Autor Tópico: Células que salvam vidas  (Lida 526 vezes)

0 Membros e 1 Visitante estão vendo este tópico.

Offline Südenbauer

  • Nível Máximo
  • *
  • Mensagens: 10.297
  • Sexo: Masculino
Células que salvam vidas
« Online: 23 de Novembro de 2005, 19:51:49 »
Células que salvam vidas [/size]

No Brasil, um dos países mais avançados nas
pesquisas com células-tronco, centenas de
doentes já foram beneficiados por terapias à
base dos chamados "curingas da esperança"

Em setembro de 2001, num mergulho no mar de Ubatuba, no litoral de São Paulo, a vida do estudante Giuliano Fávero, então com 23 anos, mudou drasticamente. Um cálculo errado da profundidade da água fez com ele batesse com o peito no fundo. Imediatamente, o corpo parou de responder aos comandos do cérebro. Giuliano não sentia absolutamente nada do pescoço para baixo. Socorrido pela namorada e pelos pais, o rapaz foi levado para um hospital da região. O diagnóstico: fratura de duas vértebras da coluna cervical. Ele estava tetraplégico. Os meses seguintes foram de adaptação e preocupação. A saúde de Giuliano tornou-se frágil. Os resfriados eram constantes, bem como as escaras causadas pela falta de mobilidade. A família empenhou-se, então, numa busca frenética por médicos, fisioterapeutas e informações. A fisioterapia recuperou parte da sensibilidade das mãos. Então, pela internet, a mãe de Giuliano descobriu uma pesquisa com células-tronco da Universidade de São Paulo, voltada a pacientes com lesões na medula espinhal. Em 2003, ele foi um dos selecionados para receber um transplante de células-tronco extraídas de sua própria medula óssea. Hoje Giuliano recuperou parte da sensibilidade das pernas e dos dedos dos pés. Em 22 de outubro passado, com a ajuda de um andador, conseguiu esperar de pé, no altar, pela chegada da noiva, Audrei, a namorada que estava com ele no momento do acidente. "Sinto que essas conquistas foram possíveis graças às células-tronco", diz o rapaz.

Giuliano está entre os cerca de 300 brasileiros que já foram submetidos a experiências com células-tronco. De 1999 até hoje, a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) recebeu aproximadamente cinqüenta projetos para a aplicação terapêutica de células-tronco adultas. Os resultados positivos desse investimento colocam o Brasil numa posição de destaque internacional nesse campo, junto com países como Alemanha e França. O Brasil é pioneiro em estudos sobre insuficiência cardíaca, cirrose hepática e acidente vascular cerebral, entre outros. A área de pesquisa mais desenvolvida, por enquanto, é a cardiologia. A mira dos cientistas aponta para o tratamento da doença de Chagas e para a recuperação de áreas do coração afetadas por infartos, além da insuficiência cardíaca. Em junho deste ano, teve início o maior estudo brasileiro na área de cardiologia, financiado pelo Ministério da Saúde. Participarão do projeto 1.200 pacientes e cerca de quarenta centros de pesquisa de todo o Brasil, sob a coordenação do Instituto Nacional de Cardiologia Laranjeiras, no Rio de Janeiro. "Estamos num momento especial para o avanço das pesquisas com células-tronco", diz o cardiologista Hans Dohmann, um dos pioneiros no país em tratamentos com as células apelidadas de "curingas da esperança".

Outro campo de estudo que apresenta resultados impressionantes no Brasil é o relacionado a doenças auto-imunes, como diabetes tipo 1 e esclerose múltipla. Esses distúrbios são conseqüência de uma reação descompensada do sistema imunológico, que rejeita partes do próprio corpo. A terapia consiste em colher sangue da medula óssea do paciente e separar as células-tronco, que são armazenadas. O paciente é, então, submetido a sessões de quimioterapia, que aniquilam a produção de células de defesa. Depois disso, as células-tronco são reinjetadas no paciente e o sistema imunológico volta a funcionar normalmente, o que pode desacelerar a progressão da doença ou até mesmo reverter sintomas. Foi o que aconteceu com o enfermeiro paulista André Santos Ricardo, de 28 anos, que, no ano passado, descobriu ser vítima de diabetes tipo 1. Ele precisava de duas injeções diárias de insulina. André participou das pesquisas com células-tronco e, depois de passar pelo transplante, seu pâncreas começou a funcionar. As injeções de insulina tornaram-se parte do passado. "É uma sensação incrível de liberdade", diz ele.

