Autor Tópico: Carregando a cruz  (Lida 468 vezes)

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Offline Snake

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Carregando a cruz
« Online: 06 de Outubro de 2005, 20:35:57 »
06/10/2005
Carregando a cruz
Dois artigos e um editorial na edição impressa da Folha sobre a presença de crucifixos nos tribunais brasileiros provocaram uma enxurrada de cartas de leitores. É engraçado como temas com pouca ou nenhuma conseqüência prática, mas que fazem referência direta a princípios despertam a paixão das pessoas.

E, já que esta coluna não se furta a abordar temas polêmicos, analisemos o problema dos crucifixos. A exemplo do juiz Roberto Arriada Lorea e do editorial, sou pela abolição das cruzes em nossas cortes. A argumentação é simples, quase axiomática. O Estado democrático é laico. Espaços públicos que não museus e assemelhados não devem ostentar nenhuma espécie de adorno religioso, sob pena de violar o inciso VI do artigo 5º da Constituição, que estabelece a plena liberdade de culto. A sociedade brasileira não é composta apenas por católicos e cristãos --e há até algumas denominações protestantes que rejeitam o crucifixo como idolatria. Representantes de outras religiões, agnósticos e ateus podem sentir-se constrangidos com a exibição ostensiva de cruzes em locais de julgamento. De resto, pelo menos desde 1891, quando ocorreu a separação entre Estado e igreja no Brasil, não faz nenhum sentido manter ícones católicos em edifícios tão caracteristicamente republicanos como são os tribunais.

Os argumentos desenvolvidos pelos que defendem a permanência dos crucifixos me pareceram bastante fracos. De algum modo, todos tentaram atribuir à imagem do Cristo crucificado um valor que transcende a esta ou àquela religião e se reveste de caráter ético universal. Nada mais falso.

Em termos estritamente objetivos a cruz foi um dos métodos de execução mais populares entre os séculos 6 a.C. e 4 d.C. Era utilizada por romanos, persas e egípcios, entre outros. Se alguém ousasse propor que as paredes de nossos tribunais fossem adornadas por forcas, guilhotinas ou cadeiras elétricas provocaria a justa indignação de boa parte da opinião pública. Ora, nós simplesmente deixamos de ver a cruz como um instrumento de execução apenas e justamente porque ela se tornou o símbolo maior do cristianismo, caráter que lhe é indissociável. Ainda que se queira apregoar que ela representa também padrões morais observados por todas as religiões --tese que precisaria ser provada--, como o fez o desembargador José Renato Nalini, essa seria uma característica absolutamente secundária diante do peso religioso que a imagem adquiriu.

Além disso, afirmar que existe um núcleo ético que é abraçado por todas as religiões é um argumento insuficiente para as exigências de um Estado democrático. Afinal, nós agnósticos e ateus também somos filhos de Deus, e não deveríamos ser desconsiderados como cidadãos apenas porque não achamos que a existência de Deus possa ser demonstrada racionalmente ou porque preferimos julgá-Lo uma criação humana a nos considerarmos obra divina. Se existe uma ética universal, ela precisa ser deduzida da razão e, sendo puramente intelectual, dispensaria o auxílio de símbolos que fazem apelo à emoção.

O grande Carlos Heitor Cony também tentou fazer uma defesa da cruz. Disse que ela deveria ser mantida em nossas cortes porque "esfrega em nossa cara, na cara dos juízes, promotores, advogados e réus, um dos maiores erros judiciários de todos os tempos". Será?

Calma, antes que me tachem de Anticristo e resolvam me mandar para a fogueira, devo dizer que classifico a condenação de Jesus, a quem sempre considerei "um bom rapaz judeu" que defendia belas idéias, como injusta, mas isso não significa que a pessoa errada tenha sido levada a julgamento ou que todas as acusações apresentadas contra ele fossem falsas. Freqüentemente são as próprias leis que se afiguram como injustas. Nesse caso, aplicá-las é algo que produz injustiça, mas que não deveria ser tecnicamente qualificado como erro judiciário.

A condenação de Jesus lembra-me um pouco a de Sócrates, que também foi sentenciado à morte de maneira que hoje consideraríamos injusta. As acusações usadas foram as de negar os deuses da cidade e corromper a juventude. Não temos informações neutras sobre o processo. As fontes que chegaram até nós (Platão e Xenofonte) são todas visceralmente pró-Sócrates, mas o mais provável é que o filósofo tenha sido condenado por difundir idéias pouco simpáticas à democracia, de acordo com a interessante interpretação de I.F. Stone em seu "O Julgamento de Sócrates" (1988). O juízo do filósofo ocorre em 399 a.C., logo depois de dois sangrentos golpes --o de 411 a.C. e o de 404 a.C.-- que, por algum tempo, lograram suspender o regime democrático ateniense. Nessa leitura, a condenação faria parte de um processo de expurgos em defesa da democracia, hipótese em que o processo se torna menos paradoxal e quem sabe até menos "injusto". (Precisamso nesses casos tomar muito cuidado para não incorrer em anacronismo, aplicando a tempos pretéritos juízos morais formulados hoje).

