5. Como o controle de preços atrapalha a sua pizza no final de semana.A Constituição brasileira assegura certas liberdades essenciais que, embora frequentemente esquecidas, constam como fundamentos da República e da ordem econômica, dentre elas a livre iniciativa e a liberdade de contratação (artigos 1º, IV, 5º, II, e 170). Submeter o preço e a qualidade do objeto da contratação em negócios puramente privados a restrições obrigatórias impostas pelo Estado fere de morte essas liberdades fundamentais. Ademais, o controle de preços retira o incentivo que empresários têm para produzir bens importantes para a sociedade: o lucro. O resultado será não apenas o sucateamento do fornecimento pelos prestadores que já estão no mercado, mas também o desestímulo ao ingresso de novos entrantes.
Os redatores do Código de Defesa do Consumidor pensavam diferente. Ignorando qualquer tipo de limite à interferência nas liberdades individuais e na configuração empresarial, o Código chega até mesmo a admitir “regime de controle ou de tabelamento de preços” (art. 41), além de proibir a prática “abusiva” de “elevar sem justa causa o preço de produtos ou serviços” (art. 39, X).
A Lei nº 1.521/51 chega a classificar como crime “obter, ou estipular, em qualquer contrato, abusando da premente necessidade, inexperiência ou leviandade de outra parte, lucro patrimonial que exceda o quinto do valor corrente ou justo da prestação feita ou prometida”. Baseando-se nessa mentalidade, agentes do Procon se comportam como verdadeiros “fiscais de preços”, recordando a triste época de tabelamento durante a década de 1980, cujos resultados foram filas e desabastecimento.
A mais recente “cruzada” do Procon, no entanto, não tem qualquer conexão com a ameaça à saúde do consumidor ou com a sua proteção contra fraudes. Seus agentes têm utilizado dinheiro público em uma luta contra o preço das pizzas “meio-a-meio”. Segundo os responsáveis pela “operação pizza legal” dos Procons da Bahia e do Ceará, seria proibido cobrar pela pizza de dois sabores o valor da mais cara. Entretanto, não há qualquer disposição legal ou regulamentar que autorize, de forma categórica, essa conclusão. Baseia-se o Procon em uma interpretação criativa do art. 39, V, do Código de Defesa do Consumidor, que veda aos fornecedores “exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva”. É verdade que sequer se consegue vislumbrar uma intepretação coerente para dispositivo tão vago e mal redigido. Se o consumidor, em um mercado sem restrições de entrada criadas pelo governo, concordou voluntariamente em fechar um negócio, é sinal de que há vantagens para ambas as partes. Reconhecer “excessividade” nesse contexto é um perigoso, arbitrário e despropositado paternalismo, que abre espaço para oportunismos.
Demais disso, a atuação do Procon no caso das pizzas não fará a diferença de preço desaparecer como mágica. A estrutura de preços em uma pizzaria é informada não apenas pelo custo marginal de produção de uma pizza isolada, mas também por custos fixos que não variam de acordo com o tamanho da refeição: mão de obra, manutenção do estabelecimento, tributos, embalagens, tempo de produção, etc. É por isso que o valor das pizzas pequena e média geralmente não corresponde a uma fração proporcional ao tamanho da pizza “família”. Quando o cliente pede que a pizza grande seja dividida em dois sabores, essa demanda corresponde à de duas pizzas menores, fazendo sentido a cobrança superior à de apenas uma especialidade. Pode ser que a elaboração da pizza “meio-a-meio” tome mais tempo dos “pizzaiolos” ou quaisquer outros motivos cuja avaliação compete apenas ao empresário: aquele que investiu para montar o negócio e que sofrerá prejuízos se os clientes migrarem para o restaurante ao lado. Caso seja proibido de realizar a cobrança diferencial, nada impede que o administrador repasse essa diferença ao valor de todas as outras pizzas, inclusive das mais baratas – as preferencialmente escolhidas por consumidores de menor poder aquisitivo.
A atuação do Procon, além do mais, está em desacordo com o mais recente entendimento do Supremo Tribunal Federal. A Corte declarou inconstitucional lei do Estado do Paraná que regulamentava a cobrança em estacionamentos de veículos, determinando o pagamento proporcionalmente à fração de hora de efetiva estadia. A maioria dos Ministros votantes entendeu que a norma viola o princípio da livre iniciativa (artigos 1º, IV, e 170 da Constituição) ao realizar indevido controle de preços. O relator, Min. Gilmar Mendes, corretamente pontuou que a única forma admissível e efetiva de controle de preços é a concorrência. Sem prejuízo da inconstitucionalidade, lei semelhante editada no Rio de Janeiro causou aumento de preços de estacionamento no Estado. Também nesse caso, os custos fixos das operadoras de estacionamento não variam de acordo com o tempo que cada carro fica estacionado, de modo que serão repassados ao consumidor, de um jeito ou de outro.
