Caio Navarro de Toledo - Outubro 2005
Uma singularidade do pensamento político contemporâneo – influenciado pelo chamado pós-modernismo – consiste na recorrente negação da validade da distinção entre esquerda x direita. Embora estas noções não tenham o rigor de conceitos teóricos, nem por isso devem ser dispensadas na medida em que podem balizar posições ideológicas e distinguir os interlocutores no debate político. Não sendo noções científicas, não deixam de ter um valor operacional ou pragmático. Como sagazmente observou o paraibano Suassuna, aquele que, enfaticamente, proclama o anacronismo das noções de esquerda e direita “normalmente é de direita”... Assim, duas observações iniciais podem ser feitas: no plano simbólico, a crítica de esquerda tem sido bem-sucedida, pois à palavra “direita”, hoje, são associados sentidos e conotações negativos. Por sua vez, no Brasil, nem o mais radical ideólogo ou político reacionário admite ser de direita.
Ao longo da história republicana brasileira, o pensamento de esquerda nunca desempenhou um papel relevante na definição das políticas de governo, não teve preponderância nas instituições estatais nem alcançou hegemonia no interior da chamada sociedade civil. No entanto, é indubitável que valores e ideais, típicos da tradição de esquerda, conquistaram um lugar importante no debate político contemporâneo. Neste sentido, pode-se afirmar que, no plano retórico, nenhum político de direita declara, abertamente, ser contrário à democracia política; de outro lado, em seus retóricos discursos, esses políticos se manifestam contra as mazelas da fome, da miséria e do desemprego, bem como não deixam de reconhecer o aprofundamento das desigualdades sociais no país. Assim, o ideal da justiça social e o valor das liberdades democráticas – bandeiras históricas das lutas populares e de esquerda em todo o mundo – não são, formalmente, ignorados pelo discurso da direita política brasileira.
No entanto, como o insuspeito filósofo liberal Bobbio reconhece, a ação política de direita nunca privilegia a realização de reformas sociais (visando a uma sociedade mais igualitária) e pouco faz para a expansão das liberdades políticas (na busca de uma democracia política mais consistente e menos formalista). Por sua vez, na oposição a governos progressistas (reformistas, não necessariamente de esquerda ou socialistas), os políticos e os ideólogos de direita – no Brasil e no conjunto da América Latina – defendem o status quo (a propriedade privada é “sagrada” e “inviolável”), opõem-se radicalmente à ampliação dos direitos sociais e à realização de mudanças socioeconômicas, repudiam a ativa participação dos movimentos sociais na cena política (as massas populares são consideradas ignaras, “infantis” ou “perigosas”, devendo, pois, serem tuteladas ou reprimidas), contestam as políticas (econômica e de relações internacionais) que buscam a soberania nacional ou uma menor dependência em relação às nações e Estados capitalistas hegemônicos, etc. Diante das iniciativas de governos reformistas (pejorativamente acusados de “populistas”), a direita civil promove maciças campanhas ideológicas – financiadas pelo capital nacional e estrangeiro – visando à desestabilização de legítimos governos constitucionais e, no limite, como “vivandeiras de quartel”, apelam para o golpe de Estado para defender a ordem capitalista e “salvar a democracia”.
De forma sintética e sumária, examinemos alguns momentos de nossa história política. Durante a breve vigência da Carta constitucional de 1946, o golpe de Estado sempre rondou a democracia brasileira, instituída com a queda do Estado Novo (1937-1945). Os porta-vozes civis do golpismo foram lideranças importantes de partidos de direita ou centro-direita, com amplo destaque para a União Democrática Nacional, partido cujos candidatos eram sempre derrotados nas eleições presidenciais. Tentativas golpistas (em 1954, 1955, 1956 e 1961) prepararam o cenário de 1964. O golpe civil-militar foi um movimento reacionário contra a realização das reformas sociais – entre as quais se destacava a reforma agrária – que interessavam a amplas parcelas da sociedade brasileira e uma ação contra a emergência de uma democracia política com uma maior e ativa participação popular.
