Jornal da Tarde, 08 de Março
Agredidas em nome de Deus, elas pedem ajuda
Das 3 mil mulheres que procuram ONG da Zona Leste que assiste vítimas de
violência, 90% são evangélicas agredidas física ou verbalmente pelos maridos
- que, na igreja, são exemplos de bondade
MARINÊS CAMPOS
Quem vê Antonio na rua, Bíblia debaixo do braço, roupa social, jeito de
gente boa, já imagina: "O sujeito é crente." Na igreja, então, o homem é um
exemplo de bondade. É calmo, freqüenta o curso para se tornar obreiro
(quando se formar, dará aula na escola dominical), vira anjo ao cruzar a
porta do templo. "Faz pregações maravilhosas", diz a mulher, Joana, 39 anos,
casada há 15 com Antonio. "Ele fala sobre a paz e como todos devem amar seus
inimigos."
Só que Antonio, manso como uma ovelha do rebanho do Senhor ao lado de seus
"irmãozinhos", se transforma em bicho bravo quando está sozinho com a
família. Dentro de casa, diz palavrões, agride a mulher. "Ele já me agarrou
pelo cabelo e me jogou em cima da cama", conta Joana. "Também atirou um
frasco de xampu na minha cabeça. Não sei por que age assim."
Como Joana, outras evangélicas, com saias longas, cabelos e mágoa pesando
sobre os ombros, também não entendem a mudança de seus homens quando eles
põem os pés fora da igreja e brandem as mãos dentro de casa. E, cansadas de
não achar refúgio na paz de seus templos - elas preferem não divulgar o nome
das igrejas que freqüentam -, encontraram abrigo na Casa de Isabel, uma ONG
da Zona Leste que, em parceria com a Prefeitura e o Estado, oferece
assistência psicológica e jurídica a mulheres, crianças e adolescentes
vítimas de violência.
A romaria de evangélicas à Casa de Isabel está assustando a pesquisadora da
área da violência e presidente da entidade Sônia Regina Maurelli. A ONG
atende 3 mil mulheres por mês. "Posso afirmar que 90% são freqüentadoras
assíduas de igrejas evangélicas", diz a pesquisadora. "Me surpreende é ver
as mulheres submetidas à doutrina das igrejas. Ser submissa não é tolerar
espancamento."
Analisando suas estatísticas, Sônia observa que grande parte das igrejas não
oferece aos fiéis um trabalho de aconselhamento. "Se existisse, esta casa
não estaria tão cheia. Acredito que essas mulheres estão nos procurando
porque estão lendo e se informando mais." Joana, a mulher de Antonio, admite
que as portas da Casa de Isabel foram as únicas que se abriram para
socorrê-la: "Procurei a pastora da minha igreja e ela me falou que problema
como o meu tinha de ser resolvido entre marido e mulher."
A palavra-chave citada pelas evangélicas ouvidas pelo JT foi "submissão" -
além de Joana, Lurdes, 33 anos, e Ana, 54, concordaram em falar sobre o que
acontece dentro de suas casas. Joana diz: "Quando reclamo com o Antonio, ele
fala de um versículo bíblico: 'Mulheres, sujeitai-vos aos vossos maridos'.
Só que a Bíblia não fala para a gente ser escrava deles."
Ana, 33 anos de casada, convive com o marido que esqueceu os ensinamentos
sobre respeito e harmonia: "Não tenho nenhum carinho. Só palavrões. A
agressão verbal às vezes é pior que tapa. Um tapa você revida, mas a mágoa
nada pode tirar." Muitas vezes, Ana pensou em separação, mas desistiu: "Ele
me xinga. Depois fica mansinho e lava a louça para mim."
Joana também fica dividida entre deixar Antonio, por causa das agressões, e
a culpa que sente por não se considerar uma boa dona de casa. "Não sei
arrumar um guarda-roupa tão impecável como minha mãe", conta. "Detesto
passar roupa e ele só usa camisa social."
Casada há 9 anos, Lurdes, até pouco tempo atrás, ia com o marido à igreja.
Hoje, depois de uma decepção, ele parou de freqüentar o templo: " Viu uns
'irmãos' da igreja bebendo num bar e ficou revoltado. Não me bate, mas me
humilha e diz todo tipo de palavrões."
A vida de Lurdes se tornou mais difícil depois que, meses atrás, foi vítima
de estupro. "Começou a dizer que, se fui atacada, é porque dei bola para o
estuprador. Eu não exponho meu corpo. Mas meu marido não teve compreensão.
Vive dizendo: 'Você não é uma mulher direita'. Não posso contar com ninguém
na igreja porque lá me dizem: 'Ninguém precisa de psicólogo. Aqui, o
psicólogo é Jesus'."