Intervenção no cérebro: a neuroética em discussão Aplicações das descobertas da neurociência são tema da coluna 'A propósito'
Em 2003, um estudo coordenado por Miguel Nicolelis conseguiu que um macaco comandasse a distância um braço robótico, com sinais elétricos de seu cérebro Estamos em 2024. Zeca se prepara para fazer a prova de seleção para operários mentais da empresa Neuronométrica. Toma dois comprimidos de Memorix, comprados com grande sacrifício por seu pai para amplificar sua capacidade de lembrar-se dos pontos de prova. Se passar, considera com um frio na espinha, terá que se submeter ao implante de 10 chips nos lobos frontais de seu cérebro (exigência contratual), para poder desempenhar o trabalho de operador mental dos robôs que a empresa mantém no fundo da baía para construir uma usina de bento. Ficção científica? Nem tanto. As revistas científicas têm publicado resultados promissores de neurocientistas que desenvolvem interfaces cérebro-máquina, isto é, dispositivos capazes de captar a atividade dos milhões de neurônios que coordenam as operações mentais necessárias para realizar movimentos complexos, e passá-la diretamente a robôs distantes.
Não há dúvida de que isso será uma realidade em poucos anos, criando grande expectativa quanto à melhoria da qualidade de vida de indivíduos incapazes de se mover por causa de lesões na medula espinhal. Além disso, corre avançada a pesquisa sobre os mecanismos moleculares da memória, e não está longe o momento em que novas drogas permitirão restaurar a memória dos doentes de Alzheimer e de outros pacientes.
O grande dilema trazido por essas pesquisas envolve -- como no exemplo imaginário do operário Zeca -- suas aplicações não a um doente, mas a um homem normal. É lícito aplicar as tecnologias de neuro-robótica e neurofarmacologia para aprimorar capacidades de indivíduos normais? Ou estas só devem ser usadas em indivíduos doentes? Se for possível a paraplégicos controlar robôs à distância usando a atividade neural captada por chips, pessoas normais também serão capazes de fazê-lo com fins profissionais. Se pacientes de Alzheimer puderem melhorar sua memória usando fármacos específicos, isso também ajudará indivíduos normais a melhorar seu desempenho pessoal e profissional. Mas... será aceitável, moralmente? Esse é o dilema central da neuroética, nova área de conhecimento criada pela confluência entre a neurociência e a (bio)ética: tratamento versus aprimoramento. Seria lícito exigir por contrato que operários implantem chips no cérebro para melhor executarem suas funções? Quais os riscos dessa prática? Na mesma lógica, seria aceitável um indivíduo normal usar psicofármacos para aprimorar seu desempenho intelectual e assim obter vantagens em concursos e exames? Como ficariam os que, por razões de convicção ou impossibilidade financeira, não tivessem acesso a essa tecnologia? Não estaríamos criando uma nova fonte de desigualdade social?
Os que discordam do uso das neurotecnologias para o aprimoramento individual argumentam com o artificialismo criado pela intervenção eletrônica ou farmacológica no cérebro: as pessoas não seriam mais naturais, criações legítimas da natureza, e sim indivíduos alterados, artificiais. Mas, replicam os defensores desses avanços, usar um comprimido para amplificar a memória teria significado idêntico a usar um tranqüilizante para melhor falar em público. Para os opositores, chips implantados no cérebro poderiam interferir com outras funções mentais, e talvez criar uma situação de não-retorno, em que seria impossível retirar os chips sem dano ao indivíduo.
Efeitos colaterais, dizem os defensores do aprimoramento, ocorrem com toda nova tecnologia e podem ser minimizados pelo aperfeiçoamento técnico. A criação de desigualdades sociais é outro argumento dos discordantes: crianças que usassem comprimidos de amplificação da memória (provavelmente caros) teriam mais sucesso na escola, ingressariam nas melhores universidades e estariam mais capacitadas a melhores empregos. Para os defensores, esse seria um problema social como todos os demais -- e bastaria criar condições para tornar as neurotecnologias disponíveis a todos. Não só a comunidade científica, mas também os cidadãos em geral precisam iniciar essa discussão. Os exemplos aqui citados são ainda ficcionais, mas estamos muito próximos do momento em que se tornarão reais.
Ciência Hoje 203, abril 2004 Roberto Lent Departamento de Anatomia, Instituto de Ciências Biomédicas, Universidade Federal do Rio de Janeiro