu conhecimento do ceticismo antigo é singularmente rico e exato. Por um lado, ele é um dos raros autores da Renascença e o primeiro historiador da filosofia moderna a estabelecer uma distinção entre o niilismo dos acadêmicos e o pirronismo. Por outro lado, mesmo que a única obra que ele tenha lido seja as Hypotyposes pirrônicas, ele conhece muito bem Sexto e o utiliza abundantemente. Além disso, se Montaigne atribui ao ceticismo, na Apologia de Raymond Sebond, o mesmo papel que Pascal lhe concederá em relação à fé, ele não é, por um lado, como Pascal, um homem de fé, por outro, o modelo do ceticismo ao qual se refere é estritamente pirrônico. Enfim, por esta razão, Montaigne reata com a tradição grega: sua convicção é a de um relativismo universal. Ele está intimamente persuadido que o sujeito singular é incapaz de ultrapassar a singularidade de suas impressões e de sua imaginação para alcançar um conhecimento válido universalmente. Houve um tempo em que comprazia-se em separar, em Montaigne, os momentos estóico, cético e epicurista de seu pensamento. Isto decorria de uma ilusão grave, e também de um desconhecimento da natureza do pirronismo. Montaigne jamais praticou o desespero acadêmico, mas ele foi de início ao fim pirrônico, tendo considerado que a honestidade o forçava a falar da maneira singular com a qual ele via o mundo através dele mesmo, ao invés de adotar sobre o mundo um ponto de vista universal, decidido e dogmático. É por isso que este autor, que cita tão abundantemente os antigos, declara preliminarmente ser ele mesmo “a matéria de seu livro”; entendamos que, para ele, todo dado é relativo à um sujeito, isto é, aos sentidos e à imaginação particular.

2. AS TRANSFORMAÇÕES DO CETICISMO

Racionalismo e ceticismo


O racionalismo não pode senão afastar como estéril e como errôneo o ceticismo acadêmico. A expressão de um saber que se resumiria na proposição “não sei nada”, mesmo que se tratasse do não-saber de Metrodoro, da verdade inapreensível de Demócrito ou do nihil scire de Arcesilau, é tradicionalmente denunciada como se destruindo a si mesma. Já Sócrates, no Eutidemo de Platão (286c), denuncia este tipo de tese que, querendo derrubar as outras, destrói-se ao mesmo tempo. Assim, Hume sublinha os danos daquilo que ele chama (erroneamente!) o pirronismo: a dúvida cética é uma “doença”. (Tratado da natureza humana). O ceticismo é considerado “extravagante” (ibid.). A ação, o trabalho e as ocupações da vida ordinária destroem o pirronismo (Investigação). Igualmente, Kant observa que o ceticismo em geral se destrói a si mesmo, e considera os céticos como nômades, “sem domicílio fixo”. (Crítica da razão pura). É evidente que os sucessos da ciência moderna parecem descartar o ceticismo entendido como o niilismo acadêmico.

Entretanto, um certo pirronismo, ora reconhecido como tal, ora praticado como uma filosofia original reconstruída independentemente de sua fonte grega, continuará a existir em função do próprio racionalismo. No século XVII, a análise cartesiana do sensível faz surgir um empirismo cujos traços encontramos em Malebranche, Gassendi, Bayle ou Locke. Pois, se as matemáticas escapam à toda incerteza, não se pode dizer o mesmo das realidades empíricas e sensíveis. Para os cartesianos, as qualidades sensíveis dos objetos, como o calor, o odor e as cores não estão, assim como o nota Bayle, nos objetos de nossos sentidos: “Estas são modificações da alma; eu sei que os corpos não são tais como me aparecem” (Dicionário). “Bem que desejaríamos excetuar a extensão e o movimento, mas não podemos; porque se os objetos dos sentidos nos parecem coloridos, quentes, frios, com cheiro, ainda que eles não o sejam, por que eles não poderiam parecer extensos e figurados, em repouso e em movimento, ainda que eles não fossem nada disso?”(ibid.)

