Invasões de terra: mais um esqueleto para os contribuintes
Cândido Mendes Prunes
Vice-presidente do Instituto Liberal
O direito de propriedade no Brasil sofreu uma série de limitações legais nos últimos anos. Tanto a Constituição Federal, de 1988, quanto o novo Código Civil, de 2002, subordinam esse direito ao cumprimento de uma “função social” que não está definida em nenhum lugar. Esse movimento para restringir o direito de propriedade não é novo, e se insere num contexto político mais amplo de implementação gradual de um regime socialista no Brasil. Ainda que o direito de propriedade tenha legalmente se fragilizado, algumas regras jurídicas ainda o protegem teoricamente. Mas elas se tornaram praticamente letra morta, como se verá a seguir. A conseqüência dessa situação é que a médio e longo prazos o contribuinte será chamado para pagar pelos prejuízos causados pela ação dos movimentos dos sem-terra e pela omissão das autoridades.
Foi graças a um ambiente legal complacente com violações ao direito de propriedade que surgiram movimentos como o do MST. Fazendas por todo o Brasil têm sido invadidas pelos sem-terra como parte de uma estratégia para pressionar pela desapropriação de imóveis rurais. Essas invasões causam enormes prejuízos aos proprietários, pois quase sempre há destruição de cercas, casas, plantações e matança de gado, inclusive de matrizes. Os acampamentos às vezes ocupam por meses a fio uma propriedade, impedindo que os seus legítimos donos possam até mesmo continuar morando na sua propriedade. O MST provoca com essas ações, portanto, aquilo que em direito é denominado lucro cessante (o que o proprietário deixa de ganhar) e dano emergente (o prejuízo causado pela destruição de benfeitorias e o abate de animais). A invasão da propriedade rural do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso é um bom exemplo de que o oportunismo político dos movimentos de sem-terra anda pari passu com o vandalismo.
A situação de conflito vivida no campo torna-se mais grave devido a dois fatores. O primeiro diz respeito à dificuldade que o proprietário enfrenta para se defender de uma invasão. Ele não tem meios para exercer o direito assegurado pelo novo Código Civil (que nesse sentido repete o disposto no código anterior), em seu artigo 1210, parágrafo primeiro: “O possuidor turbado, ou esbulhado, poderá manter-se ou restituir-se por sua própria força, contanto que o faça logo; os atos de defesa, ou de desforço, não podem ir além do indispensável à manutenção ou restituição da posse”. Às vésperas do plebiscito sobre o desarmamento – ao que tudo indica a aliança entre a cegueira e o cinismo sairá vitoriosa – já é virtualmente impossível que um fazendeiro consiga se opor a invasores.
Sem armamento e munição adequados, como repelir um grupo de invasores que às vezes somam centenas de elementos? Tanto isso é verdade que não se conhece nenhum caso de propriedade invadida cujo dono sozinho tenha expulsado os malfeitores, exercendo o direito assegurado pela legislação civil.
O segundo fator que conspira contra o legítimo exercício do direito de propriedade é o despreparo e a falta de meios das forças policiais para enfrentar os casos de invasões. O problema já é antigo, e vem ganhando gravidade sem que os estados da Federação tenham equipado e treinado as polícias para assegurar o direito estabelecido no mesmo artigo 1210, caput: “O possuidor tem direito a ser mantido na posse em caso de turbação, restituído no de esbulho e segurado de violência iminente, se tiver justo receio de ser molestado” (o grifo é nosso, para indicar que se trata de uma inovação do Código Civil). Ora, quem tem a obrigação de manter, restituir e segurar o proprietário contra a violência é o Estado.
Teoricamente, o dono de um imóvel rural que avisar a polícia sobre a ameaça de invasão contra a sua propriedade coloca o Estado na obrigação legal de impedir que isso aconteça. Mas isso é de fato, hoje, mera teoria. O Estado não só tem se revelado incapaz de impedir uma invasão como se mostrado inepto até mesmo para restituir a posse em casos de ordem judicial. Essa omissão injustificável dá à vítima de uma invasão o direito de obter do Estado uma indenização pelos prejuízos sofridos. E isso não é mera teoria.
