Autor Tópico: Sísifo e o sentido da vida  (Lida 3207 vezes)

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Offline Südenbauer

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Sísifo e o sentido da vida
« Online: 05 de Março de 2006, 19:47:27 »
Sísifo e o sentido da vida[/size]

Por Desidério Murcho

O mais desejável é viver uma vida com sentido e não uma vida que parece subjectivamente ter sentido.
Susan Wolf

Albert Camus inicia o seu famoso livro sobre o mito de Sísifo declarando que só há um problema filosófico verdadeiramente importante: o suicídio. A ideia é que é urgente descobrir se a vida faz ou não sentido — pois se não fizer, resta-nos o suicídio. Muitas pessoas que desconhecem a filosofia pensam que descobrir o sentido da vida é a tarefa fundamental, senão a única, da filosofia. Contudo, isto é um exagero dramático, semelhante ao erro de pensar que a filosofia tem por objecto de estudo unicamente "os valores". A filosofia tem uma enorme amplitude e qualquer visão redutora deste género falseia a sua natureza. Quem está a par da discussão filosófica contemporânea, e dos grandes clássicos da filosofia, sabe que o problema do sentido da vida não tem sido uma preocupação central dos filósofos. Contudo, nos últimos anos este problema tem recebido cada vez mais atenção por parte de filósofos tão importantes como Thomas Nagel, Robert Nozick, David Wiggins e Peter Singer, entre muitos outros.

Neste capítulo, defende-se uma perspectiva objectivista, naturalista e optimista do sentido da vida. Objectivista, porque se defende que o sentido da vida não é independente da realidade. Naturalista porque se defende uma posição não religiosa. E optimista porque se defende que é possível viver uma vida com sentido.

Ao objectivismo quanto ao sentido opõe-se o subjectivismo: a ideia de que o sentido da vida depende exclusivamente da satisfação que a pessoa sente. Assim, deste ponto de vista, uma pessoa permanentemente drogada, por exemplo, tem uma vida com sentido desde que se sinta feliz. O subjectivismo foi muito popular na fase positivista da filosofia contemporânea — a mesma fase que viu os filósofos a defender o subjectivismo em ética — mas foi hoje quase totalmente abandonado.

Uma das motivações para o subjectivismo optimista é a ideia de que, de um ponto de vista mais alargado, a nossa vida não faz realmente sentido. Assim, os optimistas quanto ao sentido subjectivo da vida são geralmente pessimistas quanto ao sentido objectivo (mas podem igualmente defender que o sentido objectivo não é sequer inteligível). Contudo, na história da filosofia também encontramos pessimistas quanto ao sentido subjectivo da vida, como Schopenhauer:

Que a vida humana tem de ser um tipo qualquer de erro é suficiente demonstrar pela simples observação seguinte: o homem é um composto de necessidades que são difíceis de satisfazer; a sua satisfação nada alcança a não ser uma condição dolorosa na qual o homem sucumbe ao tédio; e o tédio é uma demonstração directa de que a existência não tem em si qualquer valor, pois o tédio não é senão a sensação de que a existência é vazia. Pois se a vida, que a nossa essência e existência deseja, tivesse em si um valor positivo e um conteúdo real, o tédio seria coisa que não existiria: a mera existência seria suficiente para nos realizar e satisfazer. Tal como as coisas são, não temos qualquer prazer na existência excepto quando lutamos por algo — caso em que a distância e as dificuldades fazem o nosso objectivo parecer algo que nos satisfaria (uma ilusão que desaparece quando o alcançamos) — ou quando nos entregamos à actividade puramente intelectual, caso em que estamos na realidade a sair da vida como que para a olharmos a partir do exterior, como espectadores numa peça de teatro. Mesmo o próprio prazer sensual consiste numa luta contínua e cessa mal o seu objectivo foi atingido. Sempre que não estamos envolvidos numa ou noutra destas coisas, mas antes damos atenção à própria existência somos assaltados pela sua ausência de valor e fatuidade e esta é a sensação a que se chama "tédio". (Arthur Schopenhauer, "Da Vacuidade da Existência", p. 69)


Conceptualmente, é possível defender uma perspectiva religiosa e simultaneamente pessimista ou subjectiva quanto ao sentido da vida, mas não é muito comum: uma das motivações da visão religiosa do mundo é a ideia de que só o sobrenatural poderá dar objectivamente sentido à vida.

