O medo final das explicações biológicas da mente é que elas possam privar nossa vida de significado e propósito. Se somos apenas máquinas para permitir que nossos genes produzam cópias de si mesmos, se nossas alegrias e satisfações não passam de eventos bioquímicos que algum dia cessarão para sempre, se a vida não foi criada para um propósito superior e dirigida para um objetivo nobre, então por que continuar vivendo?
Esse medo existe em duas versões, a religiosa e a secular. Uma versão sofisticada da preocupação religiosa foi formulada pelo papa João Paulo II em um pronunciamento à Pontifícia Academia das Ciências: "A verdade não pode contradizer a verdade". O papa reconheceu que a teoria da evolução de Darwin é "mais do que apenas uma hipótese" porque descobertas convergentes em muitos campos independentes, "não buscadas nem forjadas", testemunham em seu favor. Mas erigiu uma barreira diante da "alma espiritual", uma transição na evolução dos humanos equivalente a um "salto ontológico" inobservável pela ciência. O espírito não poderia ter emergido "das forças da matéria viva", pois isso não pode "fundamentar a dignidade da pessoa":
O homem é a única criatura na Terra que Deus quis a bem de si mesma[...] Em outras palavras, O individuo humano não pode ser subordinado como um puro meio ou um puro instrumento, seja da espécie, seja da sociedade; ele tem valor por si mesmo. Ele é uma pessoa. Com seu intelecto e sua ,vontade, ele é capaz de formar uma relação de comunhão, solidariedade e altruísmo com seus semelhantes [...] O homem é chamado a entrar em uma relação de conhecimento e amor com o próprio Deus, uma relação que verá sua completa consumação além do tempo, na eternidade. [...]
É em virtude de sua alma espiritual que a pessoa em sua totalidade possui essa dignidade até mesmo em seu corpo. [...] Se o corpo humano tem sua origem em matéria viva preexistente, a alma espiritual é diretamente criada por Deus. [...] Conseqüentemente, as teorias da evolução que, de acordo com as filosofias que as inspiram, consideram o espírito emergente de forças da matéria viva ou um mero epifenômeno dessa matéria são incompatíveis com a verdade sobre o homem. Também não são capazes de fundamentar a dignidade da pessoa.
Em outras palavras, se os cientistas estiverem certos quando afirmam que a mente emergiu de matéria viva, teremos de abrir mão do valor e dignidade do individuo, da solidariedade e desprendimento em relação a nossos semelhantes e do propósito superior de realizar esses valores através do amor a Deus e do conhecimento de seus planos. Nada nos livraria de uma vida de desumana exploração e cínico egocentrismo.
Nem é preciso dizer que debater com o papa é o supremo exercício de inocuidade. O objetivo desta seção não é refutar as doutrinas papais, nem condenar a religião ou argumentar contra a existência de Deus. As religiões vêm proporcionando consolo, comunidade e orientação moral a inúmeras pessoas, e alguns biólogos afirmam que um deismo refinado, para o qual muitas religiões estão evoluindo, pode ser compatibilizado com uma compreensão evolucionista da mente e da natureza humana. Meu objetivo é defensivo; refutar a acusação de que uma visão materialista da mente é inerentemente amoral e que as concepções religiosas devem ser favorecidas porque são inerentemente mais humanas.
Obviamente, nem mesmo os cientistas mais ateístas defendem uma amoralidade impiedosa. O cérebro pode ser um sistema físico feito de matéria comum, mas essa matéria é organizada de modo a originar um organismo sensível com capacidade para o prazer e a dor. E isso, por sua vez, prepara o cenário para o surgimento da moralidade. A razão é sucintamente explicada nos quadrinhos de Calvin e Haroldo [Calvin and Hobbes] (ver p. 262).
O felino Hobbes, como seu xará humano, mostrou por que ser um egoísta amoral é uma posição insustentável. Ele tem mais vantagem se nunca for jogado na lama, mas não pode exigir que outros não o joguem se ele próprio não estiver disposto a abrir mão de jogar os outros. E como temos mais vantagem não jogando e não sendo jogados do que jogando e sendo jogados, compensa fazermos questão de um código moral, mesmo se o preço for ter de acata-lo nós mesmos. Como salientaram filósofos morais de todos os tempos, uma filosofia de vida baseada em "Não para todo mundo, só para mim!" desmorona tão logo a pessoa se vê de um ponto de vista objetivo como um indivíduo exatamente igual aos outros. É como insistir em que "aqui", o ponto no espaço que se está ocupando no momento, é um lugar especial no universo.