Em abril de 1964, a direita civil e militar se instalou no poder de Estado. De imediato, os partidos políticos, sindicatos de trabalhadores, movimentos sociais populares, entidades de intelectuais, artistas, jornalistas, estudantes, etc. – de orientação progressista (reformista, socialista, nacionalista, humanista cristã, etc.) – foram severamente reprimidos ou extintos. Em 1968, o AI-5 radicalizou a natureza reacionária e conservadora do golpe de 64, com o apoio de significativos segmentos da sociedade brasileira.
Certamente, o país – em virtude de conjunturas econômicas internacionais favoráveis – não deixou de alcançar, nesses momentos, altas taxas de crescimento econômico enquanto empresas estatais foram criadas ou fortalecidas, companhias multinacionais ampliaram seus investimentos no país, as exportações foram diversificadas e ampliadas, etc. A política econômica dos militares, sob a direção da tecnoburocracia civil, consolidou o capitalismo associado-dependente inaugurado no governo JK. Por sua vez, os trabalhadores sofreram um permanente arrocho salarial, o desemprego cresceu após o chamado “milagre”, e os serviços de saúde, educação, saneamento, transporte, etc., em todo o país, foram altamente comprometidos. O país se endividou crescentemente comprometendo a soberania nacional. Nesse contexto, um general-presidente cunhou uma ambivalente frase: “a economia vai bem, mas o povo vai mal”.
Durante mais de 20 anos a direita foi dominante sem, contudo, alcançar a hegemonia política e cultural no interior da sociedade; a chamada “modernização conservadora” foi imposta sem a adesão das massas populares e dos trabalhadores. Enquanto nos tempos de Goulart buscava-se reformar o capitalismo, sob a direção dos militares e da direita civil chegamos a um autêntico “capitalismo selvagem” pois os direitos sociais foram sacrificados e as liberdades políticas reprimidas.
Na luta pela redemocratização, foram criadas e alimentadas as melhores expectativas de que – alcançada a democracia política – as mudanças socioeconômicas reivindicadas permitiriam um desenvolvimento econômico menos dependente em relação ao imperialismo bem como a atenuação das desigualdades sociais e regionais e a conquista da soberania nacional. A “redemocratização pelo alto”, com Sarney na chefia da “Nova República”, avançou em termos de liberdades políticas (a reforma partidária garantiu a presença de comunistas e socialdemocratas na cena política, greves se sucederam com participação das centrais sindicais recém-criadas, o processo constituinte teve ampla participação dos movimentos sociais populares, a censura aos meios de comunicação foi praticamente extinta, etc.). Tutelado pelos militares, o governo Sarney não se empenhou com as bandeiras reformistas do antigo MDB, inclinando-se gradativamente para a direita com o apoio decisivo do ultrafisiológico Centrão. A crise social se agravou (com a inflação alcançando o inédito índice de 80 % ao mês) sem que a democracia política alcançada ensejasse qualquer mudança social significativa para os trabalhadores e as camadas populares. O rotundo fracasso social do governo Sarney pavimentou a vitória de um aventureiro na primeira eleição direta para a presidência da República após o regime militar.
A partir de Collor, a ideologia neoliberal começou a orientar políticas de governos e foi incorporada por partidos políticos, movimentos sociais, meios de comunicação, intelectualidade, etc.; inclusive por aqueles setores que, na luta pela redemocratização, defendiam bandeiras reformistas. Fundamentado em pensadores conservadores (entre eles, Hayek, Mises, Friedman, Buchanan), que nunca esconderam suas simpatias por regimes de direita, o modelo econômico neoliberal aportará tardiamente no Brasil. Será no governo FHC que a política econômica neoliberal dará seus mais significativos passos no país. As prescrições do chamado “Consenso de Washington”, do FMI e do Banco Mundial serão dogmas e práticas efetivas da política econômica do governo do PSDB-PFL. Privatizações de empresas e serviços públicos, desregulamentação das relações de trabalho, abertura comercial e financeira ao capital internacional e ampla política de redução de gastos sociais foram aplicadas com o propósito de levar o país à sua “modernidade”.