Há um certo antropocentrismo na formulação do problema do sentido da vida, pois subentende-se que se trata da vida humana — ou pelo menos, da vida de seres inteligentes e sofisticados como nós. Por vezes, usa-se igualmente a expressão "sentido da existência", conectando assim o problema do sentido da vida com o problema de saber por que razão há algo e não o nada. A questão de saber por que razão existe o universo relaciona-se com o problema do sentido da vida humana porque se encara muitas vezes este último como uma questão de saber que lugar é ocupado pelos seres humanos na ordem geral das coisas, por assim dizer. Contudo, como veremos, é falso que o sentido da vida dependa exclusivamente do lugar que ocupamos na ordem geral das coisas.

É evidente que o problema do sentido da vida não é linguístico — o termo "sentido" não corre nesta expressão na acepção em que ocorre quando perguntamos qual é o sentido ou significado de uma dada palavra. O problema do sentido da vida é saber se a vida tem finalidade e valor.

Uma actividade não tem sentido se não tiver finalidade. Se alguém caminha sem qualquer razão, essa actividade não tem sentido. Evidentemente, é raro que aconteça tal coisa. Geralmente, as pessoas caminham pelo prazer de caminhar, para ir ao cinema, para ir às compras, para visitar um amigo, para conhecer a cidade ou por outra razão qualquer. Mas têm em geral uma razão ou finalidade.

Podemos distinguir dois tipos de finalidades: as instrumentais e as últimas. Uma finalidade instrumental é apenas um meio para outra finalidade, como quando alguém caminha para ir ao cinema. Chamar "finalidade" ao que pode ser meramente instrumental parece um abuso de linguagem. Afinal, se a única razão pela qual caminho é para ir ao cinema, caminhar não é uma finalidade, de todo em todo, mas apenas um meio. Contudo, as coisas são mais complexas. Uma pessoa pode caminhar para ir ao cinema e ao mesmo tempo caminhar pelo gosto de caminhar — ou, mais subtil, mas muito comum, o gosto que a pessoa tem ao caminhar resulta de saber que caminhar é um meio para ir ao cinema.

Em qualquer caso, podemos distinguir as finalidades instrumentais, sejam ou não meramente instrumentais, das finalidades últimas. Uma finalidade última, ao contrário da instrumental, é uma finalidade cuja razão de ser se esgota em si mesma. Por exemplo, uma pessoa pode ir ao cinema exclusivamente porque gosta de cinema.

Ter uma ou várias finalidades é uma condição necessária para o sentido, mas não suficiente. O mito de Sísifo ilustra bem este aspecto. Condenado pelos deuses, Sísifo tem de empurrar uma monstruosa pedra até ao cimo de um monte. Lá chegado, a pedra escapa-lhe e rola outra vez pela encosta abaixo, o que o obriga a voltar a empurrá-la, repetindo esta ingrata tarefa para todo o sempre. A existência de Sísifo é geralmente entendida como absurda ou sem sentido. Contudo, a sua existência tem uma finalidade: carregar a monstruosa pedra até ao cimo do monte. Pode-se argumentar que a existência de Sísifo não tem sentido porque nunca consegue atingir a sua finalidade; e é verdade que se o sentido da vida depender exclusivamente de uma dada finalidade que não se consegue alcançar, então a vida não terá sentido. Mas o caso de Sísifo parece diferente, pois é defensável que se conseguisse alcançar a sua finalidade, a sua existência seria igualmente destituída de sentido. Isto porque a própria finalidade a que Sísifo foi condenado é destituída de valor. O valor é uma condição necessária para o sentido — mas não é suficiente.

