Da paixão ao amor... e à rejeição, artigo de Suzana Herculano-Houzel
A neurociência mostra o que há por trás dessa evolução. Mas tem certeza de que você quer mesmo saber?
Suzana Herculano-Houzel é neurocientista, professora e pesquisadora da UFRJ, e autora de “Sexo, Drogas, Rock'n' Roll & Chocolate” (Ed. Vieira & Lent) e “O Cérebro em Transformação” (Ed. Objetiva). Artigo publicado em “O Estado de SP”:
A neurociência perdeu o pudor.
Apoiada na ressonância magnética funcional, que permite vasculhar o cérebro acordado em busca de zonas ativadas ou desativadas conforme os pensamentos do dono, ela agora anda se metendo nos sentimentos mais nobres, subjetivos e pessoais de quem se voluntaria à ciência.
Há quem não goste dos resultados, que invadem a privacidade e mostram milimetricamente onde faíscas se acendem no cérebro quando ele vê a pessoa amada, admira fotos eróticas, ou mesmo tem um orgasmo (sim, sim, quem tem orgasmos é o cérebro).
Amor, paixão e desejo não deveriam ser quantificados ou parametrizados, muito menos explicados, reclamam alguns.
A antropóloga Helen Fisher discorda. Já em 1996, quando a ressonância funcional engatinhava, ela inaugurou uma linha de pesquisa que mantém até hoje, centrada numa única pergunta: por que nos apaixonamos?
Naquele ano, Helen e seus colaboradores consultaram, por questionário, 437 norte-americanos e 402 japoneses atrás de características universais da paixão.
E encontraram várias: para a grande maioria das 54 perguntas, não fazia diferença se o respondente era homem ou mulher, velho ou moço, hétero, homossexual ou outro, nem qual era sua etnia ou religião.
Para todos, o ser amado é igualmente perfeito e até seus defeitos são charmosos; ele se torna o centro do universo, o foco das atenções, em detrimento de trabalho, família e amigos, e isso alimenta o desejo de exclusividade e fidelidade.
A paixão pelo outro é involuntária e incontrolável; ele ocupa obsessivamente os pensamentos e desperta uma "energia intensa" na pessoa, que faz de tudo para ficar com ele e sente fissura pela sua presença, como se a paixão fosse um vício, uma verdadeira droga da qual se quer e se precisa cada vez mais.
E esta é a chave, segundo Helen. Em vez de ser considerada uma emoção específica, a paixão deveria ser entendida como um estado de motivação centrado em um objetivo particular: conquistar a fidelidade de um parceiro.
Os estudos com ressonância magnética funcional atestam a diferença.
Exibem imagens de ativação intensa, em resposta à visão do objeto da paixão, em estruturas que compõem um sistema especializado em cuidar da motivação:
o sistema de recompensa do cérebro, que nos faz sentir prazer e querer mais de tudo o que foi bom - drogas, sexo e paixão inclusive.
Os neurocientistas ingleses Andreas Bartel e Semir Zeki, pioneiros na área como Helen Fisher, já mostraram que basta a visão da pessoa amada para ativar o sistema de recompensa.
Como imaginar o objeto do desejo já é suficiente para dar uma "amostra grátis" do prazer por vir, essa ativação do sistema de recompensa justifica toda a importância e os sentimentos positivos e prazerosos associados ao parceiro, bem como a disposição para abrir, por mágica, buracos na agenda para estar na presença da pessoa especial.
Ao mesmo tempo, o chamado Circuito Social do cérebro, que nos permite avaliar social e moralmente pessoas e situações, parece ficar um tanto obnubilado.
Segundo eles, não é à toa que a paixão torna as pessoas perfeitas aos nossos olhos: o amor cega o cérebro, mesmo.
Helen Fisher agora volta à cena com uma nova pergunta: e o que acontece quando a paixão chega ao fim de um lado, mas não do outro?
"Você acaba de ser rejeitado amorosamente e não consegue se conformar?", perguntavam os cartazes que ela espalhou pelo campus da Universidade Rutgers, em New Jersey, EUA, onde trabalha.
Onze mulheres e seis homens responderam e foram selecionados, uma vez comprovado estarem inconsoláveis, e compareceram ao laboratório, em prantos, trazendo nas mãos uma foto do ex-parceiro.