Os resultados de várias pesquisas igualmente inovadoras começam a despontar. Recentemente, foram apresentados dados preliminares de trabalhos para a recuperação de nervos periféricos e de ossos na região próxima à boca, pelo uso de enxertos recheados de células-tronco. O primeiro estudo poderá beneficiar pessoas que perderam alguns movimentos por causa de um corte profundo, por exemplo. No segundo caso, o foco principal serão pacientes que tiveram perda óssea significativa no rosto, depois de traumas. Ao que tudo indica, o tempo de recuperação dos pacientes diminuiu em até 50%. Essas primeiras conquistas confirmam as expectativas acalentadas por médicos e pacientes. "É fácil vislumbrar a importância dessas células para o tratamento de doenças como Parkinson e esclerose múltipla ou lesões musculares e cerebrais no futuro", diz o hematologista Rodrigo Calado, pesquisador dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH), nos Estados Unidos.

Até que as células-tronco façam parte da rotina médica ainda existe um longo caminho a percorrer. "Os estudos desenhados até o momento não permitem, por exemplo, uma avaliação precisa do efeito terapêutico das células-tronco", diz a geneticista Mayana Zatz, da Universidade de São Paulo. Elas têm, teoricamente, o poder de se transformar nos mais diversos tipos de célula que formam o corpo humano, mas ainda não se conseguiu provar se elas tomam realmente a forma de uma determinada célula nem se funcionam como tal. No caso dos pacientes cardíacos e hepáticos, por exemplo, talvez elas apenas aumentem o aporte de sangue para o local, o que, por si só, poderia revigorar o funcionamento da região atingida. "Temos de ser prudentes, pois ainda há muitas incertezas", disse a VEJA Harold Varmus, geneticista americano, ganhador do Prêmio Nobel de Medicina, em 1989, por suas pesquisas em mecanismos moleculares de tumores e presidente do Memorial Sloan-Kettering Cancer Center, de Nova York, um dos mais respeitados centros de pesquisa sobre câncer do mundo. "Muitas pesquisas consideradas altamente promissoras no passado, como a terapia gênica, permanecem no plano do desejo e talvez nunca saiam de lá." Por enquanto, a única terapia com células-tronco de eficácia já totalmente comprovada é a de transplante de medula óssea ou cordão umbilical, para tratar casos de doenças do sangue, como anemias graves e alguns tipos de câncer.

A terapia com células-tronco baseia-se em conceitos relativamente simples. A idéia é induzi-las a se transformar num determinado tipo de célula e estimular sua multiplicação, para depois substituir tecidos ou estruturas físicas lesionados ou doentes. Até hoje, porém, não há controle completo sobre o ritmo de proliferação das células. É preciso encontrar uma espécie de lacre de segurança que impeça a multiplicação desenfreada. As células-tronco precisam se reproduzir em número suficiente para resgatar uma determinada função orgânica. No entanto, caso se dividam desenfreadamente, podem originar tumores.

Encontrar métodos eficazes para controlar os processos de diferenciação das células-tronco é outro desafio, assim como descobrir uma fórmula para evitar o risco de rejeição nos casos de uso de células-tronco de doador. Existem dois grupos de células-tronco: as embrionárias e as adultas. As primeiras são retiradas de embriões por volta do quarto dia depois da concepção, quando eles não passam de um amontoado de células indiferenciadas entre si. As adultas, por sua vez, são encontradas sobretudo no cordão umbilical e na medula óssea. Apesar de serem mais fáceis de obter, as células-tronco adultas apresentam algumas desvantagens. Elas estão disponíveis em menor quantidade e sua capacidade de diferenciação e multiplicação é inferior (veja quadro). Por questões de ordem prática e embates de caráter ético, as células-tronco adultas são as mais utilizadas. Quando obtidas a partir da medula do próprio doente, não há problema de rejeição. É o que acontece, por exemplo, nas experiências com pacientes cardíacos. Os médicos colhem células-tronco da medula óssea e as injetam no coração do doente. Quando, no entanto, elas são doadas, há o risco de o organismo do paciente rejeitá-las. Esse expediente é muito usado no tratamento de doenças do sangue, como a leucemia.