Em um certo sentido, portanto, o autêntico pirronismo, o que significa dizer, o relativismo fenomênico, encontra nas análises dos cartesianos um terreno propício para sua renovação. O ponto fraco do cartesianismo não consiste, precisamente, na dificuldade encontrada para demonstrar a existência das coisas exteriores? Ora, é evidente que, se Deus garante sua existência, ele não poderia fazer que as qualidades sensíveis não fossem relativas aos sentidos que as apreendem. Quando Descartes analisa o pedaço de cera (Meditação segunda), é difícil não se perguntar qual teria sido sua atitude frente à objeção de Sexto Empírico ao analisar a maçã “lisa, de aroma agradável, de sabor doce e amarela” (Hypotyposes pirrônicas, 1, 94) e se interrogar sobre como seria nossa percepção se fôssemos surdos e cegos, ou seja, se somente dispuséssemos do tato, do paladar e do olfato, ou se possuíssemos um sentido suplementar. (I, 96 )

A especulação filosófica do século XVIII é inteiramente dominada pelo problema da percepção. Num sentido, Hume é o herdeiro, ao mesmo tempo, do pirronismo e do cartesianismo. “Se nós levarmos nossa investigação para além das aparências sensíveis dos objetos, escreve ele à propósito de Newton, a maior parte de nossas conclusões serão, eu o receio, cheias de ceticismo e de incerteza (…). A natureza real da posição dos corpos permanece ignorada. Nós conhecemos somente seus efeitos sensíveis e seu poder de receber um corpo. Nada mais está de acordo com esta filosofia do que um ceticismo limitado a um certo grau e uma bela confissão de ignorância nos assuntos que ultrapassam toda capacidade humana” (Tratado da natureza humana). Reconhecemos nisso, neste limite atribuído ao empirismo, os traços do positivismo moderno. Hume será probabilista. Ele considerará que o que nós afirmamos ser leis da natureza não são, na realidade, senão leis do espírito humano que imagina uma conexão constante entre os fenômenos, dos quais a percepção sensível somente oferece a imagem de uma conjunção. É porque a imaginação faz associações e tem uma função reprodutora, isto é, espera ver se repetir o que ela já constatou (tal será em Kant o sentido da síntese da repetição na imaginação), que ela introduz em sua visão da natureza uma conexão e uma ordem somente prováveis e não necessárias. Todo empreendimento Kantiano consiste, ao nível da primeira Crítica, em tentar fundamentar o caráter universal e necessário dessa conexão. Mas o importante é que o quadro dessa especulação seja ainda o fenomenismo.

Um outro aspecto importante do uso racionalista do ceticismo é a exaltação do espírito de tolerância. Foi para dar término às querelas religiosas e mostrar a vaidade das oposições entre os dogmatismos fanáticos que Huart vulgarizou em francês, em 1715, as Hypotyposes de Sexto Empírico. Nós nos limitaremos aqui a destacar este ponto.

Nós já indicamos mais acima, falando de Hegel, como o ceticismo pode ser o momento da negatividade no desenvolvimento de seu conceito. A reintegração, na história do conceito ou no campo da filosofia, do pensamento cético têm por efeito falsificar a apreciação oferecida do fenomenismo. A imagem do ceticismo que Hegel preferiu dar é a da negatividade radical professada por Arcesilau. Na medida em que Hegel considera a filosofia como una, em detrimento das oposições entre as escolas, é-lhe impossível considerar que as filosofias se excluam mutuamente. Essas exclusões são apenas aparentes: é a filosofia que está em luta contra si mesma, tanto na afirmação do ceticismo radical, como no instante de sua superação.