A dinâmica entre Calvin e Haroldo (os personagens dos quadrinhos) é inerente a organismos sociais, e há razões para crer que sua solução - um senso moral - evoluiu em nossa espécie em vez de precisar ser deduzida da estaca zero por cada um de nós depois de sairmos da lama. Crianças de apenas um ano e meio já dão brinquedos espontaneamente, oferecem ajuda e tentam consolar adultos ou outras crianças que estão visivelmente aflitos. Pessoas de todas as culturas distinguem o certo do errado, têm um senso do que é justo, ajudam umas às outras, impõem direitos e obrigações, acreditam que os agravos têm de ser compensados e condenam o estupro, o assassinato e certos tipos de violência. Esses sentimentos normais primam pela ausência nos indivíduos aberrantes que chamamos de psicopatas. Portanto, a alternativa à teoria religiosa da fonte de valores é que a evolução nos dotou de um senso moral, cuja esfera de aplicação nós expandimos no decorrer da história por meio da razão (entendendo a permutabilidade lógica entre nossos interesses e os das outras pessoas), do conhecimento (aprendendo as vantagens da cooperação no longo prazo) e da compreensão (passando por experiências que nos permitem sentir a dor de outras pessoas).

Calvin:
- Não acredito mais em ética.. No que me diz respeito os fins justificam os meios... Agarre o que puder enquanto vale a pena
- É o que eu digo! O direito está na força! Os vencedores escrevem a história!
- É um salve-se quem puder, por isso farei o que tenho que fazer, e os outros que fiquem discutindo se é "certo" ou não.
(Hobbes empurra Calvin na lama)
Calvin:
- Por que fez isso????
Hobbes:
- Por que você estava no meu caminho. Agora não está mais. Os fins justificam os meios.
Calvin:
- Eu não disse que era para todo mundo, seu bocó, só para mim.
Hobbes:
- AHH...
Como podemos saber qual teoria é preferível? Um experimento mental pode confrontar as duas. O que seria certo fazer se Deus ordenasse às pessoas que fossem egoístas e cruéis em vez de generosas e bondosas? Quem tem os valores arraigados na religião teria de dizer que deveríamos ser egoístas e cruéis. Quem se baseia em um senso moral diria que deveríamos rejeitar a ordem de Deus. Isso mostra - espero - que é nosso senso moral que merece prioridade.
Esse experimento mental não é apenas um desafio de lógica como aqueles tão ao gosto de ateus pré-adolescentes, que perguntam, por exemplo, por que Deus prestaria atenção ao modo como nos comportamos se ele pode ver o futuro e já sabe. A história da religião sabe que Deus ordenou que pessoas cometessem todo tipo de atos cruéis e egoístas: massacrar os midianitas e raptar suas mulheres, apedrejar prostitutas, executar homossexuais, queimar bruxas, executar hereges e infiéis, jogar protestantes pela janela, negar remédio a crianças moribundas, vandalizar clínicas de aborto, caçar Salman Rushdie, explodir o próprio corpo em mercados e lançar aviões contra edifícios. Lembremos que até Hitler pensava estar executando a vontade de Deus. A recorrência de atos perversos cometidos em nome de Deus mostra que não se trata de perversões aleatórias. Uma autoridade onipotente que ninguém pode ver é um esteio útil para líderes mal-intencionados ansiosos por recrutar combatentes devotos. E como as crenças que não se prestam a comprovação têm de ser transmitidas pelos pais e pelo grupo de iguais em vez de descobertas no mundo, elas diferem de grupo para grupo e se tornam distintivos que identificam e dividem.
E quem disse que a doutrina da alma é mais humana que a compreensão da mente como um órgão físico? Não vejo dignidade em deixar pessoas morrerem de hepatite ou serem devastadas pelo mal de Parkinson quando a cura pode estar em pesquisas sobre as células-tronco que movimentos religiosos se esforçam para proibir porque empregam bolas de células que deram o "salto ontológico" para "almas espirituais". Causas de imenso sofrimento como o mal de Alzheimer, depressão grave e esquizofrenia serão aliviadas não tratando o pensamento e a emoção como manifestações de uma alma imaterial, mas como manifestações da psicologia e da genética.
