Os Evangélicos e a Política6 Por protestantismo de imigração referimo-nos fundamentalmente ao luteralismo, implantado no Brasil (…)
27Embora os evangélicos, com seu trabalho assistencial e educacional, participem, de alguma forma, da vida pública nacional desde a sua implantação no país, a saber: os protestantismos de imigração e de missão, a partir do século XIX, e o pentecostalismo, a partir da primeira década do século XX6, a sua presença na política institucional é um fenômeno da Nova República. De fato, por ocasião da Primeira República (1889-1930), a presença protestante na política nacional é quase nula [Freston, 1993]. Já na Era Vargas (1930-1945) houve o primeiro e talvez o mais importante pronunciamento político já realizado por líderes evangélicos brasileiros, que se mobilizaram em reação ao estreitamento das relações entre o governo Vargas e a Igreja Católica. Tal pronunciamento, chamado «Memorial», lançado em maio de 1932, foi articulado sobretudo por líderes presbiterianos, e nele constavam reivindicações típicas da tradição laica, do liberalismo e de uma social-democracia da época: voto secreto, justiça popular, rápida e gratuita, completa laicidade do Estado e do ensino oficial, absoluta liberdade de manifestação de pensamento, educação popular obrigatória, promoção do pacifismo, etc.
28A Constituinte de 1934 marcou a estréia dos protestantes na política nacional, favorecida pela nova legislação eleitoral e impulsionada pelas pretensões católicas. Ou seja, o ingresso protestante na política nacional ocorreu até certo ponto em reação à intenção católica do momento de re-catolicizar a sociedade e o Estado. Mas, nessa Constituinte, a presença protestante se resumiu a um único parlamentar, Guaracy Silveira, um paulistano, pastor metodista, que se dizia socialistacristão, eleito praticamente pelo eleitorado evangélico. Ele foi reeleito para o Congresso em 1945, sendo, novamente, o único evangélico.
29Por ocasião das eleições de 1947, vários deputados estaduais e vereadores evangélicos lograram se eleger. O número de deputados permaneceu entre seis e doze até a legislatura que chega a 1987.
30Por ocasião do golpe militar de 1964, o posicionamento majoritário das igrejas evangélicas em relação ao regime foi semelhante ao da Igreja Católica. Mas, a partir de 1968, enquanto esta última, como vimos, retirou o seu apoio ao regime, as igrejas evangélicas, menos a Luterana, continuaram a sustentá-lo. Aliás, o próprio regime militar se aproximou do segmento evangélico na medida em que a Igreja Católica se posicionava criticamente em relação a ele. No entanto, houve líderes evangélicos que agiram fortemente contra o regime. É o caso do missionário presbiteriano Jaime Wright que, ao lado de D. Paulo Evaristo Arns, então arcebispo da arquidiocese de São Paulo, atuaram na defesa dos direitos humanos. Ambos organizaram e publicaram o livro «Brasil: nunca mais».
31Esse fato revela que, de forma semelhante ao que vimos em relação à Igreja Católica, não parece ter havido uma unanimidade de posicionamentos de parte das igrejas evangélicas e de seus líderes frente ao regime militar.
7 Ainda segundo Freston, as posições da maioria da bancada evangélica sobre o aborto, o homossexuali (...)
32A partir da Assembléia Nacional Constituinte de 1986, ou seja, após a redemocratização do país, os evangélicos ingressaram em maior número na política e ganharam visibilidade na política brasileira. Nessa ocasião, foi implantada no Congresso Nacional a chamada «Bancada Evangélica», uma bancada pluripartidária, composta de 33 membros, sendo 18 deles do ramo pentecostal. Segundo Pierucci, tal bancada atuou como um bloco corporativo na defesa da «maioria moral» e aliaram-se politicamente à direita [Pierucci, 1996, pp. 175 e ss]. Também Freston sublinha que o grupo evangélico manteve unidade em questões comportamentais (aborto, drogas, divórcio, homossexualismo), elegendo a família, mas também a mídia, como temas de grande interesse, caracterizando-se, ainda, pela ausência de crítica às autoridades e distância de questões sociais como a reforma agrária7. Porém, continua o autor, os evangélicos formaram menos uma «direita ideológica» e mais um «centro fisiológico» [Freston, 1993].
33Ainda relativamente à Constituinte de 1986, nota-se que a presença evangélica no Congresso Nacional se modificou com o ingresso de representantes de igrejas pentecostais que abandonaram o slogan «crente não se mete em política», e assumiram o slogan «irmão vota em irmão». Segundo Freston, tal mudança de orientação ocorreu especialmente às vésperas da Constituinte, mobilizando sobretudo a Assembléia de Deus, em razão de notícias, na forma de boato, que corria então nesse meio religioso, segundo as quais a Igreja Católica estaria articulando voltar a ser a religião do Estado e cercear a liberdade religiosa para as demais igrejas e religiões.