Atualmente o pirronismo tornou-se uma filosofia quase universalmente praticada sob o nome de positivismo. É claro que todo nosso conhecimento, por muito aperfeiçoados que sejam os instrumentos, é um conhecimento da natureza que opera pela mediação dos sentidos. Conseqüentemente, todo nosso saber é relativo aos sentidos. A idéia de uma relatividade, a crítica eisteiniana da noção de simultaneidade, que não existe senão relativamente à um dado observador, os limites engendrados pelas relações de incerteza de Heisenberg a respeito de nossa apreensão dos fenômenos se produzindo pela cadeia molecular revigoraram o antigo relativismo de Protágoras, de Pirro e de Sexto Empírico. Nenhuma época sente tão vivamente quanto a nossa o caráter historicamente relativo dos costumes, das instituições, das linguagens e das civilizações. Isso não significa que nós estejamos desesperados, convictos do não-saber do saber, mas que sabemos que não há saber sem o homem, nem conhecimento empírico fora dos homens que os constróem.

O ceticismo é, portanto, uma noção de duplo sentido. Historicamente, para os Gregos que o fundaram, é um fenomenismo. Mas ao lado deste relativismo expressou-se com mais ou menos força, conforme diversos contextos, uma tendência do espírito humano em reivindicar o poder infinito da negatividade. Os problemas filosóficos que dela resultam são de vários tipos. Primeiramente: é verdade que nós estamos totalmente condenados ao relativismo? é legítimo formular, fora da prática das ciências positivas, a exigência de um conhecimento racional absoluto apoiado na fé da razão ou na crença num Deus “medida de todas as coisas” como o de Platão, ou garantidor das “verdades eternas” como o de Descartes? Em segundo lugar: de onde vem esta vertigem, esta aspiração ao nada, este apetite pela negação, esta tendência a radicalizar a dúvida que leva o homem, contra toda evidência, a proclamar o nada de seus conhecimentos e a vaidade da ciência? Por que Pascal assusta-se com o “pirrônico Arcesilau”, como com o silêncio dos espaços infinitos?, por que o pensamento dialético quer que a filosofia trabalhe para se negar a si mesma? Em terceiro lugar: podemos esperar atualmente do ceticismo que ele cumpra sua dupla função grega, ou seja, reduzir o entendimento ao silencio, mostrando as contradições dos dogmáticos e a vaidade das explicações metafísicas e religiosas que pretendem dar ao homem uma explicação total e definitiva; dar ao homem a tranqüilidade e a felicidade, fazendo com que ele não confie senão na vida, e remetendo ao domínio das ilusões as questões dogmáticas, fontes de sua inquietação, de sua intransigência, de sua fantasia, numa palavra, de sua infelicidade?

Texto de Jean-Paul Dumont, Scepticism: Artigo da Encyclopædia Universalis, Paris, s.d.,vol:14, pp. 719-723.
Fonte: http://ceticismo.net/ceticismo/o-ceticismo/
"Che non men che saper dubbiar m'aggrada."
"E, não menos que saber, duvidar me agrada."

Dante, Inferno, XI, 93; cit. p/ Montaigne, Os ensaios, Uma seleção, I, XXV, p. 93; org. de M. A. Screech, trad. de Rosa Freire D'aguiar

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Re:Ceticismo Filosófico - Descrição Simples
« Resposta #5 Online: 14 de Junho de 2014, 14:11:07 »
O significado do ceticismo


O termo ceticismo foi tão largamente utilizado que adquiriu vários significados distintos, alguns até conflitantes entre si, através do tempo. Numa acepção coloquial, ceticismo tem como sinônimos impiedade, postura crítica, cientificismo, e outras coisas que exprimem uma atitude de desconfiança em relação a certas crenças ou pretensas verdades. Seu significado original, contudo, embora mantenha alguma relação com esses termos, fica um pouco obscurecido por eles na medida em que possui especificidades que eles não discriminam.