A pesquisa com células-tronco, sobretudo as embrionárias, está cercada de questionamentos éticos. Os religiosos alegam que a vida começa no momento da fecundação, enquanto a maioria dos cientistas acredita que o início da vida está relacionado à formação do sistema nervoso, cujos primeiros indícios aparecem catorze dias após a fecundação. Um país que deixe suas leis se guiarem pela primeira visão tenderá a impor restrições maiores aos estudos com células embrionárias. Nos Estados Unidos, por exemplo, o governo vetou o repasse de verbas federais para pesquisas desse tipo. A legislação restritiva dos EUA tem seu contraponto nas leis da Inglaterra e da Coréia do Sul – dois dos países mais liberais nesse campo. A legislação brasileira é considerada ponderada para o atual momento das pesquisas com células-tronco. No país, são permitidas pesquisas de base com células de embriões, mas apenas se oriundas de clínicas de fertilização, depois de três anos de armazenamento e com a autorização dos pais em potencial. Também é permitido o emprego de linhagens importadas.

No mês passado, duas pesquisas americanas com ratos de laboratório sinalizaram que a polêmica sobre o uso de células embrionárias talvez caduque no futuro. Uma delas possibilitou a extração de uma única célula-tronco sem danificar o embrião e, a partir dela, conseguiu-se criar outras células-tronco. A outra modificou a genética de embriões para tornar inviável sua implantação no útero – e portanto impossibilitá-los de originar vida. Também frutificam as pesquisas de um grupo coreano que criou células-tronco embrionárias clonadas a partir de material genético de pessoas doentes, o que evitará um dos principais perigos dos transplantes atuais: a rejeição.

Paralelamente a esse tipo de abordagem, cientistas continuam empenhados na busca de métodos alternativos para a obtenção de "matéria-prima". Um deles é a utilização de células retiradas da polpa de dentes de leite. "Esse tipo de célula-tronco adulta tem características semelhantes às das células embrionárias, como a facilidade de multiplicação e diferenciação, com a vantagem de ser de utilização mais segura", diz o pesquisador Ricardo Ribeiro dos Santos, da Fundação Oswaldo Cruz, da Bahia. Há quem aposte ainda na manipulação de células adultas para que elas entrem numa espécie de túnel do tempo e regridam ao estágio de célula-tronco embrionária. "Daqui a cinqüenta anos, não será preciso fecundar óvulos para gerá-las. Qualquer célula poderá dar origem a uma linhagem de células-tronco", diz Harold Varmus.

No mês passado, cientistas coreanos sob a batuta do geneticista Woo-Suk Hwang, professor da Universidade Nacional de Seul, na Coréia do Sul, inauguraram um consórcio internacional de células-tronco, o World Stem Cell Hub. Iniciativas como essa dão impulso à ciência – mas têm também um significado humano que se traduz na palavra esperança. A dona-de-casa paulista Martinha Cunha, de 48 anos, expressa bem a maneira como as células-tronco entram na vida de pessoas comuns. Vítima de esclerose múltipla, ela voltou a mexer o braço depois de um tratamento experimental. "Tive a sorte de desfrutar uma grande evolução da medicina", diz. "Minha esperança foi correspondida."

-------------------------------------------------------------

A polêmica coreana

O cientista sul-coreano Woo-Suk Hwang, professor da Universidade Nacional de Seul, destaca-se no universo das pesquisas com células-tronco. Alguns dos avanços mais ruidosos nessa área saíram do laboratório coordenado por esse veterinário e geneticista de 52 anos. Seu grupo foi responsável pela criação de células-tronco embrionárias a partir de células de pele de pessoas doentes. O estudo abre caminho para uma terapia à base de células-tronco embrionárias sem riscos de rejeição, já que a célula transplantada é geneticamente idêntica às do receptor. "Descortinamos um novo horizonte científico", disse a VEJA, na época, o cientista. Há duas semanas, no entanto, os parâmetros éticos do trabalho de Hwang foram postos em xeque. Um ex-parceiro, o pesquisador americano Gerald Schatten, da Universidade de Pittsburgh, acusou o cientista de comprar alguns dos óvulos usados em suas experiências, o que é proibido pela legislação coreana, e também de usar óvulos doados (possivelmente sob coação) por uma assistente. Hwang rebate as acusações. "Elas são infundadas e não comprometerão nossa pesquisa", disse Hwang, em entrevista a VEJA, na quarta-feira passada.


Fonte: Veja (21/11/05)

 

Do NOT follow this link or you will be banned from the site!