Astrofísico indiano afirma que a superstição religiosa na Índia atrapalha o desenvolvimento científico mais do que a pobreza e explica por que acredita que a Sars (síndrome respiratória aguda grave) seja uma doença trazida por microrganismos extraterrestres
Razão e Fé
Leandro Beguoci
da reportagem local
Qual é o maior problema de um país que tem 40% de analfabetos, taxa de mortalidade infantil maior que a do Timor Leste e expectativa de vida inferior a do Iraque em guerra? Não, a resposta não é a pobreza -é a superstição.
Ao menos, essa é a opinião do astrofísico indiano Jayant Narlikar, 67, um dos mais importantes cientistas de seu país. "A pobreza influencia o estado material das pessoas. A superstição afeta suas mentes", afirma. "Em algumas regiões do país, as mais religiosas, laboratórios científicos não entram."
Típico filho da elite indiana -seu pai era professor universitário de matemática e a mãe, de sânscrito, uma das mais de 15 línguas faladas na Índia- Narlikar estudou e fez carreira na Inglaterra, onde foi pesquisador sênior da Universidade Cambridge. Quando voltou à Índia, em 1972, já era considerado um grande cientista, fama que se consolidou com o tempo.
Em 1988, depois de trabalhar 16 anos como professor universitário, foi chamado para ajudar na criação do Centro Interuniversitário para a Astronomia e a Astrofísica, órgão estatal que se tornou referência em pesquisas do universo.
Em seu currículo, o astrofísico ostenta a condição de membro da Sociedade Filosófica de Cambridge e da Academia Nacional de Ciências da Índia. Seus trabalhos sobre o espaço e a vinda de doenças em meteoros, como a Sars (síndrome respiratória aguda grave), são discutidos mundo afora.
Porém, a obra da qual ele mais se orgulha -e pela qual ganhou um prêmio da Unesco em 1996- é a de ter se tornado referência em divulgação científica na Índia, o segundo país mais populoso do mundo. No começo, foram programas de rádio no qual ele explicava, por exemplo, por que as pessoas não tinham de ficar com medo de sair de casa em dias de eclipse solar. O sucesso foi tão grande que os programas viraram seriados de TV e livros didáticos.
Hoje, Narlikar é líder de um projeto, já em funcionamento, de construção de diversos planetários pelo interior da Índia e está empenhado em popularizar um parque de diversões científico, onde ele quer que as pessoas aprendam, brincando, o que é uma chuva de meteoros, um buraco negro, um cometa.
Apesar do reconhecimento, está longe de obter sucesso. Primeiro, porque todo material de divulgação científica tem de ser traduzido para cada uma das 15 línguas do país. Segundo, por causa da resistência da própria população. Como acontece com outras religiões, a ciência se confronta com a crença. Mas, quando a crença nasce com o país e é comum a 80% da população, como é o caso do hinduísmo na Índia, a tarefa de divulgar a ciência ganha contornos hercúleos. Leia a seguir os principais trechos da entrevista que Narlikar concedeu à Folha, por e-mail.
Folha - Por que o sr. diz que a superstição atrapalha o desenvolvimento tecnológico mais do que a pobreza?
Jayant Narlikar- A pobreza influencia o estado material das pessoas. A superstição afeta suas mentes. Em uma época em que a ciência e a tecnologia estão mudando nossa vida rapidamente, é essencial que consigamos conhecê-las e usá-las com sabedoria. Isso não será possível enquanto as mentes continuarem controladas por superstições. Em algumas regiões da Índia, as mais religiosas, laboratórios científicos ou não entram ou são irrelevantes. Apesar disso, acredito que deve ser possível para o país produzir mais e melhores cientistas.
Folha - Mesmo com as superstições, a Índia é um grande produtor de cérebros para a indústria tecnológica. Qual a explicação?
Narlikar - Há um sentimento geral de que é necessário ser PhD para conseguir um emprego em áreas como educação e pesquisa científica. Essa é a principal razão pela qual temos tantos PhDs. Além disso, os indianos têm tendência ao pensamento analítico e isso pode ser útil para fazer softwares e a astronomia e a computação são parceiras íntimas há muitos anos por aqui. A computação tem ajudado a astronomia a se desenvolver ao mesmo tempo em que a resolução de problemas astronômicos nos ajudou a criar novos softwares.
Folha - Como o sr. mostra que o hinduísmo pode estar errado?
Narlikar - Não entro em conflito com o hinduísmo, até porque essa religião tem muitas características interessantes. Só me oponho a alguns de seus rituais e superstições.
Folha - Quais?
Narlikar - As superstições mais importantes são a crença na astrologia e no sistema de castas. Antigamente, só as castas mais altas podiam ser educadas, hoje isso mudou, mas essas duas crenças são os maiores impedimentos para o progresso e precisam ser erradicadas.
Folha - O hinduísmo não ajudou em nada para o progresso do país?
Narlikar - Sim, claro. O campo da astronomia abre muitas portas para um pensamento profundo e sempre fascinou os hindus . Matemática e cálculos também são pontos fortes dos indianos há muito tempo.
Folha - O sr. acredita em Deus?
Narlikar - Eu não acredito em um Deus pessoal, que influencia minha vida e meus planos para o futuro. Porém, sinto-me desafiado por um universo em que algumas leis fixas da ciência se aplicam. Isso é um enigma que me toma além da minha condição de cientista. Alguém superinteligente fez essas leis? Se fez, essa pode ser a idéia mais próxima de Deus que alguém pode ter, mas essa idéia não me satisfaz.
Folha - Como popularizar a ciência em um país que tem mais de 15 línguas?
Narlikar - O único jeito de fazer isso é divulgar o conhecimento em cada umas dessas línguas. Felizmente, muitas pessoas estão comprometidas com esse trabalho de tradução.
Folha - Por que o sr. quis trabalhar com divulgação científica?
Narlikar - Sou um cientista que tem suas pesquisas pagas pelos contribuintes e por isso sinto que é meu dever dividir com meus compatriotas minha empolgação pela ciência. Divulgo meu trabalho em artigos sobre ciência e ficção científica para jornais e revistas, vou a programas de TV e de rádio, uso a internet.
Folha - Por que o sr. diz que a Sars (síndrome respiratória aguda grave) veio do espaço?
Narlikar - Meus colegas e eu fizemos essa proposta à luz das hipóteses que afirmam que microrganismos como vírus e bactérias podem viajar pelo espaço. Acreditamos que doenças que vêm de fora da Terra podem causar epidemias e a Sars se enquadra nesse caso. Queremos que essa idéia seja examinada em profundidade, porque pode solucionar misteriosas doenças que aparecem, repentinamente, no planeta.
FONTE: Folha de São Paulo 30/08/05 - caderno Sinapse