Há farta literatura econômica condenando a interferência governamental na fixação de preços. Como aponta Richard Posner, mesmo nos setores da economia com forte intervenção governamental sob o pretexto de evitar monopólios naturais, a regulação de preços é falha: em períodos de inflação estável ou decrescente, tem pouco efeito nos níveis de preço e lucros, demonstrando ser incapaz de controlar monopólios; em períodos de inflação alta, os lucros podem se depreciar abaixo do nível competitivo. Se as tarifas forem muito altas, os consumidores serão induzidos a adquirir substitutos que podem custar à sociedade mais para produzir; se forem muito baixas, consumidores serão desestimulados da aquisição de produtos alternativos cuja produção pode custar menos à sociedade. O professor da Universidade de Stanford (EUA) Jeffrey Pfeffer, analisou diversos estudos empíricos, elaborados por autores renomados como o prêmio Nobel George Stigler e o professor da UCLA Harold Demsetz, para investigar os efeitos da regulação de preços no mercado de consumo. Com evidências dos setores elétrico, ferroviário, de aviação e de fretamento terrestre, nos EUA e no Canadá, restou demonstrado que os preços ao consumidor não sofreram alteração ou aumentaram até 95% em comparação com a variação projetada em um cenário de livre mercado.
Consequentemente, dispositivos do Código de Defesa do Consumidor que proíbem “vantagem excessiva” ou “elevação de preços sem justa causa” somente prejudicam consumidores, fornecedores e a sociedade como um todo.
6. Como o Código de Defesa do Consumidor atrapalha a sua vida ao ser abusivo.Ao lado das restrições relacionadas ao preço, o Código de Defesa do Consumidor limita a organização de negócios condenando outras condutas que denomina como “práticas abusivas”. Em todos os casos, a lei se vale de cláusulas vagas (“justa causa”, “usos”, “costumes”, “prevalecer-se da fraqueza” etc.), gerando imensa insegurança jurídica e conferindo poder indevidamente excessivo a fiscais e burocratas. Como afirmado anteriormente, insegurança jurídica tem preço e é pago por todos os consumidores.
E a ambiguidade do texto não é o único problema. A lei contempla regras absolutamente incompatíveis com uma República que se diz fundamentada na livre iniciativa (art. 1º, IV, da Constituição), relativizando temerariamente o direito de propriedade privada e a liberdade de configuração empresarial. Normas como as que impedem comerciantes de recusarem vendas ou prestação de serviços (art. 39, II e IX, do CDC) parecem transportadas diretamente de regimes de planificação da economia, como o venezuelano. Por lá, a intervenção sufocante do governo no setor econômico causou escassez – e então, colocou-se a culpa no empresariado, acusado de esconder estoques para boicotar o regime. A estatização da produção, sob esse pretexto, gerou filas e desabastecimento, conduzindo o país com as maiores reservas de petróleo conhecidas no mundo a uma terrível crise humanitária. Em um livre mercado, recusa de fornecimento não deve ser preocupação nem para o governo, nem para o consumidor, que pode muito bem dirigir-se ao concorrente e obter produto ou serviço análogo, salvo se impedido por restrições criadas pelo Estado.
A proibição de venda casada (art. 39, I, do CDC) é outro exemplo de restrição arbitrária da livre iniciativa. A lei condena não apenas “condicionar o fornecimento de produto ou de serviço ao fornecimento de outro produto ou serviço”, mas também o estabelecimento de condições, “sem justa causa, a limites quantitativos”.
É o que pode ser visto no vídeo acima, em que um Deputado Federal exige em um supermercado de São Paulo a venda de apenas uma unidade de papel higiênico, papel toalha e palito de fósforo, rasgando os pacotes que continham mais de uma unidade do produto e chamando a polícia. Sob essa lógica, não apenas fornecedores são proibidos de vender produtos sem ofertarem igualmente aos clientes cada unidade isolada da composição do item, mas também não podem se negar a comercializar bens na quantidade desejada pelo consumidor. Um caroço de feijão fora do pacote, um fio de algodão separado da roupa, um transistor destacado de aparelhos eletrônicos. Não há limites legais para a imaginação do que pode ser exigido de um comerciante.