8 Nessas eleições, Fernando Collor de Mello venceu Luiz Ignacio Lula da Silva no segundo turno por 4 (...)
34A partir de 1989, os evangélicos se engajaram nas eleições majoritárias. As igrejas pentecostais, como Assembléia de Deus e Quadrangular, embora não tivessem apoiado explicitamente nenhum candidato no primeiro turno, inclinaram-se por apoiar Fernando Collor de Mello no segundo turno. Por sua vez, as igrejas Universal do Reino de Deus e Casa da Benção externaram, através de seus líderes, apoio a Collor já no primeiro turno. Pesou para o apoio a esse candidato a sua pregação contra a corrupção, suas promessas de mudança e sua imagem de pessoa «temente a Deus», diferentemente de Lula, que foi acusado de ser «ateu» e «comunista»8.
35Porém, nessas mesmas eleições, «setores progressistas» de algumas igrejas protestantes históricas formaram dezoito comitês evangélicos pró-Lula, espalhados em vários estados do país [Mariano e Pierucci, 1994, p. 92-106].
36Nas eleições de 1989, a representação evangélica no Congresso Nacional baixou para 22 deputados, dado interpretado dentro e fora das igrejas como uma reação do eleitorado evangélico ao tipo de atuação política (fisiológica e anti-ética, em alguns casos) levada a efeito por alguns parlamentares evangélicos na legislatura anterior.
9 Nessas eleições, Fernando Henrique Cardoso foi eleito com 54,3% dos votos válidos enquanto Luiz Ig (...)
37Por ocasião das eleições de 1994 os evangélicos novamente se dividiram nos apoios aos candidatos Fernando Henrique Cardoso e a Luiz Inácio Lula da Silva9. Junto a alguns segmentos pentecostais, especialmente a Universal, a campanha anti-Lula continuou nos moldes de 1989, repetindo em relação a ele os mesmos clichês de ser comunista, de ter a intenção de perseguir os evangélicos, de receber apoio da Igreja Católica e de freqüentar terreiros de Umbanda e Candomblé para pedir ajuda aos «demônios» [Campos, 2002]. Nessas eleições, apareceu forte junto à sociedade em geral, e ao próprio campo evangélico em particular, a força política da Universal, que, para tanto, contava com uma já bem montada rede midiática e muitos recursos financeiros.
38Nas mesmas eleições de 1994, a bancada evangélica no Congresso Nacional subiu novamente, agora para 31 deputados federais, dos quais 19 pentecostais e destes 6 da Igreja Universal do Reino de Deus. Também nessas eleições foram eleitos os senadores evangélicos Íris Rezende, pelo Estado de Goiás, e Benedita da Silva, pelo Rio de Janeiro, tendo ela sido a primeira mulher negra a se eleger para o Senado em toda a história do Brasil.
39Nas eleições presidenciais de 1998 se apresentaram novamente como candidatos, embora não sendo os únicos, Fernando Henrique Cardoso e Luiz Ignácio Lula da Silva, tendo o primeiro sido re-eleito, com 53,06% contra 31,71% de votos obtidos por Lula. Tal como nas eleições precedentes, foram organizados comitês agregando os evangélicos para ambos os candidatos. Leonildo Campos assinala que, mais uma vez, os evangélicos penderam majoritariamente para o lado de Fernando Henrique [Campos, 2002, p. 19]. Entretanto, é importante assinalar que, pela primeira vez, a Universal se mostrou mais simpática a Lula, publicando em seu jornal Folha Universal entrevistas e frases favoráveis ao candidato do PT. É possível que com essa atitude a Universal quisesse manifestar suas reservas em relação a Fernando Henrique, devido a certas medidas tomadas durante o seu primeiro mandato e consideradas por ela como desfavoráveis [Campos, 2002].
40Nas eleições de 1998 foi eleita para o Congresso Nacional a maior «bancada evangélica» vista até então na história do Brasil, com 53 deputados. Nas mesmas eleições de 1998, a Universal elegeu 26 deputados nas assembléias legislativas de 18 estados da federação [Fonseca, 1998, p. 20].
41A partir desse êxito político da Universal, P. Freston escreveu, ainda em 1999, que a Universal «representa uma força que desequilibra o meio evangélico e começa a polarizá-lo», precisando ser levada em consideração sempre que se discutir a relação entre protestantismo e política» [Freston, 1999, p. 329-340]. Os fatos ocorridos nos anos posteriores confirmaram o acerto dessa afirmação. Por exemplo, um ano mais tarde, Conrado escreveu, acerca da Universal, que ela constitui uma força política na vida pública brasileira a que «o campo político não pode mais ficar alheio» [Conrado, 2000, p. 77].