Em 2002, um operário vinculado a um partido situado à esquerda do espectro político, foi eleito presidente da República. Embora a plataforma do candidato da aliança PT/PCdoB/PTB/PP/PL se apresentasse de forma mais moderada em relação às campanhas anteriores – como se evidenciou com a “Carta aos Brasileiros” de junho de 2002 –, o eleitorado apoiou maciçamente Lula da Silva pois acreditava que seu governo promoveria mudanças sociais e econômicas importantes no país. Quase três anos decorridos, o governo Lula frustrou amplamente os setores progressistas e de esquerda na medida em que adotou, em suas linhas mestras, um modelo econômico que, nos oito anos do governo FHC, agravou ainda mais as condições de vida dos trabalhadores e das camadas populares.
A política econômica comandada por Palocci e Meirelles, as alianças políticas à direita e os simbolismos conservadores reabilitados revelam que o governo Lula – tal como ocorreu em outros países da América Latina – longe está de realizar os valores e os ideais defendidos pela tradição de esquerda. Ao invés de privilegiar e fortalecer as demandas dos trabalhadores, a política econômica atual continua sendo eficaz para a manutenção dos interesses das classes dominantes, sobretudo dos setores financeiros e daqueles voltados para a exportação. A política econômica do governo Lula representa, sem meias palavras, uma capitulação diante dos conservadorismos econômico, político e ideológico hoje dominantes no mundo.
Lembremo-nos que foi o próprio presidente da República quem tomou a iniciativa de livrar-se da “acusação” de ser de esquerda. Em resposta a uma jornalista, fez questão de tranqüilizar possíveis críticos de seu governo: “eu nunca fui de esquerda”. Supondo estar acima de (supostas) vazias e ultrapassadas rotulações, o governante não deixou, assim, de se enredar na armadilha da direita...
Por ocasião da crise política, aberta com as denúncias de corrupção no PT e no executivo, pode-se perceber com clareza como relevantes agentes políticos, em função de seus interesses de classe, se comportaram em relação ao governo Lula. É incontestável que os partidos de oposição (de centro-direita e direita, tais como o PSDB e o PFL) e o “núcleo duro” da mídia conservadora procuraram tirar proveitos político-eleitorais da crise; a estratégia foi a de debilitar o PT e a candidatura de Lula em 2006. Mas, em contrapartida, esses mesmos setores preservaram a figura do presidente, posto que descartaram, in limine, a hipótese da abertura de um processo visando seu impedimento legal. Igualmente, as direções do PSDB e do PFL foram decididamente contrárias às convocações do Ministro da Fazenda e do presidente do Banco Central para deporem na CPI dos Correios. O objetivo dessa operação foi um só: a economia não deveria ser “contaminada” pela crise política. O conjunto da direita política brasileira (na qual se destacam lideranças como Sarney, FHC, ACM, Bornhausen, Delfim Netto, Maciel, Maia, Maluf, etc.), a grande mídia (Rede Globo, Veja, Época, O Globo, O Estado, etc.), os setores empresariais (capital financeiro, industrial, comercial, etc.) e os organismos internacionais (FMI, Banco Mundial) agiram em uníssono para evitar possíveis “turbulências de mercado”...
O conservadorismo, reacionarismo, elitismo e xenofobismo do pensamento de direita são, freqüentemente, obstáculos para se alcançar uma lúcida consciência da realidade social. No entanto, ao apoiar e aplaudir com entusiasmo a política econômica neoliberal de Lula/Palocci, a direita revela que nunca tem lhe faltado consciência de classe.
---------
Caio Navarro de Toledo é professor de Ciência Política da Unicamp e diretor associado do Centro de Estudos Marxistas (Cemarx), IFCH/Unicamp.