BUSH, AGAMENON E OS CÃES
Na natureza, onde a mão perversora do homem ainda não tocou, os conflitos se travam com uma franqueza que nos deveria fazer pensar.
Quando dois cães disputam um osso - arreganhando os dentes, inclinando as orelhas para trás e rosnando - tudo se passa com a mais absoluta clareza: Nenhum deles chama o outro de ditador ou terrorista, nem batiza suas próprias mordidas de operação osso livre.
No fim, um dos cães será derrotado, abaixará as orelhas e adotará atitude de submissão; e o outro sairá abanando o rabo, com o osso entre os dentes. Mas jamais passará pela cabeça de qualquer dos dois que a luta tenha sido regida por justiça ou por moral.
Na aurora da história, a espécie humana ainda preservava um pouco dessa sinceridade. Quando Agamenon liderou os gregos na carnificina da guerra de Tróia, ele não falou em operação Tróia Livre, nem em outra desculpa qualquer, nem escondeu que o motivo da guerra era, crua e simplesmente, saquear. Saquear ovelhas, vacas, cavalos, caldeirões, armaduras, espadas e coisas do gênero, que eram as riquezas da época. Helena foi apenas um estopim.
No fim, os homens troianos foram massacrados um a um, até o último, incluindo velhos e meninos. E nem eles nem os gregos tiveram a ilusão de que havia na guerra qualquer tipo de justiça ou moral.
De lá para cá, a barbárie continuou a mesma, exceto por uma novidade: a hipocrisia. Em lugar da palavra saque, foram inventados pretextos como: Deus, a Rainha, a liberdade, o socialismo, a democracia... até se chegar ao clímax com Bush, que faz a guerra pelo desarmamento.
Neste nosso paraíso de belas intenções, ao fim da segunda guerra mundial, os EUA e seus aliados vitoriosos inventaram um tal de Tribunal Militar Internacional, onde os nazistas derrotados (que realmente haviam feito coisas terríveis) foram julgados e condenados à forca. Os juizes foram os próprios aliados vitoriosos que, à parte seus próprios crimes, haviam fechado os olhos ao holocausto. É o cão vitorioso julgando moralmente o cão derrotado.
Mas o pior é que esse circo pretendeu dar ao mundo a ilusão de que existe alguma justiça ou moral nas guerras.
Que justiça existe? Que diferença há entre Bush, Agamenon e os cães?
No que se refere a motivos, não há diferença nenhuma: ossos, gado ou petróleo, são todos equivalentes. Em todos os outros aspectos, os mais nobres são os cães, pois, das ganâncias, a sua é a menor. Eles desejam apenas um osso; Agamenon quis uma cidade; Bush quer o mundo inteiro.
Quanto à coragem, o contraste é ainda maior, pois Agamenon e os cães fazem a guerra arriscando os próprios pescoços; Bush arrisca apenas o pescoço dos jovens soldados, geralmente pobres, que são enviados ao front.
Mas a maior diferença está mesmo na hipocrisia. Bush nega que cobice o osso; nega a carnificina causada por suas mordidas: as cruentas bombas inteligentes; e nega a brutalidade com que trata os adversários vencidos.
Os prisioneiros da guerra do Afeganistão estão até hoje trancafiados em um lugar chamado Guantánamo, um pesadelo no limbo do mundo, onde nenhuma lei e nenhuma moral existem e as torturas e suicídios ocorrem com a mesma desenvoltura que em um abatedouro bovino. Os prisioneiros de guerra iraquianos estão sendo filmados de joelhos, com sacos nas cabeças, algemados de mãos postas, humilhados, agarrados com violência pela nuca e arrastados...
E no peito de nenhum deles resta qualquer ilusão sobre a justiça ou a moral da guerra.
O único que ainda parece feliz com a justiça criminal internacional é o próprio Bush, que continua invocando a convenção de Genebra para ameaçar os iraquianos, e não mostra qualquer receio de ser julgado e enforcado como os nazistas. Ele parece acreditar que o direito internacional se aplica apenas aos derrotados e terceiro-mundistas, jamais a ele próprio. Mas, se for assim, então talvez seja melhor que se extingam as cortes internacionais, e a própria ONU, e que reconheçamos que estamos sob a lei da força bruta. As guerras continuarão abomináveis, a barbárie continuará solta, os inocentes continuarão a sofrer, mas pelo menos estaremos livres das ilusões.
André Carlos Salzano Masini