Finalmente, a doutrina de uma alma que vive depois de morto o corpo não tem nada de justa, pois necessariamente desvaloriza nossa vida na Terra. Quando Susan Smith afogou seus dois filhos pequenos no lago, * apaziguou sua consciência racionalizando que "meus filhos merecem o melhor, e agora o terão". Alusões a uma existência feliz depois da morte são típicas nas últimas cartas de pais que tiram a vida dos filhos antes de suicidar-se, e recentemente fomos lembrados de como tais crenças encorajam homens-bombas suicidas e seqüestradores camicases. É por isso que devemos rejeitar o argumento de que se as pessoas pararem de acreditar na retribuição divina farão o mal com impunidade. Certo, se os não-crentes pensassem que poderiam escapar ao sistema legal, ao opróbrio de sua comunidade e à própria consciência, não seriam dissuadidos pela ameaça de passar a eternidade no inferno. Mas também não seriam tentados a massacrar milhares de pessoas pela promessa de passar a eternidade no paraíso.
* Crime cometido em 1995 em Union, Carolina do Sul. Susan Smith, abandonada pelo companheiro, vendo-se sem meios de sustentar os dois f1lhos pequenos, trancou-os em seu carro enquanto dormiam e lançou-o no lago. (N. T.)
Mesmo o conforto emocional de uma crença na vida após a morte pode ser uma faca de dois gumes. A vida perderia o propósito se deixássemos de existir quando nosso cérebro morresse? Ao contrário: nada dá mais significado à vida do que a percepção de que cada momento de sensibilidade é uma dádiva preciosa. Quantas brigas foram evitadas, quantas amizades se renovaram, quantas horas deixaram de ser desperdiçadas, quantos gestos de afeição foram oferecidos porque às vezes nos lembramos de que "a vida é curta"?
Por que os pensadores seculares temem que a biologia dissipe o significado da vida? É porque a biologia parece esvaziar os valores que mais prezamos. Se a razão de amarmos nossos filhos é que um jorro de oxitocina no cérebro nos impele a proteger nosso investimento genético, a nobreza de ser pais não seria solapada, e seus sacrifícios não perderiam o valor? Se a compreensão, a confiança e a ânsia de justiça evoluíram como um modo de ganhar favores e dissuadir trapaceiros, isso não implicaria que na realidade o altruísmo e a justiça não existem por si mesmos? Escarnecemos do filantropo que lucra com sua doação graças às deduções nos impostos, do televangelista que deblatera contra o pecado mas procura prostitutas, do político que defende os desfavorecidos só quando há câmeras por perto e do sensível homem new age que apóia o feminismo porque é um bom modo de atrair as mulheres. A psicologia evolucionista parece estar dizendo que somos todos hipócritas dessa laia, o tempo todo.
O medo de que o conhecimento científico mine os valores humanos me faz lembrar a cena inicial de Annie Hall [Noivo neurótico, noiva nervosa, na tradução em português], na qual o jovem Alvy Singer foi levado ao médico da família:
MÃE: Ele anda deprimido. De repente, não consegue fazer nada.
MÉDICO: Por que está deprimido, Alvy?
MÃE: Conte ao doutor Flicker. [Responde por ele] Foi uma coisa que ele leu.
MÉDICO: Uma coisa que ele leu, hein?
ALVY: [Cabisbaixo] O universo está se expandindo.
MÉDICO: O universo está se expandindo?
ALVY: Ora, o universo é tudo, e se está se expandindo, um dia irá se romper e será o fim de tudo!
MÃE: E o que você tem com isso? [Para o médico] Ele parou de fazer o dever de
casa.
ALVY: De que adianta?
A cena é engraçada porque Alvy confundiu dois níveis de análise: a escala de bilhões de anos na qual medimos o universo e a escala de décadas, anos e dias com a qual medimos nossa vida. Como argumentou a mãe de Alvy: "O que o universo tem a ver com isso? Você está aqui no Brooklyn! O Brooklyn não está se expandindo!".
As pessoas que se deprimem com a idéia de que nossos motivos são egoístas estão tão confusas quanto Alvy. Confundiram causação última (por que algo evoluiu pela seleção natural) com causação próxima (como a entidade funciona aqui e agora). A confusão é natural porque as duas explicações podem ter muita semelhança.