Não é suficiente porque executar mecanicamente e sem entrega actividades que têm finalidade e valor não dá sentido a uma vida. Por exemplo, vacinar dezenas de crianças por dia contra doenças mortais é uma actividade com uma finalidade que tem valor. Contudo, desempenhar tal actividade mecanicamente e sem entrega anula a possibilidade de sentido porque quebra a conexão apropriada entre o agente e a finalidade e valor da actividade. O sentido emerge quando há uma entrega activa a finalidades exequíveis com valor.

Excerto do Cap. 2 de Pensar Outra Vez: Filosofia, Valor e Verdade, de Desidério Murcho (Vila Nova de Famalicão: Quasi, 2006)

Fonte Crítica na rede

Offline N3RD

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Re: Sísifo e o sentido da vida
« Resposta #1 Online: 20 de Junho de 2009, 04:56:45 »
Venho eu aqui ressuscitar das profundezas das trevas¹ escuras², sombrias e úmidas: O sentido da vida.

Gostei do texto.
Não deseje.

Offline lusitano

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Re: Sísifo e o sentido da vida
« Resposta #2 Online: 20 de Junho de 2009, 09:45:23 »
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Dr. Strangelove:

Sísifo e o sentido da vida

Por Desidério Murcho:   

O mais desejável é viver uma vida com sentido e não uma vida que parece subjectivamente ter sentido.
Susan Wolf

Albert Camus inicia o seu famoso livro sobre o mito de Sísifo declarando que só há um problema filosófico verdadeiramente importante: o suicídio. A ideia é que é urgente descobrir se a vida faz ou não sentido — pois se não fizer, resta-nos o suicídio. Muitas pessoas que desconhecem a filosofia pensam que descobrir o sentido da vida é a tarefa fundamental, senão a única, da filosofia. Contudo, isto é um exagero dramático, semelhante ao erro de pensar que a filosofia tem por objecto de estudo unicamente "os valores". A filosofia tem uma enorme amplitude e qualquer visão redutora deste género falseia a sua natureza. Quem está a par da discussão filosófica contemporânea, e dos grandes clássicos da filosofia, sabe que o problema do sentido da vida não tem sido uma preocupação central dos filósofos. Contudo, nos últimos anos este problema tem recebido cada vez mais atenção por parte de filósofos tão importantes como Thomas Nagel, Robert Nozick, David Wiggins e Peter Singer, entre muitos outros.

Neste capítulo, defende-se uma perspectiva objectivista, naturalista e optimista do sentido da vida. Objectivista, porque se defende que o sentido da vida não é independente da realidade. Naturalista porque se defende uma posição não religiosa. E optimista porque se defende que é possível viver uma vida com sentido.

…………………………......

Fonte Crítica na rede

Óptimo texto! :ok:

Na minha modesta opinião, cada filósofo, tece uma forma muito pessoal de filosofar; perante a qual, outros podem legitimamente discordar…

Afinal, cada pessoa, filosófica ou não, é determinada por disposições genéticas, orgânicas e até ambientais, que quer queira, quer não, influenciam a maneira como reflecte as suas observações, sobre a vida e o mundo em que vive. Mais ou menos, como os motivos, que levam outros a questionar, se realmente existe o livre arbítrio…

Parece-me que isso de ser religioso, é muito controverso: Eu por exemplo, considero-me naturalista e não estabeleço, que isso é uma atitude não religiosa.

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“Mas o caso de Sísifo parece diferente, pois é defensável que se conseguisse alcançar a sua finalidade, a sua existência seria igualmente destituída de sentido. Isto porque a própria finalidade a que Sísifo foi condenado é destituída de valor.”

Opino que estamos perante um paradoxo: Ou Sisifo, estava cumprindo uma pena imposta pelos deuses, ou simplesmente, estava a seguir um rigoroso programa de treino, para se tornar um titã, ao estilo de Atlas ou de Hércules, ou os dois em simultâneo... :idea:

Ora sabemos, que Atlas suportava a Terra sob os seus ombros. E Hércules, cometia actos da mais audaciosa façanha, que chegavam a provocar a inveja dos deuses.