Voltando a Cristo, poucos aspectos da vida de Jesus dividem tanto os especialistas como a sua condenação. Para os que se fiam a uma leitura mais próxima dos Evangelhos, Jesus foi acusado pelo Sinédrio, espécie de Suprema Corte judaica, de blasfêmia (declarar-se messias e filho de Deus). Mas, como os judeus estariam impedidos pelos romanos de impor a pena capital a quem quer que fosse, o caso teria sido levado à autoridade romana (Pôncio Pilatos), diante de quem a acusação original teria sido acrescida da de conspirar contra César (pretender-se "rei dos judeus"). O próprio Pilatos teria querido libertar o Cristo --o que os judeus prontamente recusaram--, de modo que ele foi condenado e crucificado.

Estudiosos mais preocupados com fatos históricos do que com a integridade de livros canônicos --notadamente Paul Winter em seu clássico "O Julgamento de Jesus" (Berlim, 1961)--, contudo, apontam uma série de incongruências nessa história. Para começar, o Sinédrio podia perfeitamente condenar à morte qualquer judeu que quisesse. Um dos segredos da longevidade do império romano foi interferir o mínimo possível sobre a administração local. Não haveria, portanto, a necessidade de remeter o processo à autoridade romana.

De resto, o próprio fato de Jesus ter sido crucificado (uma punição de romanos e não de judeus, que preferiam o apedrejamento) é altamente sugestivo de que leis romanas e não judaicas tenham sido aplicadas. E as leis romanas eram especialmente implacáveis para com os acusados de subversivos, descrição que poderia sem muita dificuldade recair sobre Jesus. Não são poucos os historiadores que o aproximam do partido dos zelotes, judeus radicais que combatiam a presença romana por julgá-la incompatível com a soberania do Deus de Israel.

Do ponto de vista dos resultados, vê-se retrospectivamente que Roma não estava tão errada assim. O movimento lançado por Jesus revelou-se um inimigo bem mais perigoso para o império do que todas as ações de guerrilha dos zelotes. Uma interpretação possível até é a de que o cristianismo finalmente derrotou a todo-poderosa Roma no dia em que Constantino converteu a si mesmo e ao império à religião fundada por Jesus. Dali a alguns séculos seria a Igreja Católica quem perseguiria implacavelmente os seus "subversivos".

À luz dessa tirada histórica, até podemos, como Cony, continuar sustentando que a condenação do Cristo foi um "erro judiciário", se, de modo pouco técnico, tomarmos a expressão como sinônima de "injusta". Mas é preciso também considerá-la como um abuso que ocorreu no contexto de uma campanha sem trégua para eliminar a oposição política ao "statu quo". Voltando aos crucifixos, não creio que seja o caso de pendurar nas paredes de nossas cortes símbolos análogos ao da caveira do Esquadrão da Morte, ainda que seja com o intuito de denunciar essa prática.

A profusão de argumentos tíbios e até mesmo enganosos levantados com o intuito de conservar as cruzes nos tribunais é tamanha que fico me perguntando o que as pessoas teriam contra paredes nuas.

Que não entendam essa minha posição anticrucificial como uma restrição à liberdade religiosa. Indivíduos têm o direito de portar os símbolos que bem entenderem. (Contrariando meus instintos anticlericais, escrevi no ano passado a coluna "Depois do véu, a barba", na qual me manifestei contrariamente à iniciativa do governo francês de proibir alunos da escola pública de freqüentar aulas usando véus islâmicos, crucifixos, estrelas de David e assemelhados). Mas o Estado não pode sair por aí pendurando representações de uma religião e não de outras, por maiores que tenham sido no passado as ligações entre o país e Roma. Estado é Estado, igreja é igreja. Ou, nas palavras de um humilde judeu da Palestina, "Dai a César o que é de César, a Deus o que é de Deus".

   Hélio Schwartsman, 40, é editorialista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.

E-mail: helio@folhasp.com.br

http://www1.folha.uol.com.br/folha/pensata/ult510u214.shtml
Newton's Law of Gravitation:
What goes up must come down. But don't expect it to come down where you can find it. Murphy's Law applies to Newton's.

Offline Snake

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Re.: Carregando a cruz
« Resposta #1 Online: 07 de Outubro de 2005, 20:43:48 »
Ninguém leu o texto?  :(

Eu achei bom.
Newton's Law of Gravitation:
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Offline n/a

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Re.: Carregando a cruz
« Resposta #2 Online: 07 de Outubro de 2005, 23:50:08 »
Eu li. Gostei bastante.  :)

Aliás, gosto do Hélio. Ele tem textos bons sobre temas polêmicos.

Offline Südenbauer

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Re.: Carregando a cruz
« Resposta #3 Online: 08 de Outubro de 2005, 03:38:12 »
Nem precisa comentar, todos textos dele são muito bons.

 

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