Recentemente, o Tribunal de Justiça de São Paulo determinou que o estado pagasse uma indenização a favor de um fazendeiro cuja propriedade fora invadida. A Polícia Militar foi incapaz de cumprir a ordem judicial de restituição de posse. Depois de incontáveis dias e a destruição da sede da fazenda, os invasores abandonaram o imóvel. Como resultado, hoje o contribuinte brasileiro irá pagar uma indenização calculada precisamente em R$ 554.874,98, além de juros moratórios, correção monetária, custas, despesas processuais e honorários advocatícios calculados em 15% do valor da condenação. Ou seja, a conta para o contribuinte já está acima de um milhão de reais. O caso aqui mencionado, decidido pela Oitava Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo, é uma história de horror em que a bandidagem da invasão de terras encontra na complacência e na inépcia estatal os aliados ideais. Os fatos merecem ser conhecidos nos detalhes, pelas palavras do próprio desembargador que julgou a apelação:
“Na noite de 18 de outubro de 1998, por volta das 22:00 horas, a sede da fazenda, onde morava seu filho Cyro Rezende Maschietto, foi invadida por cerca de trinta pessoas encapuzadas, portando armas. Tentou fugir com sua noiva, mas foi detido pelos assaltantes, que arrombaram a porta principal, invadiram a casa e dominaram o casal. Seu filho foi lançado ao chão, agredido e mantido sob a mira de três revólveres, diretamente apontados para a sua cabeça. Depois de trinta minutos, aproximadamente, os assaltantes identificaram-se como sendo integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST). Ato contínuo, ordenaram que Cyro fosse até as casas dos empregados da fazenda noticiar a invasão e solicitar que entregassem as armas que eventualmente possuíssem. Por volta de 0:30 hora do dia 19 de outubro de 1998, após muita insistência, os agressores libertaram o casal, que se dirigiu à Delegacia de Polícia de Itararé, onde foi lavrado o Boletim de Ocorrências. No dia 19.10.98, o autor ajuizou ação de reintegração de posse, com pedido de liminar, tendo a MM Juíza de Direito da 2a Vara da Comarca de Itararé, após a ouvida do Ministério Público, deferido a liminar, determinando a expedição de mandado de reintegração de posse, com o auxílio da força policial. Na mesma data foi expedido ofício requisitando força policial. A Polícia Militar, no entanto, desde logo criou obstáculos para atender à requisição judicial, solicitando dispendiosas providências ao requerente, tais como oito caminhões e motoristas; trinta carregadores; alimentação para todos os envolvidos na operação; dois assistentes sociais; dois representantes do Conselho Tutelar; duas ambulâncias; um médico e dois auxiliares de enfermagem. O autor atendeu prontamente o pedido da Polícia Militar, que somente no dia 27 de outubro de 1998 enviou ao local, para garantir o cumprimento da medida liminar, duzentos homens, que se mostraram absolutamente despreparados, incapazes de superar a resistência dos invasores, em número de, aproximadamente, 600 pessoas. Para comemorar o fracasso da Polícia Militar, os invasores abateram dois bois de propriedade do autor e promoveram uma grande churrascada, com o inequívoco propósito de afrontar a Polícia Militar e, via de conseqüência, o Poder Judiciário. A essa altura a Fazenda Rio Verde estava totalmente à mercê dos invasores, pois os empregados que permaneciam no local haviam sido expulsos no dia 23 de outubro de 1998, sem qualquer resistência. Somente no dia 10 de novembro de 1998, 23 dias após a invasão, os integrantes do Movimento dos Sem Terra decidiram iniciar a desocupação voluntária, instalando-se na estrada que corta a propriedade, sem a menor intervenção do Polícia Militar, mas continuaram ameaçando os empregados da fazenda e abatendo animais.” (grifos nossos)
Esses fatos aconteceram no interior de São Paulo. No estado mais rico da Federação. Numa região que possui o segundo PIB per capita do País. Onde os contribuintes mais recolhem impostos. Por isso não restou ao
Tribunal de Justiça reconhecer que:
“A responsabilidade civil do Estado é evidente, pois cumpria-lhe, ao receber o ofício de requisição de força policial para a reintegração de posse, tomar todas as providências cabíveis para o cumprimento da ordem judicial, mas nada providenciou, permitindo, com sua inércia, que a propriedade do autor permanecesse longo tempo em poder dos invasores. Houve, portanto, descumprimento de um dever jurídico estatal. ... Os danos causados, em conseqüência da invasão, estão suficientemente demonstrados nos autos ... [e pela] prova testemunhal que, inclusive, demonstrou que os invasores abateram e furtaram cerca de 290 a 300 cabeças de bois, e o mesmo número de porcos, carneiros e cabritos”.
Infelizmente as decisões do Judiciário paulistano tardam além do suportável. Depois de sete anos dos fatos ocorridos na Fazenda Rio Verde é que a mais alta corte estadual se manifestou a favor do proprietário. Mas transferiu, como em todos os casos idênticos, a conta para o bolso do contribuinte.
Se não houver uma mudança radical das autoridades estaduais e federais contra a estratégia empregada pelo MST, continuará a crescer um passivo já gigantesco contra os contribuintes. De 1998 até esta data já aconteceram milhares de invasões.
Não seria o caso de o Ministério Público (ou qualquer outra autoridade ou entidade) exigir que esse prejuízo seja pago pessoalmente por quem foi omisso? Ou seja, o governador, o secretário de Segurança ou o comandante da PM deveriam ser chamados para responder com os seus próprios bens pelos prejuízos que a sua omissão causou. Se isso ao menos fosse ensaiado, rapidamente as autoridades resolveriam a questão dos recursos necessários para cumprir a lei. E a sociedade agradeceria por um esqueleto a menos.
http://www.institutoliberal.org.br/publicacoes/thinktank/thinktank.htm