Como é que eles se tornaram tão fortes - se calhar - tiveram de malhar no duro, como fazem os super atletas, tipo Schwarzenegger. Posso portanto especular, que foram outros tantos Sisifos, até estarem aptos, a realizar demonstrações de força sobre-humana. :idea:

Para todos os efeitos, cada filósofo, determina por si próprio, de acordo com o seu livre pensamento e as suas disposições internas, se existe algum valor ou sentido nos actos humanos e na vida em geral… :)














« Última modificação: 20 de Junho de 2009, 14:42:49 por lusitano »
Vamos a ver se é desta vez que eu acerto, na compreensão do sistema.

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Offline N3RD

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Re: Sísifo e o sentido da vida
« Resposta #3 Online: 20 de Junho de 2009, 18:26:06 »
Não venha querer combinar o texto com a sua teoria da pedra deus.
Não deseje.

Offline Bruno Coelho

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Re: Sísifo e o sentido da vida
« Resposta #4 Online: 20 de Junho de 2009, 20:40:23 »
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Há um certo antropocentrismo na formulação do problema do sentido da vida, pois subentende-se que se trata da vida humana — ou pelo menos, da vida de seres inteligentes e sofisticados como nós.
Se considerarmos que a vida dos outros animais não tem sentido, então nós que estamos  alguns degraus acima na escala da evolução, também teriamos uma vida sem sentido pois somos apenas mais complexos mesmo possuindo a racionalidade.Caso o determinismo radical seja verdadeiro o problema de dar sentido a vida fica comprometido, pois daria a idéia de que temos apenas a ilusão de escolha.

Offline Hugo

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Re: Sísifo e o sentido da vida
« Resposta #5 Online: 20 de Junho de 2009, 22:58:35 »
Gostei do texto, porém poderia fazer algumas objeções filosóficas, mas prefiro dar minha contribuição apresentando uma resenha sobre Albert Camus.

A vida não tem sentido porque ela é absurda.

Essa resenha faz parte de minha disertação de mestrado em Filosofia.


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Camus: o homem e sua existência absurda

Escritor francês, nascido na Argélia, Albert Camus (1913-1960) morreu cedo, vítima de um acidente automobilístico. Ganhador do prêmio Nobel de literatura em 1957, Camus se tornou conhecido e agraciado no meio literário. Participou ativamente da resistência francesa durante a Segunda Guerra Mundial, e escreveu seus livros com as idéias do existencialismo que tanto lhe influenciou. O Mito de Sísifo (1942) considerado uma de suas mais expoentes obras, apresenta a sua filosofia do absurdo, como o livro O Estrangeiro (1942).  Escreve também A Peste (1947), O Homem Revoltado (1951). No primeiro, Camus apresenta uma alegoria da condição humana no pós-guerra, enquanto o segundo aponta ao homem os caminhos que ele seguirá para se revoltar diante desse mundo absurdo. Além de ser autor de várias peças de teatro, Camus nos deixa uma obra que tenta acordar o homem de sua inatividade e ignorância frente sua existência; sua irracionalidade em um mundo absurdo e igualmente irracional. É no Mito de Sísifo que Camus desvela esse mundo, nos mostrando que o que está por traz do véu é uma realidade terrível que traga o homem e suas referências.

A primeira frase do livro O Mito de Sísifo já nos informa o que será tratado nas páginas seguintes. “Só existe um problema filosófico realmente sério: o suicídio” ; é a partir desta constatação filosófica que Camus inicia uma análise – ou julgamento – da importância de viver, ou seja, a vida vale a pena ser vivida? Para Camus, responder a essa pergunta fundamental é de suma importância para o indivíduo existente. É uma questão primeira. As outras questões filosóficas estão em uma fila, porém, atrás do problema filosófico que Camus apresenta. Não que as outras questões sejam de menor importância. Saber que o mundo tem mais de três dimensões, se o ser puro é a primeira proposição da ciência, ou se o espírito possui três ou doze categorias para poder conhecer, para Camus, tudo isso vem depois de responder a questão fundamental. Usando de sua ironia fina ele constata: “nunca vi ninguém morrer por causa do argumento ontológico” e alguns pensadores, diante de uma iminente condenação à morte, renegaram tudo que disseram.