10 Vale recordar que, nessas mesmas eleições, a esposa de Garotinho, a também evangélica Rosinha Math (...)
11 Nas eleições presidenciais de 2002, Lula venceu com 61,39% dos votos válidos contra 38,7% de Jose (...)
42Por ocasião das eleições presidenciais de 2002, dirigentes da Universal, assim como de parcela importante de líderes religiosos do campo evangélico, mas não sua unanimidade, expressaram, durante a campanha do primeiro turno, seu apoio ao também evangélico Anthony Garotinho, do Partido Socialista Barasileiro (PSB), o primeiro candidato evangélico a participar de uma campanha à Presidência da República. Mas como Garotinho não foi eleito para o segundo turno – ele recebeu a significativa, mas não suficiente, votação de 15 175 729 votos, ou seja, 17,87% dos votos10 – para o segundo turno a Universal se inclinou a apoiar Lula, o mesmo acontecendo com Anthony Garotinho, que declarou o seu apoio ao candidato do PT já na largada do segundo turno. Por seu turno, o candidato José Serra se mobilizou pessoalmente para obter o apoio das Assembléias de Deus, bem como da Quadrangular11.
43Ainda nas eleições majoritárias de 2002, vale registrar que a «bancada evangélica» saiu ainda mais fortalecida, com 59 parlamentares, sendo 23 deputados filiados às Assembléias de Deus, 22 vinculados ou apoiados pela Universal, 8 das igrejas batistas e os demais de outras denominações. Também no Senado houve um aumento de evangélicos. Agora são quatro: Marina Silva (Partido dos Trabalhadores-Acre), Bispo Marcelo Crivella (Partido Liberal-Rio de Janeiro), Magno Malta (Partido Liberal-Espirito Santo) e Paulo Otávio (Partido da Frente Liberal-Distrito Federal). Atualmente a bancada evangélica transformou-se em «Frente Parlamentar Evangélica» e seu líder é o deputado federal, da Assembléia de Deus, Adelor Vieira, do PMDB de Santa Catarina.
44Hoje, passados praticamente 20 anos da formação da primeira «Bancada Evangélica» no Congresso Nacional, um balanço de sua atuação mostra que ela não constitui um grupo político coeso. Segundo Fonseca, são raros os temas e as votações em que se pode perceber a existência de uma unidade evangélica. Ela aparece em assuntos ligados à moral, como a discussão em torno do aborto e da união civil dos homossexuais. Mas, continua Fonseca, «uma análise do comportamento do congressista evangélico mostra que esta “bancada” (evangélica) é um mito» [Fonseca, no prelo].
45Igualmente, hoje é prudente também se relativizar a questão da posição político-ideológica da «bancada evangélica». A. Corten mostra que ela foi tida geralmente como «de direita e conservadora». Porém, frisa esse autor, em verdade ela não é mais conservadora do que a média da população. E, especificamente sobre o pentecostalismo, esse autor afirma que ele «… não é nem mais nem menos conservador do que a igreja católica» [Corten, 1997, p. 18].
46O mais recente acontecimento envolvendo a Universal ocorreu no início de 2005, a saber: a fundação de um partido político. Inicialmente chamado de Partido Municipalista Renovador, em outubro de 2005 seu nome foi mudado para Partido Republicano Brasileiro. Segundo a Folha de São Paulo, edição de 13/01/2005, «o crescimento do PL (que abriga o maior número de deputados ligados à igreja), que teria diminuído o poder de influência da Universal na sigla, e as resistências de outras legendas a aceitarem seus candidatos estão entre as causas apontadas para a criação da nova sigla».
47Concluindo este tópico sobre o ingresso dos evangélicos, especialmente dos pentecostais, na política brasileira, pode-se afirmar que ele resulta da conjunção de razões de ordem simbólica e de ordem prática. Ou seja, verifica-se, de um lado, uma leitura pentecostal da desmoralização e da deslegitimação da política, visível nas inúmeras reportagens da imprensa acerca da corrupção, malversação de verbas públicas, apropriação, desvio e uso ilícito de dinheiro, tudo isso ocorrendo, na ótica pentecostal, em razão da atuação das «forças do mal» na política, mas que eles têm condições de enfrentar e superar através de um poder infinitamente superior de que são detentores: o poder do Espírito Santo. Mas, de outro lado, o ingresso evangélico-pentecostal na política também resulta da tomada de consciência da sua importância numérica e do seu capital político, o que os conduz a reivindicar igualdade de tratamento recebido do Estado pela Igreja Católica, em termos de recursos públicos, apoio a seus projetos e programas sociais. Assim sendo, esses políticos estariam reproduzindo uma semelhante lógica corporativa que prevalece junto a outros setores sociais.
48Seja como for, hoje no Brasil, e na América Latina, como acertadamente afirma Dodson, o pentecostalismo desafia o estereótipo construído sobre ele de ser passivo e indiferente em relação à sociedade e mesmo hostil em relação à política [Dodson, 1997, p. 34-36].
https://journals.openedition.org/cal/7951#tocto1n2