Sendo assim, sem pretender corrigir a maneira coloquial de entender o conceito, eu gostaria de apresentá-lo de maneira mais estrita, mais próxima desse sentido original ao qual aludi. Minha intenção aqui será expor brevemente o ceticismo filosófico, uma maneira de filosofar criada na Antiguidade que tem grande força ainda hoje. Aliás, é pensando nas correntes mais recentes do ceticismo que escrevo aqui.

Dividirei este texto em três partes: a princípio, apresentarei o ponto de partida do ceticismo, depois o modo como ele se firma, tentando delinear de maneira bem introdutória o que ele seria, por fim, concluirei ressaltando como ele está ligado à vida comum. Obviamente, como este é um texto de divulgação, minha exposição será singela e evitará grandes aprofundamentos e argumentações, tentando mais expor o que está envolvido no assunto que realizar uma defesa ou questionamento da posição cética.


I
Verdade e dogmatismo


O ceticismo se inicia com uma das discussões mais antigas da Filosofia: a busca pela verdade. No período em que surgiu, o movimento cético já concorria diretamente com diversas outras correntes filosóficas as quais acreditavam já tê-la encontrado e que sustentavam bons argumentos para tal. Pirro, o alegado patrono do ceticismo, compunha sua filosofia no mesmo período em que o gigante Aristóteles fazia o mesmo, consequentemente, debatia com os seguidores de diversas filosofias do período, fossem estas inspiradas em autores anteriores, ou mesmo em contemporâneos. Sua maneira de filosofar, contudo, diferia dos demais na medida em que problematizava não as verdades que afirmavam, meramente, mas a própria possibilidade de sustentá-las da maneira como esses filósofos faziam. Vou explicar melhor.

Quando algum filósofo não-cético produz um discurso filosófico e chega a alguma verdade, ele pretende que ela seja válida em qualquer tempo, em qualquer circunstância e independentemente de ser pensada ou percebida. Se Platão diz que a matéria é eterna, ou que existe um fundamento para a beleza – o Belo em si – do qual todas as coisas belas participam, por exemplo, ele pretende expressar realidades absolutamente verdadeiras e não verdadeiras somente do seu ponto de vista, de sua própria opinião. Tais coisas seriam sempre válidas e por isso não dependeriam de quem as pensasse.

Esse entendimento da verdade, como se pode notar, é bastante diferente dos usos comuns que fazemos dessa palavra, de modo que quando afirmamos, por exemplo, que nosso time do coração é o melhor do mundo, ou que não ficaremos satisfeitos com a próxima pessoa a presidir o Brasil, não estamos tratando do mesmo tipo de verdade a que eles se referem, embora, é claro, tais afirmações possam ser verdadeiras. As verdades filosóficas transcenderiam esse discurso comum das opiniões para alcançar algo mais elevado e universal.

Segundo esses filósofos, seria possível chegar a verdades fundamentais por meio dessa atividade fantástica que é a Filosofia e, por pensarem assim, tais filósofos foram denominados pelos céticos com o nome de dogmáticos. Bem, mas o que é um dogmático (segundo o ceticismo)? Basicamente, é um filósofo que sustenta duas posições:

1. ele acredita ter encontrado uma ou mais verdades absolutas – quaisquer verdades: o mundo não é somente uma criação de minha mente, verdade é dizer o que corresponde aos fatos, o mundo é composto de duas ou mais substâncias e assim por diante.
2. ele acredita ser capaz de provar tais verdades absolutas, quer dizer, o dogmático possui argumentos e justificativas que mostram porque sua verdade absoluta é absoluta e como ela pode ser reconhecida, por qualquer um, como tal.

Convém dizer que o termo dogmatismo é tão amplo e vulgarizado quanto o próprio termo ceticismo, mas como estamos discutindo posições filosóficas bastante específicas, só importa dizer que, embora céticos diferentes tenham designado o dogmatismo de maneiras diversas também, o dogmatismo costuma expressar essa confiança numa verdade e em certa capacidade de prová-la filosoficamente.