Os resultados, apresentados em novembro na 35ª Reunião Anual da Sociedade de Neurociências norte-americana em Washington, DC, são bem claros: admirar a foto do ex-parceiro ainda desejado deixa o sistema de recompensa em polvorosa, com uma ativação intensa do núcleo acumbente, a estrutura central à motivação, semelhante àquela encontrada nos alcoólatras em tempos de abstinência ao verem um copo.
Não é à toa que, durante a fase de inconformismo, essas pessoas são capazes de tudo para reconquistar o amado.
(O que acontece quando o desespero passa, os parceiros abandonados dão a volta por cima e não querem mais ver o outro nem pintado? Isso terá de ficar para outro estudo, pois Helen pegou apenas o telefone dos voluntários, todos estudantes, no dormitório da universidade, e quando quis entrar em contato novamente todos já haviam se mudado... A ciência tem desses imprevistos, também.)
A paixão, correspondida ou não, seria não uma emoção, mas um estado motivacional um tanto peculiar, que conspira para nos jogar nos braços de um parceiro e nos segurar lá. Soa razoável. Mas Helen completa a frase:
"...ao menos até a inseminação".
Essa é a perspectiva da psicologia evolutiva, que busca um valor adaptativo nos comportamentos animais.
Há dezenas de livros a respeito, e Helen é autora de três deles, propondo que a paixão, a fidelidade, a obsessão pelo outro e o apego emocional são gerados pelo cérebro e favorecem a perpetuação dos genes que permitem esses comportamentos.
E pouco importa se você não quer ter filhos: a essa altura da evolução, os genes e as estruturas relevantes estão lá do mesmo jeito. Ainda bem.
Muitos reclamam de ter seus sentimentos escrutinizados pela ciência. Outros protestam indagando o que se ganha sabendo "onde" essas coisas acontecem no cérebro.
O que a neurociência faz, além de comprovar e sugerir mecanismos para o que o senso comum já sabia: que a paixão nos cega, nos torna obsessivos, nos tira do rumo?
Por outro lado, quanto não se perde da poesia, quando "eu te amo" passa a poder ser trocado por "meu núcleo acumbente quer muito ficar perto de você"?
Cada um que resolva por si, mas, se adianta alguma coisa, eu tenho umas sugestões. Muda bastante ter consciência de que seus circuitos sociais não funcionam muito bem quando se está apaixonado.
É, ao menos em teoria, bem conseqüente saber que um orgasmo pode bastar para que a pessoa que você leva para a cama comece a receber "tratamento especial" pelo seu sistema de recompensa.
Deve fazer bem a muitos casais saber que sexo e novidades, e por que não os dois juntos, são uma maneira garantida de ajudar a manter o sistema de recompensa feliz com o parceiro.
E, francamente, se é um punhado de neurônios nos lugares certos no meu cérebro e no do meu namorado que nos faz felizes, então que seja.
Saber o nome e a localização exata de todas as estruturas cerebrais que ficam hipnotizadas e me deixam extasiada na presença dele só me faz achar esse negócio todo de amor e de cérebro ainda mais improvável e maravilhoso.
Como se não bastasse se meter a "explicar" como e para que a gente se apaixona, Helen é também autora de um dos outros estudos que constataram o que todos sabem, mas ninguém gosta de ouvir:
a paixão é um estado transitório, que dura cerca de um ano e meio, às vezes mais, muitas vezes menos.
Alguns julgam a demonstração de como isso acontece no cérebro quase comparável a um crime contra a humanidade, contra o que ainda nos resta de romântico.
É verdade que a paixão amiúde se vai e deixa um vazio. Mas muitas vezes fica algo ainda mais lindo em seu lugar: o amor duradouro, a vontade de estar com aquele ser específico que mantém tantos humanos, arganazes-do-campo, macacos e araras unidos até que a morte os separe.
Um dia desses a neurociência ainda vai espalhar pelas universidades cartazes em busca de voluntários casados e felizes com seus cônjuges há mais de 10, 20, 50 anos.
Se eu estiver viva, tomara que até lá meu cérebro já tenha operado outra de suas mágicas, e eu possa ser a primeira a me voluntariar...
(O Estado de SP, 11/12)