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Dom, 22 Jan - 13h49Saramago, um escritor para desencantar[/size]Agência Estado Ao contrário dos escritores, grandes ou pequenos escritores, que escrevem retidos no perímetro estreito da linguagem, como se a literatura pudesse ser uma caixa forte vedada à influência do mundo, o português José Saramago, mesmo quando se debruça sobre episódios do passado remoto, como no popular História do Cerco de Lisboa, sempre escreveu para provocar o presente. Para atuar sobre a vida.Não para refletir serenamente o mundo, como fazem os escritores realistas, ou para deformá-lo, ou mesmo para adorná-lo, como se a literatura pudesse ser reduzida a um jogo matemático, ou a uma modalidade de decoração. Saramago escreve para chegar ao osso da existência, e não se importa com a malha de nervos e de sangue que precisa manipular pelo caminho.Talvez por isso, ele sempre preferiu os temas fortes e antigos, detendo-se naquelas perguntas arcaicas que atormentam o homem desde seu nascimento. Em Ensaio sobre a Cegueira, ele examina o que resta da lucidez humana quando somos lançados em um mundo de trevas. Em O Evangelho Segundo Jesus Cristo, trata da fragilidade humana e do modo como a encobrimos com a ilusão religiosa. Em O Homem Duplicado, investiga as frágeis fronteiras de nossa identidade, cada vez mais tênues e quebradiças. Em O Ano da Morte de Ricardo Reis, o mais célebre heterônimo de Fernando Pessoa vê a força da poesia fraquejar diante da brutalidade do real.Temas graves, acomodados (ou melhor: espremidos, depurados) em uma escrita circular, magia que transformou José Saramago, apesar da impaciência de seus detratores, que o atacam porque ele se declara comunista, ou porque seus livros se transformam em best sellers, ou porque ele (e não o vanguardista Antonio Lobo Antunes) foi contemplado com o Nobel, como um dos grandes escritores do presente.Agora, é sobre o mais radical dos temas, a morte, aquele a respeito do qual - afora o palavreado das ilusões - nada se pode dizer, que Saramago se debruça. Como ficaria o mundo, se a morte, aquela de que todos fugimos, deixasse de existir ou, ao menos, de funcionar - ou seja, de matar? Uma morte que não mata, para que serve? Em um país impreciso, cansada de ser objeto de nosso ódio, a morte resolve suspender suas atividades. Com isso, em vez da felicidade do eterno, contudo, o país é lançado no caos. Todos os valores idealizados a respeito da beleza da vida eterna desmoronam neste mundo de homens imortais, sujeitos atônitos, sem destino, que já não sabem o que fazer com seu tempo (e sua dor) infinito.A imortalidade não barra a dor, nem a velhice, nem a decadência, ou a solidão; ao contrário, as perpetua. Assim, a vida eterna, em vez de paradisíaca, se torna dura e tormentosa. Viva, mas inútil, a morte se transforma em um ideal, a que todos - como os vampiros cansados de sangue - desejam chegar. As Intermitências da Morte, o romance de Saramago, logo foi rotulado de pessimista. A respeito desta acusação, ele já respondeu, em uma negação que de certo modo a confirma: “Não sou pessimista, o mundo que é péssimo”.Falando a respeito de seu indesejado personagem, Saramago foi claro: “Não digo que morrer seja melhor do que viver, mas, simplesmente, deveríamos ter outro olhar em relação à morte, aceitá-la como uma conseqüência lógica da vida.” Talvez o grande personagem de Saramago em seu novo romance não seja, porém, a morte, mas a ilusão. Todos nos apegamos à idéia de que, sem a morte, a vida seria um paraíso. As visões do paraíso oferecidas pelas religiões desenham, sempre, um gozo eterno. Contudo, Saramago nos mostra em seu livro que, sem a morte, a ordem e a dignidade humanas se aniquilam. O gozo se torna tormento e a própria vida perde seu sentido.Em um longo depoimento a Pilar Del Rio, nos anos 90, transformado depois em livro (José Saramago, Ediciones de Cultura Hispânica, Madri, 1995), o escritor assim sintetizou sua visão anti-romântica do mundo. “Vivi minha vida sem dramatizar nada do que fiz. Tenho vivido minha vida sempre de uma maneira muito fluida, não sonhei jamais com uma carreira literária. Não sonhei jamais com a ‘glória’. Não sonhei jamais com nada.” Ainda assim, e sempre pronto a não se esquivar dos paradoxos que constituem o humano, Saramago admitiu no mesmo depoimento: “Escrevo porque não quero morrer.” Para isso serve a literatura: não para iludir, mas para salvar das ilusões.Mais de uma década depois deste depoimento, Saramago exercita, em As Intermitências da Morte, esta áspera visão de mundo, bruta, reta, sem o apoio das fantasias, para dizer que, na vida, o grande segredo é, apenas, ser o que se é. Desqualificar a morte, pretender extingui-la, é, na verdade, a negação da existência. Até porque a morte só existe para os vivos, os mortos não se interessam por ela, eles não sabem que morreram.Em seu romance, José Saramago, mais uma vez, restitui a seus leitores o lado pragmático, quando não brutal, de sua literatura. Literatura não para encantar, mas para desencantar. Fantasia que, em vez de encobrir e disfarçar, existe para desvelar o real.