Tratar a questão do suicídio é entender que a questão não é um fenômeno social e sim uma relação entre o pensamento individual, o indivíduo e o suicídio. Ninguém se mata antes de fazer uma reflexão profunda da vida. Mesmo que suas conjecturas estejam mortalmente equivocadas, não podemos dizer que o indivíduo que decidiu se matar não refletiu antes do ato. Neste sentido Camus diz que “começar a pensar é começar a ser atormentado”, porque “o verme se encontra no coração do homem”,  e é no interior desse homem que está toda a chave para a compreensão do ato que passa do amor à vida, ao ato que nega esse amor em favor da evasão.

Não pretendemos, como cremos que Camus também não, fazer uma análise psicológica do suicida. A questão é filosófica, isto é, uma visão individual da vida e de seu sentido maior para se manter vivo. Sim, se manter vivo é uma tarefa árdua e perigosa. Se para Schopenhauer toda vida é sofrimento, para Camus a vida é absurdo e ele pretende entender a “medida exata em que o suicídio é uma solução para o absurdo”.  Para Camus, negar um sentido à vida não pressupõe dizer que a vida não valha a pena ser vivida. Mas, o suicídio coloca algo de forma explícita: quem se mata acredita que a vida não vale a pena ser vivida. Segundo Camus isso é uma verdade que ninguém pode contestar. O jovem Werther, de Goethe, já não encontra mais nenhum sentido em viver e, diz ele, “cada vez mais se torna uma certeza que a existência de um ser humano tem muito pouca importância”.  Camus pretende, através da reflexão sobre o suicídio, resolver um problema que lhe é de suma importância, a saber, “há uma lógica que chegue até a morte?”. 

Chegamos aqui ao que pretendíamos, com as questões: Há uma lógica na existência de um indivíduo? A existência e sua finitude podem ser entendidas logicamente?  A vida tem sentido e, se tem, qual? Será que realmente é necessário um sentido à vida pra ser vivida? As respostas às questões colocadas não determinam uma realidade existencial, porque para respondê-las usaremos nossa compreensão subjetiva do mundo. O indivíduo que busca responder essas questões quer, entretanto, conhecer a si mesmo, saber o que ou quem o colocou nesse mundo absurdo, o que ele deve fazer para viver bem e morrer bem.

O individuo é colocado no mundo e vive sua vida natural, acorda, toma café, vai ao trabalho, trabalha, almoça, volta ao trabalho, trabalha, casa, janta, dorme e vive no hábito o resto da semana. Uma vida normal, como qualquer outra. Mas, “um belo dia, surge o “por quê” e tudo começa a entrar numa lassidão tingida de assombro”.  Esta constatação de Camus nos faz lembrar a vida de Ivan Ilitch e agora, também, a vida de Meursault, em o Estrangeiro.  É no personagem Meursault que Camus personifica o homem absurdo, que vive uma vida simples e se depara com o “por quê” depois de cometer um assassinato e ser condenado à morte. Será a morte um aviso da vida? É como se a morte fosse um balde de água jogado no rosto de uma pessoa que se encontra dormindo. Jean-Baptiste Clamence, personagem de A Queda, questiona nosso sentimento com relação à vida e a força da morte ao perguntar: “Não amaremos talvez insuficientemente a vida? Já notou que só a morte desperta os nossos sentimentos?”

O livro O Estrangeiro começa com Meursault lendo um telegrama que o informava da morte de sua mãe que vivia em um asilo. O personagem de Camus era um homem comum, com seu trabalho de segunda à sexta em um escritório, almoçava sempre no restaurante do Céleste, no fim de semana ia à praia sozinho ou com sua namorada Marie, e o fato da morte de sua mãe não mudava muito sua vida: “Pensei que passara mais um domingo, que mamãe agora já estava enterrada, que ia retornar o trabalho, e que, afinal, nada mudara”.  Nada mudar, era o lema da vida de Meursault. Para ele, temos apenas uma vida e a mais simples era a melhor. Quando, certa vez, lhe perguntaram se essa vida lhe agradaria, ele responde, desdenhosamente, que sim, mas que no fundo, “tanto fazia”. E questionado se gostaria de uma mudança de vida, Meursault responde que “nunca se muda de vida; que, em todo caso, todas as vidas se equivaliam, e que a minha, aqui, não me desagradava em absoluto”.  Camus acredita que o homem absurdo é “aquele que, sem negá-lo, nada faz pelo eterno”, e que “uma vida maior não pode significar para ele uma outra vida”. 