Richard Dawkins mostrou que um bom modo de compreender a lógica da seleção natural é imaginar que os genes são agentes com motivos egoístas. Não se deve menosprezar sua metáfora, mas ela contém uma armadilha para os incautos. Os genes têm motivos metafóricos - fazer cópias de si mesmos - e os organismos que eles estruturam têm motivos reais. Mas não são os mesmos motivos. Às vezes a coisa mais egoísta que um gene pode fazer é instalar motivos altruístas em um cérebro humano - desprendimento sincero, puro, profundo. O amor pelos filhos (que transmitem nossos genes à posteridade), por um cônjuge fiel (cujo destino genético é idêntico ao nosso) e por amigos e aliados (que confiam em nós se formos confiáveis) pode ser ilimitado e irrepreensível quando estamos falando em nós, humanos (nível próximo), mesmo se metaforicamente for egoísta quando estamos falando em genes (nível último).
Desconfio que existe outra razão para as explicações serem tão facilmente confundidas. Todos sabemos que às vezes as pessoas têm motivos inconfessados. Podem ser publicamente generosas mas gananciosas na vida privada, publicamente piedosas mas cínicas na vida privada, publicamente platônicas mas lúbricas na vida privada. Freud acostumou-nos à idéia de que motivos inconfessados permeiam o comportamento, exercendo seus efeitos a partir de um estrato inacessível da mente. Combinando isso com o equívoco comum de que os genes são um tipo de essência ou cerne da pessoa, temos um híbrido de Dawkins e Freud: a idéia de que os motivos metafóricos dos genes são os motivos profundos, inconscientes, inconfessados da pessoa. Isso é um erro. O Brooklyn não está se expandindo.
Mesmo quem consegue manter genes e pessoas separados em sua mente pode acabar deprimido. A psicologia nos ensinou que aspectos de nossa experiência podem ser fantasias, criações baseadas no modo como a informação é processada no cérebro. A diferença essencial entre nossa percepção do vermelho e nossa percepção do verde não reflete nenhuma diferença essencial nas ondas luminosas no mundo - os comprimentos de onda da luz, que originam nossa percepção de tom, formam um continuum regular. Vermelho e verde, percebidos como propriedades qualitativamente diferentes, são construções da química e dos circuitos de nosso sistema nervoso. Poderiam estar ausentes em um organismo com diferentes fotopigmentos ou conexões cerebrais; de fato, os portadores da forma mais comum de daltonismo são justamente um exemplo desse tipo de organismo. E a coloração emocional de um objeto é tão fantasiosa quanto sua coloração física. A doçura da fruta, o pavor de altura e o nojo da carniça são fantasias de um sistema nervoso que evoluiu para reagir a esses objetos de modos adaptativos.
As ciências da natureza humana parecem insinuar que o mesmo vale para certo e errado, mérito e demérito, beleza e feiúra, santidade e vileza. São construções neurais, filmes que projetamos no interior de nosso crânio, modos de estimular os centros de prazer do cérebro, tão sem realidade quanto a diferença entre vermelho e verde. Quando o fantasma de Marley perguntou a Scrooge porque duvidava de seus sentidos, a resposta foi: "Porque a menor coisa os afeta. Uma leve perturbação no estômago já os torna enganosos. Você pode ser um
pedaço de carne indigesto, um salpico de mostarda, uma migalha de queijo, um fragmento de uma batata malcozida. Você está mais para molho do que para morto, seja lá quem você for!". A ciência parece estar dizendo que o mesmo se aplica a tudo o que valorizamos.
Mas só porque nosso cérebro é aparelhado para pensar de certos modos não significa que os objetos desses pensamentos sejam fictícios. Muitas de nossas faculdades evoluíram para engrenar-se com entidades reais no mundo. Nossa percepção de profundidade é produto de um complexo conjunto de circuitos cerebrais, circuitos que inexistem em outras espécies. Mas isso não significa que não existem árvores e penhascos de verdade fora de nós, ou que o mundo é achatado como uma panqueca. E assim pode ser com entidades mais abstratas.
