http://www.criticanarede.com/rel_hume1.htmlO argumento cosmológico
David Hume
O argumento que sustento, respondeu Demea, é o habitual. Tudo o que existe tem de ter uma causa ou razão da sua existência, uma vez que é absolutamente impossível que uma coisa se produza a si própria ou seja a causa da sua própria existência. Portanto, ao remontarmos dos efeitos às causas temos de percorrer uma sucessão infinita, sem absolutamente nenhuma causa próxima, ou temos de, por fim, recorrer a uma causa última que exista necessariamente. Ora, pode-se provar como se segue que a primeira suposição é absurda: na cadeia ou sucessão infinita de causas e efeitos, cada efeito singular é determinado a existir pelo poder e pela eficácia da causa que imediatamente o precedeu; mas a cadeia ou sucessão eterna completa, tomada em conjunto, não é determinada ou causada por nada e, no entanto, é evidente que requer tanto uma causa ou razão quanto qualquer objecto particular que comece a existir no tempo. Continua a ser razoável perguntar por que existe esta sucessão particular de causas desde a eternidade e não qualquer outra ou absolutamente nenhuma. Se não há um ser necessariamente existente, qualquer suposição que possa ser forjada é igualmente possível; e que nada tenha existido desde a eternidade não é um absurdo maior do que a existência desta sucessão de causas que constitui o universo. O que foi então que determinou que algo existisse em vez do nada e que conferiu a uma possibilidade particular a existência, excluindo as restantes? Pressupõe-se que não existem causas externas. O acaso é uma palavra sem significado. Foi o nada? Mas isso nunca pode produzir coisa alguma. Temos, portanto, de recorrer a um ser necessariamente existente, que traga em si mesmo a razão da sua existência e que não se pode supor não existir sem uma contradição explícita. Existe consequentemente um tal Ser, isto é, existe uma Deidade.
Não permitirei a Fílon, disse Cleantes (embora saiba que nada lhe dá mais prazer do que levantar objecções), que mostre a fraqueza deste raciocínio metafísico. Parece-me tão obviamente infundado e, ao mesmo tempo, de tão pouco interesse para a causa da verdadeira piedade e religião, que arriscar-me-ei a mostrar eu próprio a sua falácia.
Começo por observar que a pretensão de demonstrar ou provar uma questão de facto por quaisquer argumentos a priori é evidentemente absurda. Nada pode ser demonstrado a menos que o contrário implique contradição. Nada que possa ser distintamente concebido implica uma contradição. Tudo o que concebemos como existente também podemos conceber como não-existente. Portanto, não há nenhum Ser cuja não-existência implique uma contradição. Consequentemente, não há nenhum Ser cuja existência possa ser demonstrada. Avanço este argumento como completamente decisivo e estou pronto a basear nele toda a controvérsia.
Alega-se que a Deidade é um Ser necessariamente existente e tenta-se explicar esta necessidade da sua existência afirmando que se conhecêssemos toda a sua essência ou natureza, perceberíamos que lhe é tão impossível não existir quanto a duas vezes dois não ser quatro. Mas é evidente que isto nunca poderá acontecer enquanto tivermos as mesmas faculdades que temos agora. Continuará a ser-nos possível conceber a qualquer momento a não-existência daquilo que anteriormente tínhamos concebido existir; nem pode a mente estar sujeita à necessidade de supor que um objecto continua a existir sempre, da mesma maneira que nos encontramos na necessidade de conceber sempre que duas vezes dois são quatro. Por consequência, as palavras existência necessária não têm qualquer significado ou, o que é a mesma coisa, qualquer significado que seja consistente.
Mas, além disso, por que não poderia, segundo esta pretensa explicação da necessidade, o universo material ser o Ser necessariamente existente? Não ousamos afirmar que conhecemos todas as qualidades da matéria e, tanto quanto podemos determinar, a matéria pode conter certas qualidades que, se fossem conhecidas, fariam a sua não-existência parecer uma contradição tão grande quanto duas vezes dois serem cinco. Um só argumento é empregue para provar que o mundo material não é o Ser necessariamente existente; e este argumento deriva da contingência tanto da matéria como da forma do mundo. Diz-se que "se pode conceber a aniquilação de qualquer partícula de matéria e a alteração de qualquer forma. Uma tal aniquilação ou alteração não é, portanto, impossível." Mas, parece uma grande parcialidade não perceber que, até onde somos capazes de concebê-lo, o mesmo argumento se aplica igualmente à Deidade e que a mente pode, pelo menos, imaginar que ela não existe ou que os seus atributos foram alterados. O que pode fazer a sua não-existência parecer impossível ou os seus atributos inalteráveis têm de ser certas qualidades desconhecidas e inconcebíveis. Mas não há qualquer razão para que estas qualidades não possam pertencer à matéria. Como são completamente desconhecidas e inconcebíveis nunca se poderá provar que sejam com ela incompatíveis.
Acrescentai a isto que, ao percorrer uma sucessão eterna de objectos, parece absurdo inquirir por uma causa geral ou primeiro Autor. Como pode uma coisa que existe desde a eternidade ter uma causa, uma vez que essa relação implica uma prioridade no tempo e um começo da existência?
Além disso, numa tal cadeia ou sucessão de objectos, cada parte é causada por aquela que a precede e causa aquela que lhe sucede. Onde está, então, a dificuldade? Mas o todo, dizeis, carece de uma causa. Respondo que a união destas partes num todo, como a união de vários condados distintos num reino ou de vários membros distintos num corpo, é realizada por um mero acto arbitrário da mente e não tem qualquer influência na natureza das coisas. Se eu vos tivesse mostrado as causas particulares de cada indivíduo numa colecção de vinte partículas de matéria, consideraria muito pouco razoável que vós me perguntásseis a seguir o que era a causa do conjunto das vinte. Isto é suficientemente explicado ao explicar a causa das partes.
David Hume
Tradução de Álvaro Nunes
Retirado de Diálogos sobre a Religião Natural, de David Hume (Lisboa: Edições 70, 2005, pp. 92–95)