A existência de Meursault nesse mundo continua sem muitas mudanças até o instante em que ele mata um homem. O desenrolar dos acontecimentos, até o assassinato, é tão absurdo que Meursault, depois, não cultiva nenhum sentimento de arrependimento. O dia em que ocorreu o assassinato era um dia de sol forte e praia perfeita para um banho. Meursault estava de frente ao árabe, que tinha uma contenda com seu amigo e, naquele momento, nosso personagem tinha um revolver na cintura. Meursault não tinha raiva daquele árabe e o problema dele era com seu amigo, não com Meursault. “Pensei que bastava dar meia-volta e tudo estava acabado”,  analisava diante da possibilidade de ter que decidir. Ir embora, e sua vida continuaria como sempre foi, ou atirar e dar um salto ao desconhecido da existência humana. Tomou a decisão de atirar e “foi então que tudo vacilou”; “compreendi que destruíra o equilíbrio do dia, o silêncio excepcional de uma praia onde havia sido feliz”.  A partir desse instante  Meursault mergulhava em um mar que não conhecia e que não tinha nenhuma pretensão de conhecer suas águas. A vida mudara, era outra completamente. Ele já não tinha mais nenhum controle sobre ela. Esse acontecimento absurdo lhe dava, mais ainda, a certeza de viver em um mundo absurdo. Diante do juiz, no tribunal, ao ser perguntado sobre os motivos do seu ato disse, “misturando um pouco as palavras e consciente do meu ridículo, que fora por causa do sol”. 

Enfrentara um julgamento absurdo que, para ele, a sua condenação se deu, não por causa do assassinato, mas por que não chorou no enterro da sua mãe.  Agora a prisão era sua casa, seu limite, seu mundo. Agora Meursault tinha tempo para refletir esse mundo absurdo pois, “perdera um pouco o hábito de interrogar a mim mesmo” , dizia ele. Diante de sua condenação, Meursault tinha consciência que sua morte se aproximava todas as vezes que ouvia passos do carcereiro no corredor. “O que me interessava neste momento é fugir à engrenagem, saber se o inevitável pode ter uma saída”.  Sim, poderia ocorrer algo que mudasse a comutação de sua pena como ocorreu com Dostoiévski.  Poderia! As possibilidades não exaurem quando se tem ainda a vida. “O que contava era uma possibilidade de fuga, um salto para fora do rito implacável, uma louca corrida que oferecesse todas as oportunidades de esperança”.  Esperança era a palavra que não permitia a Meursault ser pronunciada. A engrenagem o reconquistava a cada minuto. Para Meursault “a vida não vale a pena ser vivida” e que “a partir do momento em que se morre, é evidente que não importa como e quando”. 

Vemos que Camus constrói seu personagem em um mundo absurdo que não se tem nenhum controle ou, ao menos, uma previsão de um amanhã. Meursault vive sua vida comum e, a partir de uma ruptura com a rotina, sua existência é questionada. Para Ernani Reichmann há uma forte ligação entre Camus e Kierkegaard: “Os seus ensaios, mais do que suas peças, novelas ou romances mostram o procedimento de Camus diante de Kierkegaard”.  É no capítulo sobre o Suicídio Filosófico que Camus faz uma análise do pensamento kierkegaardiano e o absurdo. Para Camus, o indivíduo é sempre vítima de suas verdades e quando “as reconhece, não é capaz de se desfazer delas”.  Muito parecido com o que Kierkegaard pregava sobre a verdade subjetiva. Para ele o indivíduo deveria buscar sua verdade, viver e morrer por ela. É a crítica ao racionalismo que Kierkegaard e Camus fazem baseados na existência em um mundo absurdo. Em um mundo em que a ciência pretende entender e explicá-lo ao divinizar a razão. Uma razão que marginaliza o próprio homem que é uma síntese de finito e infinito, de temporal e eterno, de liberdade e necessidade. 