Os humanos, como muitos animais, parecem possuir um senso inato de números, que pode ser explicado pelas vantagens de raciocinar sobre numerosidade na decorrer de nossa história evolutiva. (Por exemplo, se três ursos entram numa caverna e dois saem, é seguro entrar?) Mas o mero fato de que uma faculdade numérica evoluiu não significa que os números são alucinações. Segundo a concepção platônica de número preferida por muitos matemáticos e filósofos, entidades como números e formas têm uma existência independente das mentes. O número três não é pura invenção; possui propriedades reais que podem ser descobertas e exploradas. Nenhuma criatura racional equipada com circuitos para entender o conceito de "dois" e o conceito de adição poderia descobrir que dois mais um é igual a outra coisa que não três. É por isso que esperamos que conjuntos semelhantes de resultados matemáticos surjam de diferentes culturas ou mesmo de diferentes planetas. Sendo assim, o senso numérico evoluiu para compreender verdades abstratas que existem sem depender das mentes que as compreenderam.
Talvez o mesmo argumento possa valer para a moralidade. Segundo a teoria do realismo moral, certo e errado existem e possuem uma lógica inerente que permite alguns argumentos morais e não outros. O mundo nos apresenta jogos de soma não-zero nos quais é melhor para ambas as partes agir sem egoísmo do que agir com egoísmo (é melhor não jogar e não ser jogado do que jogar e ser jogado na lama). Dado o objetivo de ficar na melhor situação, certas condições são necessariamente decorrentes. Nenhuma criatura dotada de circuitos para compreender que é imoral você me ferir poderia descobrir outra coisa além de que é imoral eu ferir você. Assim como ocorre com os números e o senso numérico, seria de esperar que os sistemas morais evoluíssem na direção de conclusões semelhantes em diferentes culturas ou mesmo em diferentes planetas. E, de fato, a Regra de Ouro foi redescoberta muitas vezes: pelos autores do Levítico e do Mahabharata, por Hillel, Jesus e Confúcio, pelos filósofos estóicos do Império Romano, pelos teóricos do contrato social como Hobbes, Rousseau e Locke, e pelos filósofos morais como Kant em seu imperativo categórico. Nosso senso moral pode ter evoluído para engrenar-se com uma lógica intrínseca da ética em vez de criá-la do nada em nossa cabeça.
Mas mesmo se a existência platônica da lógica moral for rica demais para nosso sangue, ainda podemos ver a moralidade como algo mais do que uma convenção social ou um dogma religioso. Independentemente de qual possa ser seu status ontológico, um senso moral é parte do equipamento padrão da mente humana. É a única mente que possuímos, e não temos escolha além de levar a sério suas intuições. Se somos constituídos de tal modo que não podemos evitar pensar em bases morais (ao menos parte do tempo e em relação a algumas pessoas), então a moralidade é tão real para nós quanto se houvesse sido decretada pelo Todo-Poderoso ou escrita no cosmo. E isso vale também para outros valores humanos, como amor, verdade e beleza. Poderíamos saber se eles realmente estão "lá fora" ou se apenas pensamos que estão porque o cérebro humano torna impossível não pensar que estão? E seria tão ruim se eles fossem inerentes ao modo de pensar humano? Talvez devamos refletir sobre nossa condição como fez Kant em sua Crítica da razão prática: "Duas coisas enchem a mente de admiração e reverência sempre novas e crescentes quanto mais freqüente e regular for nossa reflexão sobre elas: o céu estrelado nas alturas e a lei moral no íntimo".
Nos últimos quatro capítulos mostrei por que novas idéias das ciências da natureza humana não solapam os valores humanos. Ao contrário, apresentam oportunidades para aguçar nosso raciocínio ético e assentar esses valores em alicerce mais firme. Em poucas palavras:
• É má idéia dizer que a discriminação é errada só porque as características de todas as pessoas são indistinguíveis.
• É má idéia dizer que a violência e a exploração são erradas só porque as pessoas não são naturalmente inclinadas a ela.
• É má idéia dizer que as pessoas são responsáveis por suas ações só porque as causas dessas ações são misteriosas.
• E é má idéia dizer que nossos motivos são significativos em um sentido pessoal só porque são inexplicáveis em um sentido biológico.
Essas são más idéias porque fazem de nossos valores reféns da sorte, levando a crer que algum dia descobertas factuais poderiam torná-las obsoletas. E são más idéias porque escondem os aspectos negativos da negação da natureza humana: perseguição aos bem-sucedidos, engenharia social intrusiva, menosprezo do sofrimento em outras culturas, incompreensão da lógica da justiça e desvalorização da vida humana na Terra.