Bem, depois de tantas referências que fez o Nigh†mare por
aqui, num momento de inspiração, tasquei isso aqui no word: minha primeira crônica.
Comentários, sugestões e críticas bem-vindos.
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Dúvida10 de outubro, 2005Saía da igreja um tanto mais calmo, assim como fazia e se sentia todos os domingos. Enquanto caminhava, pensou no que o padre havia dito e gritado por trás do pequeno altar que segurava imponentemente a bíblia aberta. O padre falava sobre a importância de Deus, como qualquer padre falaria, mas mais especificamente, de como devemos nos entregar ao seu deus, para só assim encontrar salvação. Continuou com como tudo nesta vida era supérfluo e passageiro e que verdadeira paz só seria encontrada por aqueles que acreditassem e louvassem. Deixando escapar saliva por sobre a bíblia aberta sobre o altar, gritou que conhecimento verdadeiro vinha do SENHOR, que costumava ser escrito todo em maiúsculas, e que conhecimento terreno era coisa animal e diabólica, e ressaltou Tiago.
Mas, de repente, parou. Freqüentava a igreja regularmente e era devoto desde pequeno. Sempre rezava antes de dormir e matinha uma bíblia que sua mãe lhe dera no criado-mudo. Mas acabava de perceber que nunca realmente pensou seriamente sobre seu deus, salvo momentos de desespero, e meio que por culpa, o fez.
Pensou e repensou cada palavra dita pelo padre que gritava passagens e interpretações da bíblia, como de costume nos domingos às nove da manhã. Achou estranho o padre tê-lo chamado de diabólico, mesmo que através de Tiago, que nada tinha a ver com a história. Pensou que a maior parte do conhecimento que vinha do céu – que era supostamente conhecimento verdadeiro – só falava do próprio céu, ou do que fazer para chegar lá, e viu seu pensamento cair em redundância. Percebeu que Deus era egocêntrico, e pensou em parar de escrever Seu nome, e principalmente referências ao seu nome, em maiúsculas.
Percebeu que nunca havia parado para pensar sobre a promessa divina, o céu. Parou e pensou que talvez prometer o céu fosse uma metáfora para prometer qualquer coisa que ele imaginasse. Parou para pensar no que lhe fora prometido e percebeu que deus, além de egocêntrico, não cumpria suas promessas.
Pensou também que, para o caso da promessa celestial ser algo mais do que uma metáfora, não gostava do muito prometido. Sempre imaginava o céu como um grande campo de nuvens até onde a vista alcançava e percebeu que nunca via alma alguma quando imaginava o céu. Tentou imaginar anjos, mas lhe pareceu muito clichê.
Imaginou um inferno, saído de filmes e jogos de videogame, que costumava jogar nas horas vagas. Vários demônios, cada um com uma aparência diferente, saídos de jogos e histórias diferentes, batalhavam sobre o título de verdadeira imagem demoníaca. Achou esse jogo muito ruim, e parou de pensar nele.
Imaginou que talvez alguns dos seus amigos estivessem fadados a serem coadjuvantes naquele videogame, e pensou que nunca mais os veria de novo quando clamasse casa própria nas nuvens. Lembrou-se do que, em certa missa, o padre cuspira que tudo é deixado para trás quando passamos ao reino dos céus, inclusive o conhecimento, e pensou que se não iria se lembrar de ter conhecido Roberto, não ressentiria sua estadia infernal.
Percebeu que tudo aquilo lhe soava estranhamente, por falta de palavra melhor, estranho. Percebeu que nada daquilo fazia sentido. Percebeu que não havia pedido nenhuma daquelas promessas.
Percebeu que sonhava o sonho de outra pessoa.
Pensou que realmente não queria uma casa eterna num lote do campo infinito de nuvens, e não pode evitar pensar em Cidade de Deus, que nada tinha a ver com a história. E, ao voltar ao assunto em questão, teve certeza que a talvez-metáfora não fazia sentido, e de que sua casa após sua morte teria alguns centímetros a mais do que seus um metro e oitenta de altura, não o deixaria abrir os braços mesmo se pudesse e, feita de madeira, não teria portas ou janelas.
Sentiu-se enjoado.
Pensou no seu deus, anjos e nuvens egocêntricos. Pensou no padre que lhe cuspia palavras por sobre o altar todos os domingos, sem falta. Pensou que jamais recuperaria as incontáveis horas que gastara no banco da igreja, mesmo que muitas vezes cochilando, em respeito a um ser supremo, que sequer tivera a bondade de agradecer pela inconveniência.
Percebeu que dedicara grande parte de sua vida e pensamentos ao amigo imaginário de alguém que nunca conheceu, ao amigo imaginário que nunca fora
seu amigo. Percebeu que era o filho bastardo de um deus que nunca conheceu.
Pensou que, afora a promessa do seu lote na terra das nuvens, não lhe ocorria motivos para esperar seu tempo acabar e se sentiu pior.
Desesperou-se.
Gritava pragas e maldições aos céus e seus habitantes quando chegou, correndo e em lágrimas, em casa.
Não agüentava mais. Se cansou das mentiras infundadas e seus promessas ignoradas. Se cansou da terra de nuvens e dos demônios dos videogames. Se cansou do padre que cuspia e de seu deus egocêntrico.
Mas, no auge do desespero, parou. O padre novamente lhe voltou à cabeça. Falava solenemente que Jesus também tinha costume de testar os fiéis. Até hoje não se decidira sobre se Jesus era Deus ou só filho dele, mas ruminou as palavras do padre mesmo assim.
Obra de Jesus ou de Satanás, algo de diferente estava acontecendo. Pensou no porque de nunca ter pensado essas coisas antes e decidiu que deveria ter um motivo, e imaginou que o motivo talvez fosse divino. E resolveu parar de pensar.
Então guardou a fria navalha, que o tocava relutante, ainda sem perfurar a pele.
Lembrou-se de que, há muito tempo, viu num filme, ou talvez em mais de um, que o suicídio era o pior pecado que o homem poderia cometer e sorriu.
Agradeceu à Deus e, naquela noite, dormiu tranqüilo.