Mas, destarte uma aproximação de Camus e Kierkegaard, há também contrapontos em suas filosofias. A solução para o absurdo está aqui, no próprio mundo, segundo Camus, enquanto para Kierkegaard é necessário dar o salto. Para Camus, ao tentar explicar o absurdo, Kierkegaard se vê impotente e transforma o absurdo através de um salto transcendente. É neste sentido que Camus afirma que “o absurdo torna-se deus”.  A crítica que Camus pretende fazer aos filósofos existencialistas  se dá na tentativa de encontrar uma saída ao absurdo da existência, isto é, dar um salto, pois, “este salto é uma escapatória”  e para Chestov a razão é vã e deve existir algo além da razão. Mas, para o homem absurdo, a razão é vã e não existe nada além da razão. Neste ponto Camus discorda dos existencialistas que negam absolutamente a razão, e, portanto, dão o salto.

O espírito absurdo, segundo Camus, “reconhece a luta, não despreza em absoluto a razão e admite o irracional”.  Para Kierkegaard, segundo Camus, a antinomia e o paradoxo tornaram-se critérios do religioso. Camus insiste que a nossa impossibilidade de apreender o real existencial, não é condição necessária de concluir que não há, nesta realidade, uma resposta, ou respostas. O que Camus quer dizer é que só posso viver com o que eu sei, e apenas com isso e que: “por mais que a simpatia nos incline a tal atitude, é preciso dizer, no entanto, que a desmesura não justifica nada. Isso ultrapassou a medida humana, dizem, então deve ser sobre-humano. Mas este “então” está sobrando. Não há aqui certeza lógica. Tampouco há probabilidade experimental. Tudo o que posso dizer é que, de fato, isso ultrapassa as minhas medidas”. 

Como Meursault, Camus também se sente um estrangeiro com espírito de homem absurdo, em que vive o absurdo que é o “divórcio entre o espírito que deseja e o mundo que decepciona”,  e suas expectativas existenciais não coadunam com o que a vida oferece. Portanto, Camus não possui um sistema filosófico, e nunca desejou fazê-lo; acredita que a filosofia é feita através do pensar a existência, priorizando seus aspectos práticos e existenciais. Neste sentido, Camus e Kierkegaard se dão as mãos e constroem uma visão de mundo partindo de suas experiências de vida, entretanto, não menosprezando o olhar atento para os indivíduos e suas escolhas. Tanto Kierkegaard como Camus travaram uma luta heróica contra sistemas lógicos que pretendessem explicar o inexplicável, a saber, a existência. A existência do indivíduo é única e contingente, e a lógica nunca poderá abarcá-la.

Portanto a pergunta de Camus: “Há uma lógica que cheque até a morte?”,  foi respondida por Meursault personagem do livro O Estrangeiro: “Do fundo do meu futuro, durante toda aquela vida absurda que eu levava, subira até mim, através dos anos que ainda não tinham chegado,[...] Que me importavam a morte dos outros, o amor de uma mãe, que me importavam o seu Deus, as vidas que se escolhem, os destinos que se elegem, já que um só destino devia eleger-me a mim próprio [...], senti que fora feliz e que ainda o era.”   

“O absurdo nasce desse confronto entre o apelo humano e o silêncio irracional do mundo. Isto é o que não devemos esquecer. A isto é que devemos nos apegar, porque toda a conseqüência de uma vida pode nascer daí. O irracional, a nostalgia humana e o absurdo que surge de seu encontro, eis os três personagens do drama que deve necessariamente acabar com toda a lógica de que uma existência é capaz”. 

“Estou na extremidade da vida. O mundo me causa náuseas. Ele é insípido, não tem sal nem sentido. Mesmo que eu fosse mais afamado que Pierrot, não quereria me alimentar da explicação que os homens têm para dar. Assim como se crava o dedo na terra para reconhecer-se o país em que está, eu ponho o dedo na vida: esta não tem odor de coisa alguma. Onde estou? O mundo – o que é que isto quer dizer? Que significa esta palavra?”



