Pelos critérios da liberdade de expressão
como valor absoluto, a resposta é não. Mas
todos, se pudessem, proibiriam alguma coisa



DE TODOS OS LADOS
Judeus contra A Paixão de Cristo de Mel Gibson, católicos contra a Nossa Senhora pintada com excrementos de elefante e o cartunista Haderer, condenado na Grécia por satirizar Jesus: mexer com religião sempre dá encrenca; há, porém, diferenças entre os protestosImagine-se que, logo depois do 11 de Setembro de 2001, jornais de países muçulmanos publicassem charges mostrando as vítimas dos atentados nos Estados Unidos em posições ridículas ou zombando de seu sofrimento. Haveria certamente uma grande reação de fúria e revolta. Em termos emocionais, seria comparável à onda de ira que se viu nos últimos dias, desde a Faixa de Gaza até o Paquistão, por causa das caricaturas publicadas originalmente por um jornal dinamarquês mostrando o profeta Maomé, reverenciado pelos muçulmanos como o receptor da revelação divina definitiva, em situações ofensivas. A comparação com os mortos do 11 de Setembro foi escolhida de propósito: a grande tragédia foi talvez o fato mais chocante ocorrido no mundo ocidental nas últimas décadas, em termos de impacto, exposição e conseqüências. Mexer com suas vítimas soaria terrivelmente desrespeitoso, além de insuflar animosidades entre a esfera de influência do cristianismo e o Islã. Sem contar que seria inútil traçar um paralelo entre a ofensa a Maomé e uma hipotética agressão a Jesus. O ícone cristão já foi desconstruído de todas as maneiras imagináveis em seus próprios domínios. Gay, drogado, casado, perturbado, assolado por dúvidas e, na inesquecível sátira do grupo inglês Monty Phyton, pateticamente desinformado sobre o que está acontecendo à sua volta são alguns exemplos. A mais recente sátira a despertar alguma atenção foi a história em quadrinhos A Vida de Jesus, do austríaco Gerhard Haderer. Sem nenhuma originalidade, ele desenha um Jesus surfista, amigo de Jimi Hendrix, sempre zonzo de "incenso" e cercado por discípulos que aproveitam para vender seguros de vida.
Nada disso acontece sem protestos ferozes. O caso de Haderer ganhou interesse porque o autor foi condenado no ano passado, à revelia, a seis meses de prisão na Grécia, país onde a conservadora Igreja Ortodoxa tem grande influência, mas que também é membro da União Européia, que evidentemente dá todas as garantias à liberdade de expressão. É a importância desse princípio que ressurge cada vez que valores religiosos caríssimos aos respectivos fiéis são conspurcados publicamente. Um bispo evangélico pode chutar uma imagem de Nossa Senhora? Jesus pode ser vilipendiado? O santo profeta Maomé desenhado com um turbante em forma de bomba (sem contar que o simples fato de fazer uma representação dele já é considerado blasfemo)? A maioria dos católicos praticantes, protestantes de diversas denominações e muçulmanos provavelmente responderá que não.
A diferença é a maneira como reagem – e o ambiente em que reagem. As sociedades ocidentais acumulam vários séculos de luta pelas liberdades fundamentais, incluindo-se aí capítulos sangrentos em que padres e até imagens religiosas foram sacrificados, vide Revolução Francesa. Não foi fácil a transição da Igreja Católica, embora os valores cristãos mais elevados tenham constituído um dos pilares da construção do edifício dos direitos humanos. Até hoje, se pudessem, clérigos mais severos de todas as confissões provavelmente proibiriam ofensas religiosas de qualquer natureza, inclusive nos Estados Unidos, berço das mais belas e invioláveis palavras já escritas em defesa das liberdades básicas ("O Congresso não legislará no sentido de estabelecer uma religião, ou proibindo o livre exercício dos cultos; ou cerceando a liberdade de expressão, ou de imprensa", Primeira Emenda à Constituição de 1789). Como não podem, reagem com protestos e boicotes, manifestações perfeitamente legítimas do jogo democrático. Há desde as esparsas manifestações acusando de anti-semitismo A Paixão de Cristo, o violento filme de Mel Gibson em que de fato judeus de caricatura aparecem em cenas da condenação, até os mais nutridos protestos de 1999 contra a exposição de um quadro do artista britânico Chris Ofili mostrando uma Nossa Senhora negra cercada por montículos de excrementos de elefante e recortes de revistas pornográficas. Houve até ameaças de cortar verbas públicas para o Brooklyn Museum, sede da exposição.
Não deu em nada. É interessante notar, porém, que, malgrado a virulência das manifestações contra o caráter blasfemo do quadro, foram bem menores as críticas à obra em si, uma coisa pavorosa (liberdade de opinião, lembram-se?). É possível que tenha pesado o fato de que Ofili é um inglês de origem nigeriana – negro, portanto –, e as sensibilidades raciais, em especial nos Estados Unidos, contaram. O que nos conduz à constatação de que freios sociais e tabus de diversas naturezas fazem parte da dinâmica mesmo nos países onde a liberdade de expressão é um valor absoluto. A propósito das caricaturas ofensivas ao profeta Maomé, um jornalista saudita fez a seguinte afirmação: "Se as charges representassem um rabino, nunca teriam sido publicadas". Provavelmente é verdade, pelo menos no que concerne à grande mídia dos países ocidentais, onde a lembrança do uso maligno do anti-semitismo ainda é terrivelmente dolorosa. Já em jornais de países árabes são comuns as charges retratando judeus como cães e macacos, que entre nós seriam consideradas criminosas.
Isso nos leva a uma reformulação das perguntas que afloraram na semana passada: podemos caricaturar Deus, ou seus profetas, mas não os judeus (ou os negros, ou outras minorias)? A resposta é: podemos caricaturar todo mundo, desde que isso não implique incentivar crimes. Representar Maomé como terrorista não insufla sentimentos antimuçulmanos? Embora a caricatura seja grosseira e ofensiva, na visão ocidental não constitui crime. Até não muito tempo atrás, essa visão, que põe a liberdade de expressão no topo dos valores absolutos, parecia caminhar para se implantar em todo o mundo, embora em diferentes graus e ritmos. As recentes convulsões planetárias têm mostrado que, ao contrário, ela pode não só deixar de se propagar como até involuir – ou não foi isso que aconteceu quando o Google, o mecanismo de busca que colocou capacidades quase sobre-humanas ao alcance de qualquer mortal, sinônimo da inebriante liberdade de informação gerada pela internet, acatou tolices como tirar "democracia" da lista para ter acesso ao mercado chinês? O mérito dos tristes acontecimentos da semana passada, quando por todo o mundo muçulmano manifestações exigiram não apenas desculpas ou mesmo punição aos editores responsáveis pelas charges ofensivas, mas castigo e até morte a todo e qualquer cidadão dos países onde elas foram publicadas, foi pelo menos o de mostrar que a liberdade de expressão, pilar dos direitos fundamentais, não é uma obra pronta, acabada e sacramentada. Precisamos continuar a merecê-la.
http://veja.abril.com.br/080206/p_072.html 







