Censurar filmes até deixá-los "limpos" é um
negócio em expansão nos Estados Unidos
O QUE ELES NÃO QUEREM VER
Prisioneiros judeus nus em A Lista de Schindler e Brad Pitt prestes a enfiar a espada num inimigo em Tróia: cenas cortadas dos DVDs da empresa CleanFlicks, de Utah
Titanic sem a nudez de Kate Winslet, O Resgate do Soldado Ryan sem o sangue deixado nas praias da Normandia, Coração Valente sem o derrière de Mel Gibson, Shrek sem as brincadeiras apimentadas: é assim que, agora, milhares de americanos assistem a filmes em DVD. Inaugurada no início da década como um negócio de fundo de quintal na cidadezinha de Orem, em Utah, a empresa CleanFlicks (ou Filmes Limpos) está se tornando uma potência graças à prática de extirpar dos filmes que aluga as cenas de sexo e violência, os palavrões e o que mais possa ofender sua clientela. A CleanFlicks já é, também, motivo de grande preocupação para a indústria do entretenimento. Primeiro porque seu sucesso ultrapassou as fronteiras do universo mórmon, que ela atendia de início. Suas filiais hoje estão em vários estados, e outras empresas similares vêm explorando o filão – como a ClearPlay, que em vez de picotar os filmes coloca filtros especiais nos seus DVDs para que o espectador possa bloquear sons ou imagens indesejados. Segundo, porque o processo que os estúdios moviam contra a CleanFlicks por violação de propriedade intelectual foi para o brejo. O chamado Ato do Filme Familiar, promulgado em abril pelo governo americano, endossa atividades como a da CleanFlicks em prol da moral e dos bons costumes.
É comum que as fitas ganhem versões "familiares" para exibição em aviões ou na televisão aberta – mas sempre por meio de contrato com os produtores, que determinam até onde é possível mexer em seus filmes. A CleanFlicks não pede licença a ninguém para mudar o conteúdo de obras que não lhe pertencem – e agora, graças ao avanço da direita religiosa nos Estados Unidos, será difícil puni-la pelo enxerimento. Os DVDs "limpos" são só mais um sintoma desse avanço. Desde que um seio da cantora Janet Jackson ficou a descoberto por alguns segundos, numa transmissão de TV ao vivo em 2004, o cerco vem se apertando sobre aquilo que muitos americanos julgam imoral no entretenimento. O ritmo é de escalada: de 111 queixas registradas em 2000 pela Comissão Federal de Comunicações, saltou-se para 500.000 só durante o "Janetgate".
Como as leis não definem com clareza o que é ou não indecente mas as multas para os infratores podem chegar a milhões de dólares, a indústria vive hoje em clima de paranóia – e de autocensura. No fim do ano passado, o seriado E.R. chegou a cortar uma tomada do torso nu de uma paciente octogenária, por temor de ser acusada de lascívia. Nos Estados Unidos de hoje, esse não é um medo irracional. Indagado pelo jornal The New York Times sobre a razão de ter suprimido de A Lista de Schindler cenas em que os prisioneiros dos campos de concentração apareciam despidos, Ray Lines, o fundador da CleanFlicks, argumentou que o filme era educativo e deveria ser assistido por todo adolescente – mas isso não era razão para que suas sete filhas tivessem de ver "velhos pelados correndo por aí".
http://veja.abril.com.br/051005/p_120.html