Mentira ou ignorância
André Petry
"Há médico que acha que a pílula do dia
seguinte é abortiva. Achar, quando se
trata de ciência, não basta. Há médico
que acha que o DIU dá câncer. Há
médico que acha que a vasectomia
causa impotência"
A deputada Angela Guadagnin, do PT paulista, é autora de um projeto que proíbe a distribuição da pílula do dia seguinte nos postos de saúde do país. A pílula do dia seguinte é um contraceptivo de emergência que, ingerido até 72 horas depois de uma relação sexual desprotegida, evita a gravidez indesejada. Mas a deputada Guadagnin, na justificativa de seu projeto, explica por que implicou com a pílula do dia seguinte: "Pode ser abortiva", diz ela.
Como assim? Ou a pílula tem efeito abortivo ou não tem. Não existe meio-termo, assim como não existe meia gravidez. A deputada Guadagnin, além de mulher, é médica, mas parece que, em vez de estudar um pouco o assunto, consumiu todo o seu tempo na faina vã de defender José Dirceu da cassação. Deu no que deu: Dirceu foi cassado e seu projeto é uma estupidez.
Os especialistas em reprodução humana dizem que a pílula do dia seguinte é um excelente anticoncepcional para situações emergenciais – é eficaz, é inofensiva, é barata e não é abortiva. Mas a deputada não se deu ao trabalho de ouvir quem entende do assunto. Nem consultou os documentos da Organização Mundial da Saúde. Bastaria entrar no endereço eletrônico da OMS na internet. Os documentos estão todos lá. Afirmam categoricamente que a pílula do dia seguinte não é abortiva e ainda recomendam sua adoção!
É verdade que há médicos, obstetras, ginecologistas que acham que o medicamento é abortivo. Mas achar, quando se trata de ciência, não basta. Achar é coisa de crença, de sentimento, de desejo. Há médico que acha que o DIU dá câncer, ora. Há médico que acha que a vasectomia causa impotência. Só que não existe evidência científica de que a pílula seja abortiva. Toda a evidência disponível informa que a pílula evita que o óvulo seja fecundado pelo espermatozóide – mas, se a fecundação já tiver ocorrido, a pílula não produz efeito. Essa é a verdade científica alcançada até hoje.
Guadagnin não está só no seu cientificismo rastaqüera. Antes dela, o prefeito Cesar Maia, do Rio de Janeiro, proibiu a distribuição da pílula nos postos de saúde da cidade, numa atitude em que ceifou um direito da mulher carioca só para reverenciar a Igreja Católica – aquela que tem ojeriza até à camisinha. Na Assembléia Legislativa de São Paulo, Valdomiro Lopes, do PSB, apresentou projeto idêntico: proíbe a distribuição da pílula em todas as cidades paulistas. Ouça-se o deputado e seus critérios rigorosos:
– Por que o senhor é contra a distribuição da pílula?
– Porque ela é abortiva.
– Mas os estudos científicos dizem o contrário. A OMS diz o contrário...
– Os estudos da OMS estão errados. Ela é abortiva, sim. Eu sou médico...
– O senhor saberia citar pelo menos um estudo científico afirmando isso?
– Ah, assim especificamente, eu não saberia dizer...
Pois bem, leitor. É com essa enorme dose de seriedade científica que se trata de um aspecto tão relevante da saúde pública no Brasil. É uma coisa tão acintosa que fica a dúvida: estamos diante da mentira ou da ignorância?