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Crítica aos Dez Princípios Conservadores
« Online: 03 de Julho de 2014, 03:58:22 »
Crítica aos Dez Princípios Conservadores
Por Joel Pinheiro da Fonseca em 28/03/2014




O conservadorismo representado por Russell Kirk é, sem dúvida, muito superior às variantes popularescas e fundamentalistas que são sucesso de venda aqui e nos EUA. Ao invés de estridente, demagógico, sectário, preconceituoso, reacionário, o bom conservadorismo é plácido, ponderado, filosófico, tem apurado senso estético (esse mérito não lhe nego) e é naturalmente amigável às ideias liberais. Ainda assim, carrega consigo falhas que é preciso criticar.

Para cumprir essa inglória tarefa, vou me basearna lista de dez princípios conservadores feitos por Russell Kirk, pensador que, todos concordam, representa o bom conservadorismo (leia o original ou atradução). Está ali, sinteticamente, uma posição intelectual que garante ser superior e mais profunda que alternativas ingênuas do socialismo ou do liberalismo radical.

Agrupei os princípios em dois grupos que representam o que vejo como duas falhas dessa escola de pensamento: o conservadorismo é vago; e o conservadorismo é irracional.

Princípios 4, 5, 9 e 10 – vagueza como método

Em todas as discussões sobre o conservadorismo, seus defensores fazem a mesma acusação: você está criticando uma caricatura (objeção que certamente será feita a este texto). Ninguém jamais critica o verdadeiro conservadorismo. Nenhuma proposição é capaz de captar sua real essência. Diz o crítico: os conservadores querem preservar por preservar, como se o antigo fosse sempre melhor. Responde o conservador: nada disso! Ser conservador inclui também querer mudar o que deve ser mudado, buscar o progresso que esteja em equilíbrio com a permanência. Acusa-se: o conservador quer que todos vivam segundo um mesmo código de conduta. Responde: muito pelo contrário, o conservador reconhece e valoriza a legítima variedade no homem, de culturas, de classes, etc. O conservador é avesso à mudança, não traz contribuições à política. Pelo contrário, o conservador promove a mudança prudente, atenta às circunstâncias concretas da ação. O conservador só olha para o passado. Não! O conservador ama o bem eterno, restaurando o que já existiu, mas também instaurando o inédito.

O discurso conservador transita por esses equilíbrios: entre mudança e permanência, entre igualdade e variedade, restrições moderadas às paixões, a rejeição do universalismo em favor das mudanças adequadas às circunstâncias; não o amor ao antigo, mas ao Verdadeiro, ao Bom, ao Justo e ao Belo. Acima de tudo, a prudência, que sabe quando agir e quando não agir, quando mudar e quando preservar. Tudo muito bonito, espiritual e… vazio.

Qualquer vertente política pode dizer as mesmas coisas. O militante do PSOL também quer mudar o que é ruim e preservar o que é bom, também quer a ação prudente, em sintonia com as circunstâncias e com as consequências de longo prazo; ele também busca justiça e verdade. Seria ele um conservador?

Pincemos algumas citações só para ilustrar. No princípio 4, o da prudência, Kirk enuncia uma regra: evitar mudanças abruptas, repentinas. Alguém poderia criticá-lo, portanto, por ser incapaz da mudança repentina, da ação audaz. De modo algum, dirá o defensor de Kirk, pois “o conservador afirma que age somente após suficiente reflexão, pesando as consequências”. Entendeu bem? Não é que o conservador advogue a lentidão; ele advoga que cada decisão tome o tempo suficiente; nem mais, nem menos. Em suma, a velocidade ideal, adaptada a cada caso. Quem, do anarquista ao estalinista, discordaria desse sábio princípio?

É preciso ter a prudência de mudar quando a mudança for conveniente e não mudar quando não for. Ora, mas e como distinguir um caso do outro? Como distinguir o prudente do imprudente? Sem resposta. Prudência é sexto sentido, ou você tem ou não tem. O casamento gay é uma mudança não muito radical para nossa sociedade. Seria então conveniente apoiá-lo? Não conheço um conservador que pense assim. E a liberação das drogas? Idem. Quem disse que é prudente relaxar restrições ao tabaco e mantê-las para o caso da maconha? Não vale responder “o Vaticano”.

A suposta prudência acaba servindo não como critério objetivo, mas como uma máscara para justificar potencialmente qualquer posição de que o autor goste. Cada um dos princípios parece enunciar alguma coisa, mas quando o lemos de pertoele se revelaqualquer coisa. Abundam as qualificações: adequado, prudente, saudável, regulado, harmônico – a função de todos é a mesma: tornar vago. Quase qualquer proposta pode se vestir de conservadora. Não há critério objetivo; basta a habilidade retórica.