II
A posição cética: suspender o juízo


Os dogmáticos disputaram entre si por séculos para saber quem tem razão em diversos pontos: deuses, realidade, o fundamento do conhecimento e muitas outras coisas, de modo que eles são, efetivamente, a corrente filosófica predominante no mundo. Há e sempre houve muito mais dogmáticos que céticos em qualquer departamento de Filosofia, em qualquer faculdade, em qualquer estado, país ou época, pois o conflito em que eles estão inseridos não os destrói, mas os atiça a desenvolver novas formas de dogmatismos que venham derrotar os demais.

No entendimento dos céticos, porém, o grande problema das filosofias dogmáticas é que, embora elas creiam ter encontrado a verdade e seu caminho, elas são muitas e contraditórias. Os céticos lhe dirigem uma suspeita natural: se uma filosofia diz ter a verdade e outras também, qual das duas tem razão? Mais ainda: com base em quê podemos criar um critério para julgar qual delas tem razão? Se eu utilizar um critério para julgar a verdade absoluta, não estarei também usando um critério absoluto e entrando em conflito com outros critérios absolutos e, consequentemente, outras filosofias? Como resolver essa diafonia? Aos olhos do ceticismo, a descoberta da verdade por parte das filosofias dogmáticas é também uma batata quente que elas tem que carregar sem poder jogar às demais.

Diante disso, considerando a profusão de disputas e discursos contrários, os céticos creem que, pessoalmente, ainda não encontraram a Verdade entre as filosofias disponíveis. Não que eles creiam que seja impossível encontrá-la, que as verdades defendidas pelos outros sejam falsas ou qualquer coisa assim, eles apenas acham que, eles mesmos, ainda não a encontraram e que a disputa em torno dela, enquanto dissidência irresolvível, lhes aparece, por ora, como irresolvível. Falta-lhes uma solução para essa bagunça toda.

Trata-se, portanto, de uma experiência particular: de julgar uma aparência que pode ou não ser verdadeira e sobre a qual eles continuam céticos, ou seja, que eles continuam a investigar. O próprio termo ceticismo vem daí: investigador.

O que fazer, contudo, com os milhares de dogmas disponíveis? Que posição tomar em relação a eles? Posso estar investigando a verdade, mas o que devo pensar sobre as pretensas verdades alegadas pelos outros?

Segundo os céticos, enquanto investigamos a verdade, é preciso suspender o juízo em relação àquilo que não conseguimos opinar ainda, em outras palavras, é preciso não dar assentimentos à verdade ou à falsidade absoluta das coisas. Os céticos não entram na disputa para dizer quem tem ou não razão. Eles mesmos não sabem quem tem razão ou se eles mesmos tem razão, apenas tomam uma atitude que lhe parece conforme com os meios que dispõe.


III
Ceticismo e vida comum


Pelos séculos através dos séculos os céticos tem sido conhecidos como filósofos que duvidam de tudo, que defendem uma filosofia maluca e insustentável. Descartes (1596-1650), convém dizer, ajudou muito a popularizar essa imagem, embora ele mesmo não fosse nada cético.

Ocorre, porém, que, se as filosofias dogmáticas requerem critérios absolutos para a verdade, uma vez que ela mesmo deve ser absoluta, isso implicaria, na maneira de entender do ceticismo, num afastamento filosófico da vida comum. Para os céticos, os dogmáticos constroem castelos abstratos e impenetráveis, onde se isolam de uma vida com as demais pessoas, sendo o ceticismo uma maneira saudável de questionar os critérios absolutos, a exigência de uma verdade que transcenda o tempo e o espaço, e manter nossos pés bem presos ao chão.

Segue-se disso uma proposta de vida que siga aquilo que nos aparece como confiável segundo nossa própria experiência, mas que não se prenda demasiadamente – dogmaticamente, aliás – nem a ela, nem aos nossos delírios filosóficos. O ceticismo, portanto, seria uma espécie de purgação filosófica, um remédio para os excessos da razão, que nos manteria em uma constante reforma íntima de nossas opiniões encardidas, de nossos dogmas mais arraigados. O cético poderá, inclusive, deixar de ser cético um dia caso, numa de suas investigações, tope com a Verdade absoluta numa das esquinas da vida. Nem mesmo essa impossibilidade está excluída definitivamente de seu horizonte, ela está apenas suspensa junto às outras, a todas as outras.