Só que tudo tem um preço. O oferecimento de produtos a granel, em quantidades fracionárias ínfimas, demanda uma logística de cadastramento, controle, acondicionamento, exposição, fiscalização e cumprimento de burocracias governamentais, cujos custos podem não se justificar em razão da baixa demanda. Sem barreiras de entrada, a tendência é o surgimento de estabelecimentos dedicados a suprir as vontades desses poucos consumidores que desejam comprar ínfimas quantidades ou itens destacados, cobrando o preço correspondente à estrutura necessária para tanto. Em grandes redes, cuja competição não permite o luxo de sustentar estruturas desnecessárias, isso não faria sentido. Do contrário, todos os consumidores pagarão mais caro.
A configuração do modelo de vendas é um importante elemento da empresa. Oferecer um bem em conjunto com outro pode sim ser a forma de fazer com que consumidores se familiarizem com um novo produto da marca, ou com o de um parceiro comercial. Se a tática der errado, a única consequência negativa será para o próprio empresário, com a perda de clientes e de receita. Se der certo, em ampla concorrência, é porque os consumidores gostaram do formato.
A arbitrariedade ocorre quando alguém pretende a venda forçosa, da forma que desejar, de um bem produzido e titularizado por outra pessoa. Como no caso em que um indivíduo ajuizou demanda judicial para obrigar o restaurante McDonald’s a vender em separado um brinquedo oferecido como brinde no “McLanche feliz”. Qual seria o grande dano à dignidade do consumidor, considerando a sua liberdade de comprar os mais variados brinquedos em lojas especializadas? Absolutamente nenhum. Para a sociedade, houve o dano de custear uma ação judicial que resultou na condenação ao pagamento de R$ 1.
Paradoxalmente (mais uma vez), o próprio legislador prejudica o consumidor, obrigando estabelecimentos a realizarem vendas casadas. No Rio de Janeiro, por exemplo, uma lei determina que bares e restaurantes do estado sirvam gratuitamente água filtrada aos seus clientes. Não importa se o consumidor consumirá ou não a água: por força da lei, o seu valor será incluído na conta. Qualquer tipo de despesa incorrida por um empresário é suportada pelos clientes. A lei impõe, por essa razão, uma verdadeira venda casada, da qual ninguém poderá se livrar. Associações de “proteção” ao consumidor, inclusive, afirmam que a obrigação vale pro país inteiro e pode ser extraída diretamente do Código de Defesa do Consumidor, que qualifica como prática abusiva “recusar atendimento às demandas dos consumidores (…) de conformidade com os usos e costumes” (art. 39, III). Não fosse suficiente, já existe um projeto em curso na Câmara Municipal do Rio de Janeiro para obrigar estabelecimentos a servirem também xícara de café “gratuitamente”. Ou seja: para fazer populismo, políticos não parecem ver qualquer problema em vendas casadas.
7. Ok, mas e agora?Ao longo do texto, procurei demonstrar que as técnicas legislativas atualmente adotadas no Brasil não foram capazes de garantir ao consumidor o respeito merecido e devido. Por isso, um modelo moderno de proteção ao consumidor deve abandonar o foco no direito legislado, responsável por inúmeras falhas regulatórias danosas a toda a coletividade. A alternativa é conferir primazia à atuação eficiente de mecanismos de mercado, com ênfase em substitutos privados para a regulação.
Imagine-se uma sociedade na qual o Estado não assume o papel de guardião dos consumidores, sem regulações, garantias e punições – mas também sem barreiras artificiais de entrada. Pode-se cogitar de como se comportariam o consumidor e o fornecedor comuns nesse cenário. A primeira reação esperada dos consumidores seria a elevação da cautela, em autoproteção. Eles seriam mais exigentes antes de fechar negócio: demandariam provar amostras, teriam preferência pela locação em vez da compra, recusariam pagamentos antecipados, insistiriam na previsão de um direito de arrependimento, etc. Se há demanda (ainda que por direitos negociados), o natural é que haja oferta. Essas exigências induziriam competição entre as empresas para o oferecimento de benefícios como sinal de qualidade. Algo similar ao que ocorre quando uma empresa se propõe a pagar as penalidades contratuais impostas pelo concorrente caso os clientes migrem durante o período de fidelidade – um competidor ofereceu vantagens para a assinatura de um plano com vinculação, enquanto outro apresentou condições ainda melhores para o desfazimento do vínculo. Outros fornecedores apresentam uma forma mais sutil de vinculação: programas de fidelidade. E consumidores escolhem o formato que lhes parecer mais favorável.
Em face de consumidores mais céticos, fornecedores seriam ainda mais zelosos com suas reputações. Na sociedade de informação, sairiam na frente aqueles que prestassem o melhor atendimento possível, para incentivar a criação de uma boa fama por recomendações. Avaliações pela internet já são um mecanismo essencial de intercâmbio de informações entre consumidores. Fortalecer a marca por esse meio tende a ser mais efetivo e barato que pelos meios tradicionais de propaganda.