Note que eu disse “quase qualquer proposta”. Foi intencional. A retórica conservadora abre os braços para quase tudo, mas deixa alguém de fora. Ela exclui uma coisinha de nada, um pequeno detalhe, uma faculdade menor da mente humana que, todos concordam, não importa muito. Talvez você tenha ouvido falar dela. É a responsável por formular planos teóricos, propor mudanças sistemáticas com direção clara; é dela pretensão de um conhecimento universal que vai além das circunstâncias. Trata-se da razão.

A única coisa que o conservadorismo rejeita é a aplicação da razão humana sobre questões políticas, preferindo apostar na inércia estacionária e na mudança pragmática aqui ou ali, ao sabor das circunstâncias, sem método, teoria ou plano – esses pecados capitais.

Por trás da retórica da vaguezase esconde o irracionalismo, a rejeição da razão como guia para organizar a vida individual e a sociedade nos assuntos mais importantes. Rejeitando a faculdade racional, ele recorre naturalmente a seus antigos rivais: o costume e a fé (que também competem entre si); por vezes, ao gosto pessoal.

Princípios 1, 2, 3 e 6 – irracionalismo como fim

A negação da racionalidade fica evidente nos princípios 3 e 6.Um diz: somos anões nos ombros de gigantes. Por que anões? Por que o homem moderno é inferior às gerações passadas? Kirk diz que é “improvável” que novas descobertas sejam feitas em moral ou política. O outro é aparentemente mais sensato: este mundo nunca será perfeito. Sob a desculpa de afastar utopias, contudo, o conservadorismo condena todo e qualquer plano de melhora significativa da condição humana.

O conservadorismo é um oponente do marxismo? Sim. Mas por que motivo? Porque o marxismo tentou entender a realidade e indicar o caminho universal e das sociedades, fazendo propostas com base nisso. Quando um liberal critica o marxismo, é porque, em sua opinião, o marxismo pensou errado. Já o conservador critica o marxismo por ter pensado atall.

Ao invés de buscar um mundo melhor, devemos abaixar a cabeça e seguir felizes o caminho já traçado por nossos sábios antepassados. Não dá para fugir muito disso, e a tentativa é já um devaneio juvenil nocivo à ordem social. Se fôssemos mais sábios e santos, contentar-nos-íamos em seguiro primeiro princípio: reconhecer e preservar a “ordem moral” que paira sobre nós.

“Os conservadores acreditam numa ordem moral duradoura”. Em certo sentido, todo mundo que concorda que existe certo e errado nas ações humanas – ou seja, que não é um total relativista – concorda com essa afirmação. De religiosos fundamentalistas até utilitaristas ateus, todos podem falar numa ordem moral.

Segundo Kirk, no entanto, a ordem moral parece ser um tipo de harmonia espiritual entre os homens e o “transcendente” (apelido politicamente correto de Deus) que envolve a todos e opera uma grande analogia entre alma e sociedade. Homem ordenado, sociedade ordenada: cada coisa em seu lugar, o cosmos operando sem atravanques. São imagens interessantes, mas até que ponto correspondem a algo real?

Uma coisa é dizer que o homem pode descobrir quais atos contribuem ou não com sua felicidade – uma ética objetiva e racional, que pode ser chamada de “ordem moral”. Coisa bem diferente é imaginar uma harmonia cósmica ao qual o homem tenha de se submeter; o que Kirk chama, no fim do texto, de “os altos deveres para com a ordem espiritual e a ordem temporal”. Essa é uma constante do conservadorismo: sob um linguajar vago, afirmar veladamente a necessidade da religião. Nossos antepassados é que sabiam mais, posto que no tempo deles a religião imperava. Eles pagavam seus altos deveres para com a ordem transcendente; nós, não.

Kirk diz com desdém que é “improvável” que façamos grandes avanços em matéria política ou moral. Então o improvável aconteceu. A ciência econômica foi descoberta em meados do século 18, revolucionada na década de 70 do século 19 e não parou de se desenvolver desde então. Essa ciência enterrou de uma vez por todas a crença antiquada que Kirk repete em pleno século 20: “Uma sociedade em que os homens e as mulheres são governados pela opinião em uma ordem moral perene, por um sentido forte de certo e errado, por convicções pessoais sobre a justiça e a honra, será uma boa sociedade — não importa a maquinaria política que utilize”. Isso é tão colossalmente equivocado que me parece mais razoável culpar esse tipo de opinião, e não a falta de crença numa ordem moral, pelos desastres socialistas e populistas do século 20.