Adendo: algumas indicações de leitura

Smith, Plinio Junqueira. Ceticismo. Rio de janeiro: Zahar, 2004.

Um livrinho simples e barato (uns R$10,00 em livrarias), escrito por um dos maiores especialistas no assunto. Smith traça um perfil geral do ceticismo tal como ele é discutido atualmente, principalmente na filosofia analítica e na epistemologia contemporânea. O capítulo sobre ética e vida comum, contudo, é uma das melhores partes do livro.

Pereira, Oswaldo Porchat. Rumo ao ceticismo. São Paulo: Unesp, 2006.

Um dos poucos clássicos da filosofia brasileira, este livro reúne os artigos de um dos filósofos mais importantes do país (felizmente ainda vivo). Porchat mudou os rumos dos estudos sobre ceticismo no Brasil, fundou a corrente filosófica conhecida como neopirronismo, formou uma geração de filósofos de alto nível – como o próprio Plinio Smith, citado acima – e se tornou uma referência latinoamericana de como é possível, não sendo grego, europeu, ou estando morto, fazer boa filosofia.

Fonte: Blog Cético, O significado do ceticismo
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Re:Ceticismo Filosófico - Descrição Simples
« Resposta #6 Online: 14 de Junho de 2014, 14:13:54 »
Sobre o Pseudo-ceticismo

Marcello Truzzi, publicado no The Zetetic Scholar, #12-13, 1987
Via:

Ao longo dos anos, tenho condenado o mau uso do termo "cético" quando usado para se referir a todos os críticos de alegações sobre anomalias. Infelizmente o termo tem sido abusado desta forma tanto por proponentes quanto por críticos do paranormal. Às vezes os usuários do termo distinguem entre os assim chamados céticos "leves" [soft] contra os céticos "duros" [hard], e eu reavivei em parte o termo "zetético" por causa deste mau uso. Mas agora penso que os problemas criados vão além de mera terminologia e a situação precisa ser passada a limpo. Uma vez que "ceticismo" corretamente se refere à dúvida em lugar da negação — não-crença em lugar de crença — críticos que tomam a posição negativa em lugar da agnóstica, mas ainda se chamam "céticos", são de fato pseudo-céticos e têm, creio eu, ganhado uma falsa vantagem usurpando esse rótulo.
Em ciência, o ônus da prova recai no alegador; e quanto mais extraordinária uma alegação, mais pesado é o ônus da prova exigido. O verdadeiro cético toma uma posição agnóstica, uma que diz que a alegação não está provada em lugar de desprovada. Ele afirma que o alegador não sustentou o ônus da prova e que a ciência deve continuar construindo seu mapa cognitivo da realidade sem incorporar a alegação extraordinária como um "fato" novo. Considerando que o verdadeiro cético não faz uma alegação, ele não tem nenhum ônus para provar qualquer coisa. Ele apenas continua usando as teorias estabelecidas da "ciência convencional" como sempre. Mas se um crítico afirma que há evidência para refutação, que ele tem uma hipótese negativa — dizendo, por exemplo, que um aparente resultado psi era de fato devido a uma falha nos processos de controle ou análise [artifact] — ele está fazendo uma alegação e então também tem que lidar com o ônus da prova. Às vezes, tais alegações negativas por críticos também são bastante extraordinárias — por exemplo, que um OVNI era de fato um plasma gigantesco, ou que alguém em uma experiência psi obtinha pistas por uma habilidade anormal de ouvir tons altos que outros com ouvidos normais não notariam. Em tais casos o alegador negativo também deve ter que lidar com um ônus de prova mais pesado que o normalmente esperado.