"O medo de coisas invisíveis é a semente natural daquilo que todo mundo, em seu íntimo, chama de religião". (Thomas Hobbes, Leviatã)

Offline ronysalles

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Re: Sísifo e o sentido da vida
« Resposta #6 Online: 26 de Junho de 2009, 10:27:37 »
- Há um sentido para a vida? Para que existimos? O que é o homem? Depois de formular a última dessas questões, o eminente zoólogo G.G. Simpson assim se expressa: "O que quero esclarecer agora é que todas as tentativas de responder esta pergunta antes de 1859 são inúteis e que será melhor para nós ignorá-las completamente"- (Richard Dawkins, Gene egoísta)

- Para uma máquina de sobrevivência outra máquina de sobrevivência (que não seja de própria prole ou outro parente próximo) é parte de seu ambiente, como uma rocha, um rio ou uma porção de alimento. É alguma coisa que a atrapalha ou que pode ser explorada. Difere de uma rocha ou de um rio em um aspecto importante: ela tem a tendência a reagir. Isto porque ela é também uma máquina que guarda seus genes imortais para o futuro e que igualmente não se deterá diante de nada a fim de preservá-los.- (Richard Dawkins, Gene egoísta)

Enfim, saber o sentido da vida não é tarefa fácil para uma pessoa leiga como eu. Eu sei que, como muitos, eu também questiono muito sobre isso. No entanto, até agora acho que o que Richard Dawkins diz no seu livro Gene Egoísta é uma boa opção.



Sísifo e o sentido da vida[/size]

a ideia de que o sentido da vida

o homem é um composto de necessidades que são difíceis de satisfazer; a sua satisfação nada alcança a não ser uma condição dolorosa na qual o homem sucumbe ao tédio; e o tédio é uma demonstração directa de que a existência não tem em si qualquer valor, pois o tédio não é senão a sensação de que a existência é vazia. Pois se a vida, que a nossa essência e existência deseja, tivesse em si um valor positivo e um conteúdo real, o tédio seria coisa que não existiria: a mera existência seria suficiente para nos realizar e satisfazer.

 "sentido da existência", conectando assim o problema do sentido da vida com o problema de saber por que razão há algo e não o nada.

caminhar não é uma finalidade, de todo em todo, mas apenas um meio.
“A maior decepção de um crente fervoroso seria, ao chegar no céu, vê um ateu”. ronysalles

Offline Tupac

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Re: Sísifo e o sentido da vida
« Resposta #7 Online: 26 de Junho de 2009, 11:54:05 »
o sentido da vida é pra esquerda... ou pra direita... ou pra cima, ou pra baixo, ou em diagonal, ou no meio, ou em zigue-zague, ou...
"O primeiro pecado da humanidade foi a fé; a primeira virtude foi a dúvida."
 - Carl Sagan

"O que é afirmado sem argumentos, pode ser descartado sem argumentos." - Navalha de Hitchens

Offline lusitano

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Re: Sísifo e o sentido da vida
« Resposta #8 Online: 01 de Julho de 2009, 08:50:53 »
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N3RD

Re: Sísifo e o sentido da vida

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Não venha querer combinar o texto com a sua teoria da pedra deus.


Faça o favor, de parar, de me atribuir a autoria duma piada, criada por outra pessoa. Essa do "deus pedra", nunca foi uma teoria minha. Eu sou admirador da filosofia de Espinosa.

E o que é que a sua observação, sobre a sua teoria da "pedra deus", tem a haver com o texto em questão?

Se você estivesse a fazer referência à pedra omnipesada, que deus ainda tem de levantar, para demonstrar o seu poder ilimitado... Ainda podia encontrar alguma relação, já que Sisifo está justamente tentando levantar uma super-pedra, que aparentemente, ultrapassa as suas capacidades físicas e mentais. Mas mesmo assim, não percebi, o que você pretende dizer com a sua frase...

"Não venha querer combinar o texto com a sua teoria da pedra deus."
« Última modificação: 02 de Julho de 2009, 16:01:33 por lusitano »
Vamos a ver se é desta vez que eu acerto, na compreensão do sistema.

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Especulando realismo fantástico, em termos de
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paralogismo comparado - artur.

 

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