Não faltava crença numa ordem moral no mundo socialista e nem no nazifascista. Pelo contrário, eles reclamavam para si um ideal moral que se dizia superior ao do Ocidente “decadente”. A crítica ao mercado sempre passou pela incessante condenação moral: à ambição, ao lucro, aos juros, à desigualdade. Filósofos gregos; Santos Padres da Igreja; intelectuais do Partido. Daí se vê o caráter revolucionário do capitalismo.

A crença numa ordem moral duradoura estava firme e forte nos regimes socialistas e fascistas. Honestidade, trabalho, honra, família (sim, Stalin foi defensor da família); tudo isso era parte desses regimes que, ainda assim, foram nocivos.O que faltava a eles não era convicção moral, e sim o conhecimento do homem e da sociedadee a “maquinaria política” dele resultante.

A modernidade viu diversos avanços em questões morais: a aceitação da cobrança de juros, a condenação da tortura, o fim da pena capital ao homossexualismo, a descoberta de que o sexo não é mau ou sujo, o fim da escravidão, o fim da perseguição religiosa, a liberdade de consciência, os direitos da mulher. Avanços tecnológicos também tiveram impactos morais qualitativos na condição humana: imprensa, telecomunicações, anestesia, antibióticos, vacinas, computador, eletricidade, motor a combustão, internet. Seu impacto botou abaixo costumes e tradições anteriores, apesar do esforço conservador destes por se manter e impedir o novo.

Não há nada de errado com o argumento de que, dado que uma convenção durou milênios, na ausência de maiores informações, isso pesa em seu favor. A idade é um ponto favorável; mas tênue. Não perduram só coisas boas. As más também, desde que consigam estabelecer um sistema de incentivos que garanta sua continuidade. Essas devem ser destruídas.

Uma lei antiquíssima do direito canônico católico obrigava, sob pena de excomunhão, que os soberanos punissem com a morte os hereges condenados pela Inquisição. Havia muitos interessados na continuidade dessa lei. Deveria ela ter sido abolida aos poucos, gradativamente? Não. Essa e outras barbáries – que ainda são regra no mundo islâmico – deveriam ser interrompidas de imediato.

Séculos de “tentativas, reflexão e sacrifício” às vezes produzem, ao invés de “ordem e liberdade”, opressão e irracionalidade. O sacrifício vira um fim em si. O conservador, por via das dúvidas, deixa tudo como está, pois sempre dá pra piorar. Antes o demônio conhecido que o desconhecido. Mas o medo é um péssimo guia, e nem só de demônios é feita a realidade.

O que sobra

O conservador em geral é uma pessoa religiosa, ou, no mínimo, um admirador da religião. É também alguém afeito a costumes e tradições. Alguém que prefere o certo ao duvidoso e que busca atingir seus valores dentro dos parâmetros legados pela cultura em que vive. Não há nada de errado nisso. É bom e provavelmente até necessário que o temperamento conservador exista no mundo.

O problema é a transformaçãodesse temperamento num programa cultural ou político. O conservadorismo vira, então, uma névoa do intelecto. No lugar do foco analítico e crítico, a fumaça piedosa do incenso. Rejeita a sistematicidade, a radicalidade, a universalidade; a razão. Propõe em seu lugar coisas muito menos confiáveis que são, em última análise, também produtos humanos. E como as tradições e as fés são muitas, o campo está aberto para se defender o que bem quiser. Mandamentos religiosos, preconceitos arraigados, antiguidade, “direitos adquiridos”, gosto pessoal; tudo vale para preservar ou restaurar algo que a sociedade mudaria. Sempre, é claro, para o bem comum! Afinal, nossa perda de contato com a ordem moral transcendente prenuncia tempos negros.

Felizmente, entre nós, os conservadores buscam preservar valores da ordem liberal do Ocidente, que foi sepultada no início do século 20; é só ver os princípios 7 e 8 de Kirk. Isso cria uma intersecção entre liberais e conservadores. Mesmo aí, contudo, a defesa desses valores é feita em bases frágeis e pode ser levada a extremos equivocados, como a insistência no localismo. Nem sempre a liberdade favorecerá soluções locais: uma grande empresa que produz roupas baratas e vende para os quatro cantos do mundo é muita vezes preferida ao artesanato local, cujo produto é superior, mas mais caro.

O homem continua a descobrir e a inovar como sempre fez. O passado é um parâmetro e oferece um direcionamento que nem sempre acerta. É preciso audácia para escapar das prisões mentais armadas por nossos antepassados; mas a história mostra que é possível. Nem gigantes, nem anões: somos homens. Nossa estatura, todavia, é muito maior do que os conservadores jamais admitirão.


Fonte: http://www.institutoliberal.org.br/blog/critica-aos-dez-principios-conservadores/

 

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