Críticos que fazem alegações negativas, mas que erradamente se chamam "céticos", freqüentemente agem como se não tivessem absolutamente nenhum ônus da prova sobre eles, ainda que tal posição só seria apropriada para o cético agnóstico ou verdadeiro. Um resultado disto é que muitos críticos parecem sentir que só é necessário apresentar um caso para sua contra-alegação fundado em plausibilidade em lugar de evidência empírica. Assim, se pode ser demonstrado que um indivíduo em uma experiência psi teve uma oportunidade para fraudar, muitos críticos parecem assumir não somente que ele provavelmente fraudou, mas que deve ter fraudado, apesar do que pode ser uma ausência completa de evidência de que ele realmente fraudou e algumas vezes até mesmo ignorando evidência da reputação passada do indivíduo de honestidade. Similarmente, às vezes procedimentos de randomização impróprios são assumidos como sendo a causa de indicadores psi altos de um indivíduo, embora tudo que tenha sido estabelecido seja a possibilidade de que tal efeito tenha sido a causa real. É claro, o peso evidencial da experiência está muito reduzido quando nós descobrimos uma falha em seu projeto que permitiria que um efeito confundisse os resultados. Descobrir uma oportunidade de erro deveria fazer tais experimentos menos evidenciais e normalmente não convincentes. Isso normalmente contesta a alegação de que a experiência era "à prova de erro", mas não contesta a alegação de anomalia.

Mostrar que uma evidência não é convincente não é suficiente para descartá-la completamente. Se um crítico afirma que o resultado era devido à falha X, esse crítico tem então o ônus da prova de demonstrar que a falha X pode e provavelmente produziu tal resultado sob tais circunstâncias. É verdade que em alguns casos a atração pela mera plausibilidade de que uma falha produziu o resultado pode ser tão grande que quase todos aceitariam o argumento; por exemplo, quando nós descobrimos que alguém que fraudou no passado teve uma oportunidade de fraudar neste caso, poderíamos concluir razoavelmente que ele provavelmente também fraudou desta vez. Mas em muitos casos o crítico que faz um argumento meramente plausível para uma falha fecha a porta em pesquisas futuras quando a ciência apropriada exige que sua hipótese de uma falha também deveria ser testada. Desafortunadamente, a maioria dos críticos parece feliz em sentar em suas poltronas produzindo explicações post hoc. Seja que lado termine com a história verdadeira, a ciência progride melhor através de investigações em laboratório.

Por outro lado, proponentes de uma alegação de anomalia que reconhecem a falácia anterior podem ir muito longe na outra direção. Alguns argumentam, como Lombroso quando ele defendeu a mediunidade de Palladino, que a presença de peruca não nega a existência de cabelo de verdade. Todos nós temos que nos lembrar de que a ciência pode nos contar o que é empiricamente improvável, mas não o que é empiricamente impossível. Evidência em ciência sempre é uma questão de grau e raramente é, se é que é alguma vez, absolutamente conclusiva. Alguns proponentes de alegações de anomalias, como alguns críticos, parecem pouco dispostos em considerar evidências em termos probabilísticos, agarrando-se a qualquer fio solto como se o crítico tivesse que contestar toda a evidência avançada para uma alegação particular. Tanto críticos quanto proponentes precisam aprender a pensar em adjudicação na ciência mais como a encontrada nos tribunais de lei, imperfeita e com graus variados de prova e evidência. Verdade absoluta, como justiça absoluta, raramente é alcançável. Nós podemos apenas fazer o melhor que podemos para nos aproximar delas.
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Offline _tiago

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Re:Ceticismo Filosófico - Descrição Simples
« Resposta #7 Online: 14 de Junho de 2014, 15:33:53 »
Eu vejo a matemática como um instrumento, uma ferramenta de auxílio a compreensão. Algo como a linguagem. Não sei se é uma coisa que preciso acreditar.

 

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