Bom exemplo é o que ocorre no mercado de restaurantes: dificilmente alguém demanda judicialmente a devolução do valor pago por uma refeição. O cliente maltratado simplesmente não retorna e ainda repassa a informação depreciativa a outros, incentivando a melhoria dos serviços prestados e a extinção de estabelecimentos ineficientes.
Plataformas de avaliação também competem entre si quanto à eficácia, assim como certificadores privados de excelência, qualidade e procedência (ISO, Fairtrade International – FLO, Cruelty Free International e outros), reduzindo sensivelmente assimetrias de informação. A corrupção de avaliadores por fornecedores pode ocorrer, mas envolve alto risco à reputação de ambos no caso de descoberta. Tudo isso forma um sistema de proteção ao consumidor sem a intervenção de leis consumeristas.
Da mesma forma, aumentariam a quantidade, a eficiência e a confiabilidade de reguladores privados. O eBay já realiza essa função: presta seguro para compradores, oferece mediação e arbitragem online, pune usuários que violam termos do serviço, fornece meios de pagamento e muito mais. O mesmo papel é desempenhado por plataformas de economia compartilhada como Uber e AirBnb. Todos competem no “mercado da confiança”, na linha do que Richard Posner denominou “regulação como um produto”, fornecendo ambientes regulatórios mais eficientes que os do governo por diversas razões:
1. no governo, não há incentivos de performance, pois seus agentes geralmente não são pagos em razão do desempenho;
2. agentes públicos são influenciados por questões políticas ou interesses de carreira;
3. governos não dispõem de ferramentas tão avançadas quanto as do setor privado para a obtenção e o processamento de informações;
4. o zelo pela reputação gera incentivos eficientes na iniciativa privada.
As próprias redes de varejo podem servir de reguladores quanto à cadeia de produção. Para atender à preocupação social de seus clientes, o Walmart fiscaliza seus fornecedores para combater o trabalho escravo e assegurar a observância de padrões de higiene e qualidade (Global Food Safety Initiative – GFSI). Sem contar a importância regulatória dos seguros privados, que estabelecem parâmetros a serem observados pelos segurados para a prevenção de acidentes e fiscalizam a sua observância.
Logo se percebe que, quando o governo sai de cena, não reina o caos. Mais que isso: no dia-a-dia, consumidores já dependem de muito mais que a proteção legal para o seu bem-estar. Por essas razões, o professor da Universidade de Chicago Omri Ben-Shahar afirma que consumidores seriam beneficiados se não contassem sequer com a possibilidade de cumprimento forçado de contratos em caso de inadimplemento. O autor propõe a aplicação dos denominados “contratos de mão- única” na área consumerista: contratos que seriam exigíveis somente em face dos consumidores, não dos fornecedores. Não seriam, portanto, contratos propriamente ditos, visto que apenas uma das partes teria obrigações. Na verdade, isso já ocorre na grande maioria dos negócios de consumo: consumidores não têm interesse, tempo, recursos ou conhecimento para reclamar da violação dos termos contratados. Ações coletivas, normalmente ajuizadas por órgãos estatais de tutela do consumidor, também são pouco úteis, já que em geral os lesados sequer tomam ciência da sua existência.
Se contratos e mandamentos legais são incapazes de atender aos interesses dos consumidores, Ben-Shahar sugere que ambos sejam eliminados, preservando-se apenas a força jurídica dos contratos de seguro e a proteção contra atos fraudulentos, como cobrança a maior. A consequente cautela dos consumidores fomentaria o oferecimento de mais e mais garantias por parte dos fornecedores. A remoção do mecanismo “protetivo” estatal potencializaria a eficácia dos mecanismos privados de proteção aos consumidores, proporcionando a estes um cenário de efetiva salvaguarda de interesses.
A realidade inegável é que a competição faz pelo consumidor muito mais que qualquer legislador ou agente público bem intencionado poderia fazer. A mudança urgente e necessária para a pronta melhoria da situação dos consumidores é a eliminação das barreiras governamentais à livre competição. Nada causa mais prejuízo aos consumidores que a recorrente submissão dos detentores do poder político a grupos de poder, os quais introduzem regras favoráveis aos seus negócios para o aumento dos lucros futuros a níveis superiores aos esperados em um ambiente puramente competitivo. Ao benefício neles concentrado, corresponde um enorme prejuízo disperso por toda a população em termos de serviços piores por preços maiores. Como dizia o prêmio Nobel Milton Friedman:
“Muitos querem que o governo proteja o consumidor. Um problema muito mais urgente é proteger o consumidor do governo.”
Fonte:
http://spotniks.com/sim-o-codigo-de-defesa-do-consumidor-atrapalha-e-muito-a-sua-vida-e-a-dos-mais-pobres/